Semiótica e História da Arte: o exemplo de Omar Calabrese.

20 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


A LINGUAGEM DA CRÍTICA DE ARTE

 - No primeiro capítulo do livro analisado de Omar Calabrese, subdividido em problemas de fundo e crítica dos críticos, explicita o conceito de crítica de arte. - Privilegia a função de programas universitários vocacionados para a crítica de arte, versando literatura sobre o tema, produzida desde a Antiguidade Clássica - Reforça a proximidade entre a crítica de arte, a história da arte e a história da sorte crítica [leia-se da fortuna crítica], esclarecendo que esta última veicula “«discursos sobre as artes», partindo dos tratados antigos e modernos até se chegar às teorias sobre a arte contemporânea, entrando mesmo no campo da estética (pelo menos no atinente à estética como teoria do discurso sobre a arte e como sistema de avaliação.” (p. 10) Distingue na crítica de arte contemporânea a ligação à especificidade dos seus métodos de avaliação, às práticas sociais e institucionais e às relações da arte com o mercado. Articula a crítica de arte com a prática do historiador.


Aplicação do modelo semiótico ao conceito de estilo: -  “I) aquilo a que chamamos «estilo» é formado por variações no plano da expressão que correspondem a efeitos de conteúdo; - II) estes efeitos são motivos a que, na sequência de uma tradição antiga, poderíamos chamar «estilemas», isto é, configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica como na sintáctica; - III) os «estilemas» funcionam como marcas do actor, individual ou colectivo, que os produziu [autor, sociedade] e dão ao enunciado que os contém o estatuto de enunciado informativo tendente ao reconhecimento cognitivo do próprio actor como actor «estetizante» - IV) portanto, o estilo pertence à dimensão cognitiva da estética.”

- É nesta linha teórico-interpretativa que Calabrese escolhe como análise-modelo “Os Embaixadores” de Hans Holbein, o Jovem. - Aplica a esta obra “o princípio específico de coerência textual que, em semiótica, se define como «intertextualidade»” (p. 38). Refutando o conceito de linguagens artísticas «específicas», defende que “o novo ponto de vista obriga a prescindir definitivamente da possível tentação de entender a semiótica da arte como disciplina autónoma e totalizadora” (pp. 37-38), preferindo o recurso à teoria de Greimas e fazendo corresponder níveis de leitura aos tipos de isotopias, “coexistentes e com conexões que permitem o salto de um nível para outro” (pp. 37-43). Assim, começa por, numa primeira etapa, praticar um exercício teórico a partir de uma abordagem empírica, circunscrita a um primeiro olhar interpretativo ingénuo e confinado, tão só, à descrição do visível. - É precisamente a força e a globalidade do aspecto eidético de todo o quadro que obriga a procurar a regra de transformação daquela única figura não eidética em figura eidética. O choque entre as figuras é um choque entre formas que não aparece e que pode ser e não ser o que parece; portanto, entre figuras que podem tornar-se verdadeiras ou enganadoras e uma forma que pode ser falsa ou secreta. Em termos de modalidades verídicas, a situação é exprimível num contraste de posições no interior do quadro da veridicidade: verdade  ser  parecer   segredo  mentira não-parecer       não-ser  falsidade”   (pp. 44-46) - Omar Calabrese estabelece nove percursos de análise da obra, os quais denomina “Estádios”:

1º. Estádio centrado na percepção do observador, “o quadro interpela o espectador, dado que o obriga a encará-lo e, como tal, descobre-lhe minuciosamente a «verdade» da pintura. No entanto, ao mesmo tempo, o quadro desafia o interlocutor precisamente enquanto o observa: nega-lhe, no ponto canónico, a decifração de um elemento. Desta forma convida-o a entrar num jogo com ele (…) a realidade somente pode captar-se através de um espelho deformante e a pintura não é mais do que uma máscara, sendo necessário deslocar-se para além dela a fim de se conhecer a verdade (…) em termos semióticos (…) o pólo representado pela anamorfose qualifica-se automaticamente como segredo e não como falsidade (…) a alusão à anamorfose (nível arquitextual) é também, ao mesmo tempo, um discurso sobre a essência da representação figurativa (nível metatextual) (…) em que nos introduz uma oposição teórica (…) homóloga, igualmente, da oposição: máscara vs «por detrás da» máscara (…)” (pp. 47-50).

2º. Estádio acham-se no quadro notas e indicações que desvendam e aludem a dados biográficos precisos das personagens representadas – no punhal, figura da esquerda, 29 anos, e no livro da figura da direita, 24 anos. No mapa-mundi a pequena cidade de Polisy é a cidade natal e de residência de “uma conhecida personagem da corte do rei Francisco I de França, que, justamente em 1533 (também data do quadro) estava como embaixador em Londres quando também Holbein se encontrava lá. Outra referência: Jean de Dinteville (com vinte e nove anos em 1533) traz ao pescoço uma medalha da Ordem de S. Miguel, com que realmente o jovem diplomata fora condecorado por Francisco I, pouco tempo antes.” Para além destes, outros códigos com fortes implicações textuais ressaltam da superfície do quadro: “as cifras relativas às idades das duas personagens (…) a medalha da ordem de S. Miguel é sua porque a tem ao pescoço; os mapas-mundi e os objectos astronómicos, musicais, matemáticos e literários são seus porque estão dispostos junto dele.” (pp. 50-52)

3º. Estádio descreve-se os objectos localizados entre ambas as personagens e a respectiva significação: “Portanto instrumentos científicos e culturais agrupáveis segundo as (…) disciplinas (…) geometria, aritmética, música e astronomia. Ter-se-á reconhecido imediatamente o quadrívio (…) resumamos a cena. Duas personagens de poder laico e eclesiástico (…) O poder configura-se como uma arquitectura do saber moderno (…) este nível simbólico é também acompanhado por indícios que confirmam o nível anterior, o da biografia das personagens. (…) Outras referências no texto ou encaixadas nos textos (…) levam-nos a aprofundar, por uns momentos, o tipo de metáfora da ciência e da cultura instituído por Holbein (…) através do complexo sistema de referências e de referências nas referências, vemos aparecer no retrato toda a série de nomes do novo humanismo do séc. XVI (…) Portanto lado a lado a Reforma científica e a Reforma religiosa.” (pp. 54-56)

4º. Estádio intitulado A Amizade, Omar Calabrese remete para as duas categorias de retratos inseridos na obra – “Duas delas estão fisicamente presentes no quadro, as outras estão citadas, de diversas formas. (…) O retrato por objectos e não por pessoa física tornar-se-á quase canónico na época da natureza-morta, por exemplo na forma do «canto de estudo» onde se amontoam os objectos-personagens daquele que se quer manifestar no retrato, ocultando o seu próprio corpo (…) os Embaixadores são um retrato de grupo, um retrato de amizade (…).” (pp. 57-59)

5º. Estádio designado A Política, corresponde ao estabelecimento e ao desvendar do trama subtil de relações de segredos de que os dois embaixadores estavam oficial e secretamente encarregados de viabilizar. Calabrese interpreta de um ponto de vista simbólico a presença de dois elementos que encara como indícios passíveis de descodificação: o alaúde de 10 cordas, uma das quais quebrada, e a especificidade do tratamento do rosto de Georges de Selve, cruzando-os com outros dados provenientes da investigação histórica e biográfica das personagens e do pintor, tudo isso em articulação com o plano conceptual de segredo: “o segredo não é algo que não se sabe, mas algo que apenas se conhece em determinadas condições; e, para que seja verdadeiramente segredo, deve estar marcado como segredo”, e é aqui que a caveira anamórfica se enquadra, como “delimitador global de segredo”. (p. 61)

6º. Estádio correspondente a A Pintura, incide no nível de “distribuição no quadro de referências a outros textos, que não apenas se citam, mas que também estão colocadas entre aspas. Trata-se de objectos e técnicas de representação que, portanto, assumem aqui um valor metalinguístico ou metatextual. Calabrese estabelece mesmo um paralelismo entre a construção perspéctica do quadro, exercício de trompe-l’oeil, e a velha luta entre Zêuxis e Parrásio, que alimenta o mito da pintura como engano dos olhos, contrapondo depois tais falsas aparências a uma segunda verdade – “Resumindo: pintura como máscara que cobre a verdade com o seu próprio aspecto verosímil, mas enganador. Então, chegamos ao primeiro significado possível da anamorfose da caveira: ao lado da mentira da pintura enganadora (trompe-l’oeil), há a possibilidade de uma segunda verdade (anamorfose), como ao lado da falsa beleza se pode colocar a única verdade representável, a morte (sendo Deus, por Sua natureza irrepresentável, a outra verdade). Deste modo, Holbein insere na mesma mesa os dois modos coincidentes e opostos da representação: trompe-l’oeil e anamorfose.” (p. 63)

7º. Estádio trata de O Jogo Linguístico, desenvolvido em torno da representação do tema da caveira. As três representações que do objecto se fazem no quadro correspondem a leituras, significados e mensagens diferentes. Uma “caveira principal de grandes dimensões no meio da mesa”, funcionado como anamorfose principal, contém dentro dela “uma segunda caveira mais pequena. (…) além das duas anamorfoses, oculta-se minuciosamente no quadro uma terceira caveira: o alfinete do toucado de Jean de Dinteville (…) precisamente o distintivo do embaixador francês, cujo lema era memento mori.” (pp. 64-65)

8º. Estádio intitulado A Autobiografia, alude-se ao sistema de auto-referências do pintor Holbein e ao nível de coerência dessas auto-referências, “cujo elo de ligação é a sua assinatura” e em que “o mais autobiográfico de todos é precisamente o tema da morte e do seu símbolo mais claro, a caveira (…) Sob o signo da morte está, de facto, a Declaração sobre a incerteza, a vacuidade e os abusos das ciências e das artes” (pp. 65-67).

9º. Estádio A Filosofia, fecha-se o ciclo, pois regressa-se ao ponto de partida, ao segredo descoberto, sendo este simultaneamente a chave para desvendar os muitos segredos contidos no quadro. “A ideia da morte como verdade que ultrapassa a aparência e o engano da pintura constitui-se como nível final de leitura.”

Porém, o exercício teórico não se detém apenas nesta dimensão. A relação entre a pintura e a representação é acima interpretada sob um outro prisma, o da compreensão da adversidade do conhecimento verdade/falsidade: “Este é o último segredo filosófico do quadro (…) Oculto na última prega à esquerda do cortinado há um crucifixo de prata, em perspectiva de perfil, com o braço curto da luz voltado para nós. Simulacro do irrepresentável, de Deus. Ponte e passagem para o além da representação. (…) Se acreditarmos na representação, estaremos fatalmente condenados à mentira; mas, se não crermos na representação, estaremos inevitavelmente condenados ao segredo. A verdade e a falsidade não existem, pelo menos nesta dimensão: está noutro lugar, para além do cortinado que cobre o horizonte, isto é, na nossa própria possibilidade de ver e de saber.” (pp. 67-68) Por outras palavras, o que está em causa neste quadro, é também a questão da certeza humana, a possibilidade de acesso do Homem aos mistérios da verdade, e daí o peso que Calabrese atribui à intertextualidade, na leitura da obra.


- Em resumo, a obra em análise transporta um conjunto de enunciados significativos que informam sobre a interpretação de Omar Calabrese com o pensamento semiológico. - Discurso fluente, quando coloca questões inerentes à interrogação da obra de arte, adensa-se perante a polissemia subjacente à interpretação. - Do seu contributo teórico-conceptual [presente na obra “como se lê uma obra de arte”] para o desbravar de metodologias de abordagem da obra, destacamos: - A leitura do quadro como processo de um olhar consciente, responsável e competente, apetrechado da utensilagem adequada à descodificação do texto em análise. - Atitude de visão global face à totalidade da obra, conhecedora não só da utopia que habita cada momento de abordagem, mas também do significado da Fortuna Crítica e do espaço existencial do presente.- Articulação dos diferentes tempos face à discursividade da leitura. - Estruturação de circuitos de olhares virtuais e possíveis, direccionados para o conjunto de signos alinhados na superfície plástica, implicando escolhas múltiplas e relativas e refutando a linearidade irreversível. - Soberania da consciência face à parcialidade que antecipa a visão unitária, perspectivada a partir de três comportamentos fundamentais: perceptivo, estruturante e memorizante. - Equivalência do quadro a uma matriz de linhas, cores e valores, na qual cada geração inscreve a sua própria leitura. - Concepção do quadro como sistema, onde se cruzam conjuntos de olhares, de percursos, de elementos ligados entre si por diferentes graus de constrangimento e provocação, suscitando na descodificação dos códigos picturais a coerência interna e orgânica inerente à obra em análise e às suas referências conotativas e denotativas, sublinhadas na oposição regra/transgressão/significado pictórico.- Importância da aplicação do modelo característico da semiologia pictural à pintura, entendida como linguagem estruturada e autónoma.

- Em resumo, Omar Calabrese pertence a uma nova geração de críticos de arte cujos pressupostos teóricos se afirmam na década de 90 e onde se incluem nomes como Victor I. Stoichita, Marc Bayard, David Freedberg, Georges Didi-Hubermen, Hans Belting, etc. - No discurso teórico de Calabrese transparece toda uma utensilagem metodológica alimentada por conceitos operativos fundamentais para a descodificação do processo comunicativo, no qual ocupa lugar privilegiado a linguagem artística e, naturalmente, o discurso pictórico. Assim se compreende a alusão, nas suas análises, a termos como estratégia discursiva, narratividade, metáfora, signo, unicidade, memória, autenticidade, totalidade, alegoria, trans-semioticidade, contextualidade, cruzamento… propondo uma verdadeira taxonomia.Do ponto de vista crítico, a grande abertura expressa por Calabrese relativamente ao processo de análise da obra de arte, é bem o espelho da sua atitude de humildade, patente no seu reconhecimento de que a mensagem da obra não se esgota no signo, enquanto substituto significante de qualquer coisa. Daí o apelo do autor a elementos exteriores ao conteúdo, sejam eles dados biográficos, informação histórica, relações do artista com a sociedade, domínio da iconologia, etc., os quais embora excluídos do processo comunicacional, completam o entendimento da globalidade da obra de arte.

Muitas das questões colocadas por Calabrese relativamente ao universo comunicativo da produção artística continuam em aberto, pois no actual estado do debate teórico nada está definitivamente encerrado. A obra de arte oferece-se à interrogação, e a abordagem semiótica não a esgota; as áreas cruzadas com a semiologia, designadamente no domínio das ciências humanas, a interdisciplinaridade, a aproximação metodológica a outras linguagens da crítica, constituem recursos que tornam inesgotável o processo de inteligibilidade da obra. Assim, “Como se lê uma Obra de Arte” é uma obra de qualidade inquestionável para estudiosos, críticos e historiadores da arte, com destaque para o seu contributo semântico, o qual justificaria o melhoramento da qualidade de reprodução das imagens reproduzidas e, bem assim, do teor de informação veiculada pelas respectivas legendas.


BIBL. : OMAR CALABRESE, “Como se Lê uma Obra de Arte”, Edição em língua portuguesa de Edições 70, Lisboa, 1997, ISBN 972-44-0963-5, 144 pp. (125 de texto). Título original: “Cómo se lee una obra de arte”, Ediciones Cátedra, S.A., 1993.