O Concílio de Trento, o 'decorum' e a pedagogia pela imagem sacra.

27 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     O controle da representação das «imagens sagradas» assumiu, com a XXXVª sessão do Concílio de Trento, em 3 e 4 de Dezembro de 1563, um especial acento ideológico e programático que terá largos efeitos até ao pleno século XVIII. «A Igreja apoderou-se nesse período do comando da arte religiosa, a fim de a expurgar das notas tidas por censuráveis e de promover uma iconografia de combate, de testemunho e de catequese», como diz Flávio Gonçalves, grande especialista no campo da iconografia sacra [1], dando corpo, assim, à vasta reacção contra os ataques da Reforma protestante e os seus efeitos. As directivas tridentinas nesta matéria tiveram imediato acolhimento no seio do mercado intestino das artes, fossem os encomendantes ou os artistas envolvidos na produção destinada ao culto, uns e outros dependentes de uma vasta estrutura de controlo a que as Constituições Sinodais dos Bispados deram corpo de lei e os visitadores da Igreja prática de censura, quando não repressiva [2]. Apesar de essa nova situação ser de absoluto controlo das liberdades criativas, é certo que também foi estimuladora de um novo espírito de solenidade e eficiência dos resultados artísticos, acentuando-se uma significativa melhoria nas condições estatutárias dos pintores e demais artistas portugueses que trabalham para o mercado religioso [3].

     Tal como estabeleceu o Concílio de Trento na sua derradeira sessão, as imagens sacras servem para «anatemizar os principaes erros dos Hereges do nosso tempo», e por isso buscou adequar a sua representação a uma finalidade de combate contra a heresia iconoclasta do calvinismo e de reafirmação do sentido tradicional do culto em afirmação catequética. Retomando directrizes do velho Concílio de Nicéia II, proibe-se «que se exponha imagem alguma de falso dogma». Defende-se o papel das imagens sacras como intermediárias de fé e a multiplicação nos locais de culto de imagens de Cristo, da Virgem e dos santos, numa acção clarificada face a qualquer espécie de idolatria, ou seja, não para se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas reforçando o seu papel salvífico como intermediárias de oração. Define, também, a necessária qualidade, imprescindível para a eficiência das reproduções artísticas dos mistérios da fé, tornando-as credíveis no sentido de as adequar a objectivos pedagógicos junto das populações. Abre-se, também por isso, uma frente de combate contra as chamadas «imagens de falso dogma» e de «formosura dissoluta», em muitos casos alvo de alterações impostas ou de destruição pura e simples. Afirma-se a intenção de ensinar que a divindade não é percebível pelos sentidos nem através de cores ou formas, mas que estas são demasiado importantes pois concorrem para abrir os olhos da alma [4]. É por isso que as normas tridentinas no campo da arte sacra foram tão marcantes em Portugal (mesmo antes de as directrizes conciliares terem sido aceites como lei do Reino na regência do Cardeal D. Henrique, por decreto de 12 de Setembro de 1564). De facto, tiveram ressonância em todo o «mundo português», ainda que a penetração da doutrina protestante não fosse significativa. No nosso caso português, foram alvo de vigilância maior os cristãos-novos, alegadamente envolvidos em actos de iconoclastia anti-católica, e determinados círculos de resistência do humanismo de inspiração erasmiana, mais atreitos a uma tradição libertária que os novos ventos inquisitoriais vivamente desaconselhavam.

     Tomamos como ponto de partida para uma análise desta situação o modo como, com as normas do Concílio de Trento, se assumiu a busca de uma espiritualidade renovada na representação artística. Apesar de não ser devida a artista português, mas de um grande pintor de Badajoz, o facto de ele ter trabalhado amiúde para o mercado nacional, e de ter aqui assumido grande e duradoira influência artística (o «gosto moralesco»), justifica que se recorra a uma obra exemplar, o painel Cristo meditando sobre a Paixão, para discorrer sobre esta nova expressão da arte tridentina. Trata-se de um Cristo coroado de espinhos, em meditação sobre o destino sacrificial, despojado da túnica e rodeado de símbolos da Paixão. Pintado por Luís de Morales, el Divino (c. 1515-c.1591), por volta de 1560, trata-se de uma peça de excelência absoluta, de pequeno formato (66 x 44 cm) e destinada a oratório de culto doméstico, que se conserva no Institute of Arts de Minneapolis (EUA) [5]. O artista, um dos nomes maiores do Maneirismo peninsular, inspirou-se aqui na célebre Melancolia de Albrecht Durer para compor este singular Jesus Cristo merencoroso, que testemunha na sua pose entre o solene recolhimento e a meditação interior um novo tipo de imagem alegórica da Paixão, tão ligada afinal às teses do dominicano Frei Luís de Granada sobre as postrimerías, à margem do itinerário narrativo do Novo Testamento. O que se pretendeu nesta encomenda foi promover a oração individual em torno do tema da redenção pelo sacrifício, seguindo os conceitos e estratégias discutidos em Trento [6]. O princípio da previsão do juízo e o elogio da meditação devocional defendidos nos textos de Frei Luís de Granada encontraram nas obras de Luís de Morales um fidelíssimo intérprete. O pintor, homem de vasta cultura e ligado, pelo círculo de protectores e encomendantes, a um complexo mundo espiritual ligado ao pensamento cristão renovador, conhecia o Libro de la oración y de la consideración (1554) e o Guia de pecadores (1556) de Frei Luís de Granada, obras onde se defendia o Juízo Particular como a forma de redenção que, com a Morte, se transforma na primeira postrimería, exortando por isso à virtude e ao enriquecimento da vida interior, os valores essenciais que esta pintura assume no seu discurso plástico. Ela esclarece-nos bem sobre o sentido de uma Pintura para ser vista com os «olhos da alma», tal como promulgavam os princípios de Trento [7].

     É preciso, já o dizia o historiador de arte Giulio Carlo Argan [8], saber olhar e saber ver, e nessa dimensão valorativa do papel das obras de arte sob signo da fé decorreu a célebre sessão de Trento em Dezembro de 1563. Na verdade, sentia-o Argan, História e crítica da Arte são faces da mesma moeda, discorrem sobre obras que devem ser consideradas sempre contemporâneas, aptas para a fruição integral do e no nosso tempo – sem se perder de vista o contexto mental preciso em que foram geradas. Todos somos fruidores comprometidos: dedicamos às obras de arte um olhar que anseia por integralidade, tal como o fez Zeri a respeito de Scipione Pulzone e de Giuseppe Valeriano, típicos produtores tridentinos da arte senza tempo [9], variação amadurecida da arcana Bíblia Pauperum da Idade Média [10]. A arte tem capacidade de assumir essa sempre renovada dimensão trans-contemporânea, de surpreender pelas infinitas possibilidades de suscitar olhares críticos (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas, que os valores de cada época alteram ou promovem e, nesse sentido também, as propostas de Trento acentuaram as dimensões catequética, emotiva e espiritual das obras enquanto intermediarização [11].

     Vem isto a propósito do notabilíssimo quadro de Luís de Morales em Minneapolis, onde a ideia profunda, o ritmo dos planos articulados, a sobriedade da cor, a sedução do estilo, o carisma da expressão mística, as perspectivas cruzadas, o discurso em busca de coerências ideológicas, formam textos com todo o sentido. Assim, à luz dos princípios tridentino, tudo adquire sentido, é plausível perceber e, no campo da fé, é possível crer – e nessa dimensão agiram os teólogos conciliares quando pensaram na renovação da arte sacra nos termos em que o fizeram. Abriram-se, ao mesmo tempo, saberes históricos, estéticos, iconográficos e ideológicos no discurso das imagens artísticas. A específica ordem do tempo, da razão, gosto e encomenda, veio conferir sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam.


[1] Flávio GONÇALVES, Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal, sep. de Belas-Artes – Revista da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1973, p. 13.

[2] IDEM, História da Arte. Iconografia e Crítica, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1990 (colectânea póstuma de estudos deste especialista), pp. 111-127.

[3] Ottavio NICOLI, Vedere com gli occhi del cuore. Alle origine del potere delle immagini, ed. Laterza, Roma, 2011.

[4] Vítor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

[5] Carmelo Sóliz RODRÍGUEZ, Luis de Morales, Fundación Caja de Badajoz, 1999, pp. 266-267.

[6]  G. Rodríguez de CEBALLOS, «El mundo espiritual del pintor Luís de Morales», Goya, nº 196, 1987; e Fernando MARÍAS, El Largo Siglo XVI. Conceptos fundamentales para la historia del arte español, ed. Taurus, Madrid, 1988.

[7] Vítor SERRÃO, «Ver e Crer. Os Cinco Sentidos da Arte da Pintura», Invenire – Revista dos Bens Culturais da Igreja, nº 2, Janeiro-Junho de 2011, pp. 10-12.

[8] Giulio Carlo ARGAN, A tarefa da crítica. in: Arte e crítica da Arte, ed. portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1988.

[9]  Federico ZERI, Pittura e Controrriforma. L'arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, Turim, Einaudi, 1957.

[10]  Cf. Giordano VIROLI, «I luoghi della continuità e del mutamento dalla Controriforma al naturalismo del Seicento. Intenzioni e inclinazioni nella pittura in Romagna», Bíblia Pauperum. Dipinti dalle diocesi di Romagna, 1570-1670, Nuova Alfa Editrice, Ferrara, 1992, pp. XXIX-LXIX.

[11]Cita-se um trecho do poeta José Tolentino de Mendonça: «a Igreja precisa dos artistas para que as representações de Deus não fiquem sequestradas pela racionalidade, mas possam tocar aqueles reservatórios de mistério e de sensibilidade que é o coração do homem».