A lição iconológica: dois casos de estudo a partir das obras de Panofsky e Wittkower.

5 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Estuda-se, como exemplo do método iconológico panofskiano, o conjunto de frescos quinhentistas galegos das igrejas de Santa Baia de Banga e de Santa María de Mugares, ambos concebidos à luz dos princípios neoplatónicos de Marsilio Ficino, através de gravuras da 'Emblemata Liber' de Andrea Alciato (edição de 1548) e de outras fontes, por provável encomenda do erudito cónego italianizante Bartolomé de Bahamonte. A igreja de Santa Baia de Banga, no arciprestado de Carballiño, diocese de Ourense, guarda no seu interior um complexo programa de pintura, datado de 1555, com uma ilustrada composição de raíz neo-platónica em torno de três temas: os Dons da Divindade, a Influência Cosmológica e Astral, e a representação dos Videntes (Reis e Profetas da Antiguidade).Tudo denuncia um conhecimento entranhado das teses neoplatónicas e da sua representação imagética, com um forte sentido moral. Outro programa elaboradíssimo de pintura mural quinhentista na Galiza é o que decora a abóbada da capela-mor de Santa Maria de Mugares, que foi encomendada provavelmente por um culto cónego, Bartolomé  de Bahamonte, c. 1575-80. Aqui se desenvolve e caracteriza a NATUREZA DA ALMA e do HOMEM, com a devida legitimação por parte de uma galeria de VIDENTES e de PROFETAS. A corrente filosófica do Neoplatonismo, expressa nas obras da Academia florentina de Careggi e, sobretudo, nos textos de Marsilio Ficino «Theologia Platonica» (1474), «Commentarium in Convivium  Platonis» (1475) e «De Vita» (1489), expressa uma concepção do Universo, de Homem, de Divindade, de Amor, que assenta no primado da Beleza e no estudo da Astrologia e suas relações com Filosofia e Religião. Para Ficino, o Mundo reparte-se em QUATRO HIERARQUIAS, que em grau crescente oferecem o caminho da perfeição: 1) a MATÉRIA, meramente com forma, movimento e existência, contribuindo para definir a região da Natureza; 2) a NATUREZA ou MUNDO NATURAL, estádio sublunar ou terrestre, onde tudo é corruptível e efémero, porque é composto de matéria e forma, embora o mundo celeste possa influír no seu ritmo; 3) a ALMA CÓSMICA, que converte as ideias, inteligências e comportamentos estéticos em causas dinâmicas, estimulando a natureza a produzir obras visíveis; 4) e a MENTE CÓSMICA, região inteligível e supracelestial, a região perfeita das ideias, mundo da estabilidade e da incorruptibilidade, em que as inteligências (anjos) são protótipos de tudo o que existe nas zonas inferiores. A Mente Cósmica é representada pela forma circular, a mais perfeita. Para o Neoplatonsmo, o homem é uma alma racional que participa da mente divina e tem existência corpórea, embora com um ‘spiritus humanus’ incorruptível. MENS, ANIMA, NATURA e CORPUS são os níveis hierárquicos do género humano. A IMORTALIDADE, conceito desenvolvido a partir de Platão, é a meta da espécie humana, assim como o Amor Platónico e a busca da Beleza. Como exemplo do método iconológico de Rudold Wittkower, estuda-se a estampa de Johannes van der Straeten, ou Giovanni Stradano (1523-1605), gravura do livro de Antonio Pigafetta dedicado à viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, com representação da ave ROCK, ou SIGHURT. O ROKH, RUKH, ROC, SIMURTH, é uma ave de caça mitológica, capaz de atacar elefantes. Conta o mito – dos mares da China à Índia e a Madagáscar  -- que é tão grande que escurece a terra e encobre o sol. O historiador de arte Rudolph Wittkower (1901-1971) diz que o Rokh nasceu da batalha escatológica entre o pássaro solar indiano Garuda e a serpente Nãga. Julga-se que o mito de Rokh pode ter surgido tal como o mito dos dragões, através de má interpretação de fósseis. Outra hipótese das origens do Rokh liga-se a eclipses. Outra, ainda, liga-o à ave-elefante (agora extinta) de Madagáscar, que media 2,7 metros e pode ter originado o mito.O Roc pode ser encontrado na literatura do Médio Oriente do século VIII mas só passou a ser conhecido quando o explorador Marco Pólo (1254-1324) relatou em livro de viagens os aparecimentos de uma ave gigante. O Rokh também é conhecido entre contos de marinheiros, como os de Sinbad, que dizem ter visto uma montanha a pairar sobre o mar.  O grupo da fabulosa ave Rokh, transportando um elefante, é a miraculosa «Roc» que o escritor Antonio Pigafetta descreve no seu relato da viagem de Fernão de Magalhães, como observado nos mares da China. O mito retoma as arcanas origens orientais segundo fontes cosmológicas que remetem para o combate indiano do deus solar Garuda e a cobra Naga, e para outros mitos das culturas indiana (tanto no Mahabharata, como no Ramayana) e perso-árabe que a transmudam em elefante.Segundo Wittkower, o ROC tem origem na luta entre a ave solar indiana GARUDA e a serpente NAGA (A.de Gubernatis diz que a palavra tanto significa cobra como elefante). O mito de Garuda a levar um elefante que lutava com uma tartaruga, aparece na famosa epopeia em sânscrito do MAHÁBHARATA (I.1353) e no RAMAYANA (III.39). No Arabic geographies and natural history e nos relatos de marinheiros é muito referida. IBN BATTUTA fala de uma montanha suspensa sobre os mares da China como sendo o ROC. Segundo  Wittkower, nesta sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.