O conceito de Trans-Contemporaneidade das Artes na era da globalização.
24 Abril 2019, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Consciência da trans-contemporaneidade das artes.
Em tempos de madurez do processo da globalização mundial (tempos de crise social generalizada, mas também de possibilidades infinitas de saber e, como tal, aproximar … --, os próprios fundamentos científicos da História-Crítica da Arte, ancorada numa tradição formalista e historicista, viram-se, e vêem-se, confrontados com a necessidade de redefinir os seus conceitos, fundamentos e objectivos fundamentais, e também os seus limites de análise e percepção no contexto da Ciência das Humanidades.
Por isso se regressa às origens. Pelo menos, àquela origem que remonta à transbordante lição de um historiador de arte como Aby Warburg (1866-1929) [1], que deu sentido à prática da Iconologia e expressou as suas tabelas analíticas no famoso Atlas Bielder e em noções operativas como a Denkraum (espécie de investigação comparada de grau superior) e as Nachleben (ou memórias transmigradas dos códigos imagéticos). Depois de um limbo de meio século, verificamos como esse campo de análise fortaleceu a tradição mais recente de estudos iconológicos, representada por nomes como Brendan Cassidy, Daniel Arasse, Hans Belting, Axel Bolvig, Philip Lindley, entre outros autores integrados na Nova Iconologia [2], criando mecanismos iconológicos de observação da produção artística segundo as renovadas possibilidades da informatização em rede e do comparatismo serial.
Com a globalização, dá-se maior enfoque ao campo da Iconologia enquanto instrumento operativo apto a explicar a operacionalidade das obras de arte quando são observadas à luz dos seus pontos de vista (como diria Warburg) e da sua complexa teia de significados. Assim, hoje pode estudar-se mais a obra artística na razão directa dos seus tipos comportamentais, bem como das suas dimensões trans-contextual e trans-memorial [3] (tomando-se como referencial a nachleben warburghiana na sua dimensão imagética literal de ‘vida depois da morte’)[4], incluindo-se aqui, também, outras ordens de razões e linhas de pesquisa que importa ter em conta. Uma delas é o renovado empenho pelo estudo das situações de produção, do estatuto das artes e dos artistas, e das flutuações caracterizadoras do mercado artístico. Uma outra é o interesse acrescido pela análise de fenómenos até recentemente menorizados, como sejam os comportamentos de repulsa e de fascínio (a iconoclastia, a iconofilia) face à obra de arte, recorrendo aos testemunhos e exemplos pré e proto-históricos, medievais, modernos e contemporâneos para se intuírem as qualificações relativas e a presença dos seus sinais em conjunturas longas [5]. Outra, ainda, é a linha de interesses para as produções artísticas de periferismo em contexto colonial e de miscigenações culturais, como se o olhar saudosista, a nostalgia das relações de dominação ou mal-escondidas derivas neo-colonialistas se dissipassem de vez (veja-se, no caso português, o desenvolvimento de estudos sobre a arte nos espaços da lusofonia’, desde o século XVI à mais fresca actualidade).
Numa palavra: aborda-se mais a produção artística à luz das bases de teorização da História-Crítica da Arte, com recurso a visões globalizantes, a vastas redes tecnológicas e a novas metodologias pluri-disciplinares. São conquistas relevantes que a globalização traz para o campo das artes, caso seja for entendida, não como espaço de consumismo, apagamento de identidades e exploração desenfreada, mas como oportunidade evolucionista capaz de gerar discursos críticos e de reforçar o sentido pleno da cidadania.
A respeito da visão alargada que nos oferece o historiador de arte marxista Walter Benjamin com os seus conceitos de aura e de imagem dialéctica (categorias de História, Tempo, Melancolia e Alegoria) como modos de analisar a própria História global enquanto processo transformador (e não como mera evolução linear e positivista), temos consciência de que com ele, também, se rasgou um processo de trabalho com futuro, segundo o qual a produção artística nos vem solicitar uma nova e mais dinâmica abordagem das relações intrínsecas entre as instâncias de cultura, as da obra de arte e as estruturas sociais envolvidas [6]. Sobre a famosa aura, referida no ensaio de 1936 intitulado A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, afirmava o seguinte: «A singularidade é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura»…O talento analítico de Benjamin expressou-se no modo como soube entrever relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa grande capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo [7]. São valores fadados para longa sobrevivência, que interessam à prática da História e da Crítica das Artes, e que explicam, de certo modo, os mecanismos paragonais de gosto e de repulsa, de marginalidade e de massificação, de deriva repressiva e de ruptura vanguardística.
As novas gerações de historiadores e críticos de arte da era da globalização aprendem com estas lições, oriundas em muitos casos da esfera da sociologia da arte, da psicologia, da antropologia e da filosofia marxista, e que se tornam de evidenciada utilidade para a definição desta nossa disciplina. Bem vistas as coisas, a História-Crítica da Arte, ao mostrar a sua utilidade perene, ao falar das obras de arte como obras em aberto (como as definiu Umberto Eco), progrediu de modo significativo no contexto de um mundo em globalização. Alargou capacidades de análise crítica, recentrou interesses regionais, atraiu jovens investigadores, disponibilizou apoios dos poderes instituídos, redefiniu outros objectos de estudo no enfoque micro-artístico, amadureceu a sua visão patrimonialista sem as antigas peias auto-menorizadoras, e reforçou, sobretudo, esse seu entendimento (que só ela pode ter…) do discurso da arte como um fenómeno que é, em todas as circunstâncias, inesgotável e, por isso mesmo, trans-contemporâneo.
[1] Aby WARBURG. The renewal of Pagan Antiquity, intr. de Kujrt W. Foster, ed. The Getty Research Institute, Los Angeles, 1999; El renacimiento del paganismo. Aby Warburg, ed. de Felipe Pereda e Elena Sánchez Vigil, Alianza, Madrid, 2005; Essais Florentins (de Aby Warburg), intr. de Eveline Pinto, Paris, Klincksieck, 1990. Cfr., também, E. H. GOMBRICH, Aby Warburg: an Intellectual. Biography, 2ª ed., London, 1986 (trad. espanhola, Aby Warburg: una biografia intelectual. Alianza, Madrid, 1992.
[2] Axel BOLVIG e Philip LINDLEY (coord.), History and Images. Towards a New Iconology, Turnhout, ed. Brepols, 2003; Brendan CASSIDY (coord.), Iconography at the Crossroads, Princeton University, 1993; Daniel ARASSE, On n’y voit rien, Paris, Denoel, 2000; e Hans BELTING, The Global Art World. A Critical Estimate, ed. com Andrea Buddensieg, Ostfildern 2009.
[3] Vitor SERRÃO, A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa, Cosmos, Lisboa, 2007.
[4] O conceito de Nachleben não se reduz apenas a ‘renascimento’ ou ‘sobrevivência’; implica a ideia de continuidade de uma herança (pagã, nos casos estudados por Warburg). Cfr. Giorgio AGAMBEN, «Aby Warburg e la scienza senza nome», Aut aut, nº 199-200, Nuova Italia, Firenze, 1984, pp. 54-55.
[5] Cfr. catálogo da exposição Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, coord. de Cécile Dupreux, Peter Jezler e Jean Wirth, 2001; Olivier CHRISTIN, Une révolution symbolique. L’iconoclasme protestant et la reconstruction catholique, Paris, 1991; Alain BESANÇON, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994; e David FREEDBERG, The Power of Images, University of Chicago, 1989 (trad., El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid).
[6] Walter BENJAMIN, Le livre des passages, col. Paris capitale du siècle XIX, tradução de Jean Lacoste, éd. Cerf, Paris, 2000.
[7] Cfr., de Walter BENJAMIN, o texto «A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica», publicado na revista do Institute for Social Research, de 1936 (trad. port.: Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, introd. de T. W. Adorno, ed. Relógio de Água, Lisboa, 1992, p. 82).