A teoria da arte e o Concílio de Trento: Gilio da Fabriano, Cesare Bartonio, Carlos Borromeo. A teoria do 'decorum'.

26 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Análise histórico-artística, iconográfica e iconológica de ‘casos’artísticos e de debates estéticos da segunda metade do século XVI e do século XVII, a partir da formulação, recepção e adaptação dos cânones do Concílio de Trento no seu tónus catequizante, dando-se ênfase à ideologia subjacente, a temas proibidos, a exemplos de iconoclasma e de censura, ao combate ao protestantismo e  ao «falso dogma», à promoção de novos temários, ao novo estatuto social do «bom pintor cristão», etc. Situam-se as novas directrizes de representação (cardeal Baronio, cardeal Borromeo) e moralização (Gilio da Fabriano), o contrôle das 'imagens sagradas' e da produção artística geral, o conceito pedagógico de pittura senza tempo e também as medidas para modernizar a linguagem das artes, à luz dos princípios tridentinos. AD PERPETUAM REI MEMORIAM VS. AD MAIOREM GLORIA DEI:  o papel do Concílio de Trento na reorganização interna da Igreja, com acento nas funções da conservação e reconquista da própria auctoritas, a revalorização do cristianismo primitivo, a reafirmação litúrgica de cultos (mariano, dos santos, das relíquias e das imagens) e a definição de princípios normativos de controle da ecclesia. A sessão de 1562, o debate sobre a arquitectura e as normas de representação da arte sacra.

Estabeleceu o Concílio de Trento (na sua XXVª sessão, de 1562) que as imagens sacras servem para «anatemizar os principaes erros dos Hereges do nosso tempo». Assim, buscou combater a heresia iconoclasta do calvinismo e reafirmar o sentido tradicional do culto das imagens sacras como intermediárias de fé em afirmação catequética. Proibiu-se, por isso, «que se exponha imagem alguma de falso dogma», retomando directrizes do velho Concílio de Nicéia II. Defendeu-se que se deviam multiplicar nos sítios de culto imagens de Cristo, da Virgem e dos santos, não por se crer que haja nessas imagens alguma divindade ou se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas como intermediárias de oração. Também definiu nas reproduções artísticas dos mistérios da fé o sentido de uma qualidade capaz de as adequar ao objectivo pedagógico. Contra as imagens de «falso dogma» e de «formosura dissoluta», afirmou-se  a intenção  de ensinar  que a divindade não é  percebível pelos sentidos nem através de  cores ou formas, mas que estas concorrem para  abrir os olhos da alma. A arte sacra na primeira linha de resposta ao ataques dos protestantes: Baronio, Paleotti, Borromeo. As Centurias de Magdeburgo (1559-74), compiladas por teóricos protestantes como Iliricus Flacius, atacavam a Igreja romana pelos alegados desvios ao ideal evangélico, seguindo um método de trabalho assente na compilação de textos e com estrutura muito inovadora (p. ex., organizado por séculos e não por pontificados). Quer o tempo quer a noção moderna da História tornam-se transparentes nestes questionamentos sobre os princípios da Igreja. Em resposta, abre-se uma verdadeira ‘cruzada apologética’ por parte dos teólogos e historiadores católicos para refutar as ideias protestantes. Ao jesuíta Roberto Belarmino coube uma defesa teológica das bases tridentinas em estudos sobre Controvérsias Religiosas (1586-93) onde    usa um documentado método   filológico e hermenêutico aos textos sagrados e patrísticos.

O padre Roberto Belarmino (Controversiae, Roma, 1586-93) e o padre oratoriano Cesare Baronio (Martyrologium Romanum, cum notationibus Caesaris Baronii, Roma, 1598). O papel do historiador católico como investigator veritatis e o papel da arquitectura e da arte como fonte afectiva, documental e pedagógica são destacados por Cesare Baronio (inspirador de Frei Bartolomeu dos Mártires e D. Teotónio de Bragança)  na sua defesa dos factos históricos através da compilação de uma História da Igreja  onde defende como fundamental metodologia a análise das fontes, organizadas filologicamente, nelas integrando as preexistências arquitectónicas (paleocristãs e românicas). As fontes passam, assim, a ser objecto de investigação filológica e desvelos patrimoniais. Figura fundamental na nova orientação da Igreja tridentina sobre as imagens sacras foi o Cardeal Gabriele Paleotti (1522-1597) e o seu livro De immaginibus sacris et profanis, de 1582, onde defende que a representação artística deve seguir um sentido de decorum, de rigorismo, de apego à ut ars rhetorica divina.  Quanto às obras de arquitectura, o princípio de RESTAURATIO EST RINNOVATA CREATIO indica a subordinação do espaço sagrado a uma orgânica litúrgica e a uma necessidade retórica de animos impellere (seduzir). Ou seja, o valor histórico-devocional passa a ser   o motor determinante da intervenção sobre a obra preexistência, que deve ser transformada por necessidades de adaptação (instaurare).

Figura chave da teoria e prática artísticas no quadro de Trento, o Cardeal Cesare Baronio dedicou de 1564 a 1567 várias leccios sobre a história da Igreja em San Girolamo della Carità.  Em 1567, dá início da compilação dos seus Annales, com recurso a informação provinda de toda a Europa e Médio Oriente, obra só editada em 1588-1609. Define uma sólida metodologia de investigação histórica, baseada no estudo crítico das fontes.  Entre 1596 e 1600, o Cardeal coordena a obra de restauro da igreja dos Santos Nereo e Acchileo, em respeito pelas préexistências e com acento no conceito do ristauro storico. As obras de ‘restauro storico’ do Cardeal D. Henrique e do Arcebispo D. Teotónio nas igrejas da Arquidiocese eborense (Santa Maria de Machede, S. Manços, Tourega) e velhos Santuários e lugares hierofânicos nos anos pré-Jubileu de 1600, reclamam estudo histórico-artístico pois atestam boa prática das teses baronianas. Casos como S. Manços (1596) atestam o pleno respeito da préexistência e até o papel arqueológico de verificação. Arquitectos como Mateus Neto e Pero Vaz Pereira têm importância que importa reconhecer. Na linha de André de Resende, a arte sacra tomou os santos paleocristãos locais (S. Manços, S. Gens, os mártires de Évora Vicente, Sabina e Cristeta, S. Cucufate, Sta Anonimata, S. Brissos, S. Torcato, os mártires da Concórdia, etc) como temas tridentinos que reclamam novas iconografias.