A Teoria da Arte no nosso tempo.

19 Maio 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

... De facto, há um contraste brutal entre esta prática e o dogmatismo, feito de certezas férreas, que pulula nos textos militantes das diversas correntes que se reclamam do pós-estruturalismo (feminismo, estudos visuais, pós-colonialismo, lesbian and gay studies, psicanálise, semiótica, etc.), que na sua aparente modernidade (escudados na crítica da objectividade científica de Thomas Khun e de outros pensadores pós-modernos) pretendem cristalizar e institucionalizar as suas certezas de uma forma totalizadora. Efectivamente, este tipo de movimentos mostra-se frágil quando abdica, contra natura, da consideração da polissemia, ambivalência e ambiguidade que encerram todas as obras de arte (sejam elas obras-primas ou produtos ditos «menores»), reclamando que a sua abordagem e a sua narrativa é a única possível e «verdadeira» – precisamente o inverso de uma Nova Iconologia que se ofereça como um discurso novo em nome da reflexão que inevitavelmente se abre em torno da inesgotabilidade e da trans-contextualidade que (como defende Arthur C. Danto) são características essenciais de todas as obras de arte e que as tornam, por isso, um fascinante instrumento de morosa contemplação, de profícua reflexão e de constante debate. 

Trazendo à colação historiadores de variada formação e de diversa metodologia, e pondo a tónica na análise globalizante a partir do indício, o historiador de arte José-Augusto França nos lembra que «a historia (da arte) é feita de céu e de terra, e seja qual for a ordem de preferência, a nossa obrigação é procurar num sítio e no outro (mesmo no céu, por inocente utopia) os factos e as crenças que lá estejam, os eventos e os mitos, que eventos são, de outra ordem.»(José-Augusto França, História: Que História?, Lisboa, Edições Colibri, 1996, reed. 2005). …Aliás, a questão que se nos coloca é sempre a mesma: dentro da sua dimensão mais ou menos regional (já que todas as obras de arte geradas ao longo da História são fruto de contextos regionais, pois tão frágil se torna definir-se a unicidade da sua permanência ao «centro» de onde emana), o que importa é saber situar e ver as obras de arte -- todas as obras de arte -- como objectos vivos, parcelas de um discurso integral e trans-memorial que interage a níveis históricos, formais, iconográficos, iconológicos, estilísticos e, sempre, estéticos. O caminho é o da conjugação metodológica de vias: a investigação dos arquivos, a análise laboratorial, a via estilística e comparativa, o re-conhecimento dos dialectos artísticos das obras de per si, na sua dimensão dialéctica de microcosmos de um tempo e de testemunho trans-contextual vivenciado. Também aprendemos isso com José-Augusto França.

É de explorar, neste âmbito, as tangentes que existem entre a Micro-História da Arte e o conceito que Aby Warburg (1866-1929) designou iconologia do intervalo e que analisa, sobretudo, os fenómenos de perenidades formais, aparentemente retardatários. Nesse âmbito, a memória imagética tende a anular o abismo entre passado e presente, «apaga o tempo» -- o que não significa que impeça a mudança, pois o que é transmitido nunca permanece igual na sua reinterpretação artística. O muito referido Aby Warburg desenvolveu uma teoria dos símbolos que passa pela ideia de que as Nachleben (memórias póstumas da imagem) são imagens simbólicas, em que o símbolo, ao condensar a tensão entre passado e presente, quebra o continuum histórico. O estudo da produção simbólica, no sentido em que a cultura pode ser vista como um modo de dominar o caos através do símbolo, remete para uma permanente tensão à escala da História e do indivíduo, entre reflexão e êxtase, como via onde a comunicabilidade em aberto das obras de arte se acentua (Umberto Eco). Assim, como conquista – nunca definitiva – da razão nas regiões do caos, a cultura artística abre um espaço intermédio entre impulso e acção. O conceito de História de Warburg fundou-se numa teoria da memória e do código imagético. A pesquisa deve trazer à luz conflitos tipológicos e trans-históricos, estudar o que permanece (mais do que passou) à luz da historicidade intensiva das Nachleben. A imagem dotada de «vida póstuma» é, na sua dinâmica, produtora de símbolos.Estudando a teoria de que as Nachleben são sempre imagens simbólicas, Warburg mostrou que o símbolo, materializando a tensão entre passado e presente, quebra o continuum da história e obriga a rever conceitos fixos como os de «atavismo periférico», «centro»,«vanguarda», etc etc: caso de tantas situações da arte portuguesa dos séculos XVI, XVII e XVIII, em fidelidades só aparentemente anacrónicas a modelos de decoração alinhados com o estilo dominante, que constituem óptimo testemunho da visão enunciada e obrigam a reavaliar o discurso das periferias artísticas como espaço onde a modernidade também é possível e, mais que tudo, desejada. Analisámos o problema, tão secundarizado pelos historiadores de arte, da análise micro-artística à luz da modernidade relativa das produções. Embora as experiências que se afirmam à margem dos grandes «pólos artísticos» não tenham muitas vezes acesso aos caudais eruditos de informação, elas mostram conhecer as flutuações de gosto que assistem naqueles «centros». Contraria-se, assim, a tese de que o «pólo central» seria sempre, por definição, lugar privilegiado da criação artística, enquanto que a «periferia» significaria apenas um afastamento geográfico e um grau de decréscimo qualitativo em relação àquele – pelo que se devia considerar a periferia como sinónimo de atraso…

Deparamo-nos, assim, com um sentido renovado de pesquisa: o estudo integral dos paradigmas de conhecimento estético sobre as diversas facetas de produção e recepção das artes. Dentro do seu apregoado regionalismo, muitas obras que nasceram e nascem em contexto de periferia não são inevitavelmente retardatárias, e constituem, sempre, um manancial de estudo extremamente cativante para uma História de Arte definida pela globalidade do facto artístico e sensibilizada pela resposta que brota de contextos de produção provincial.

Em suma, a Micro-História da Arte assume-se de cada vez ,maior importância na teoria e na prática de uma História da Arte globalizada pois alarga as possibilidades do saber ver as obras de arte (todas elas !), a vários níveis: 1.alargando o campo de análise aos espaços de periferia, senão de ruralidade, com um olhar ‘visto de baixo para cima’;2.definindo a perspectiva dinâmica da «circularidade cultural» (Ginzburg) a partir de uma leitura microscópica integrada e pluri-disciplinar;3.estimulando e qualificando a prática do comparatismo (as célebres «cronologias» e «quadros» de José-Augusto França);4.reavaliando o conceito de «iconologia do intervalo» (Warburg) no estudo dos comportamentos de atraso e manutenção de códigos;5.atestando as possibilidades de inovação que se afirmam muitas vezes à margem dos grandes «pólos artísticos»;6.reforçando a componente de uma antropologia social das artes;7.estudando melhor os fenómenos de repulsa e de iconoclasma;8.contrariando a tese de que só o «centro» é o lugar da criação, sendo a «periferia» apenas sinónimo de atraso;9.renovando o estudo integral dos paradigmas de criação estética sobre as diversas facetas de produção e recepção das artes; 10.dignificando (em tempo de feroz totalitarismo ultra-liberal, de primado do lucro e da exploração, com efeitos também na nossa área) uma componente humanística na prática da História da Arte e do Património.