A Utopia Arquitectónica e os seus pressupostos teóricos no dealbar do Renascimento.
7 Abril 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A «Utopia Edificatória» de L. B. Alberti. O caso da Sforzinda: A Cidade Ideal de Filarete. A Cidade Ideal de Leonardo da Vinci. A obra «Hypnerotomachia Poliphili» de Francesco Colonna: A Utopia Insular de Citerea. As Imagens Pictóricas de Cidade Ideal do Séc. XV. A existência de aspectos utópicos na Teoria da Arquitectura da Idade Moderna, que em meados do Séc. XV se começou a gizar com L. B. Alberti (1404-72), Filarete (c. 1400-c. 1465), Leonardo da Vinci (1452-1519), e na «Hypnerotomachia Poliphili» (ed. 1499) não é novidade, tendo-a já abordado. A utopia anuncia-se logo no Prologo do De re aedificatoria ao ser outorgada à Arquitectura, assim como às «molte e svariate arti… dai nostri antenati indagate», a missão de render felice la vita, além de que a Arquitectura, ou melhor, a «res aedificatoria», seria quanto mai vantaggiosa alla comunità come al privato, particolarmente gradita all’uomo in genere e certamente tra le prime» [ou seja, entre as principais artes] «per importanza»...Em Vitrúvio a missão da Arquitectura era contribuir para propiciar uma vida boa, com saúde e em segurança, como se explicita na história do recinto fortificado transferido por M. Hostílio de um lugar insalubre para outro saudável. A salubridade, nomeadamente a defesa em relação aos ventos e climas agressivos (na tradição hipocrática, o ar era visto como causa de todas as doenças), a par da segurança, que levava a recintar as cidades com muralhas, são dos principais e primeiros aspectos tratados no De architectura, ocupando os caps. 4 a 6, do Livro I.
Assim, quando Alberti proclama, nos alvores da Idade Moderna, como objectivo da Arquitectura, o tornar a vida feliz, opera-se uma deveras significativa mudança: o que até aí era tido como visando singelamente melhorar as condições de vida, propiciando saúde e segurança, e fazendo-o com intencionalidade estética (a venustas, de Vitrúvio), passa a ter uma finalidade eudemonística: aos homens da Idade Moderna já não bastava a vida boa, saudável e em segurança, queriam uma vida feliz! E a Arquitectura, particularmente agradável ao homem em geral e das mais importantes das artes, deveria ter papel de protagonista nesse projecto eudemonístico, que já se anunciava no citado poema de Petrarca, onde parece anunciar-se, também, o expansionismo das almas belas e da virtude amigas, que tanto veio a caracterizar o Ocidente, e em que nós, portugueses, embarcaríamos a partir de 1415 com a expedição a Ceuta. Mas aquilo a que se designa de Utopia Edificatória é a missão e o largo âmbito da Arquitectura, ou melhor, da res aedificatoria, tal como se define com Alberti, logo no Prologo do De re aedificatoria. Assim, à res aedificatoria é atribuído um tão vasto domínio, que somente os desertos lhe ficariam de fora, como séculos mais tarde o afirmará William Morris (1834-96), visando alertar para a delapidação da natureza pelos excessos da actividade edificatória do seu tempo. Neste Novo Mundo, operis futuri, no latim, expressa-se claramente o utopismo de Alberti, e o papel reservado aos Arquitectos e à Arquitectura. Mas esta postura parece também prefigurar a 11.ª tese sobre Feuerbach, de Karl Marx, que dá primazia à transformação do mundo em detrimento da sua interpretação.Os filósofos limitavam-se a interpretar o mundo, os arquitectos visavam a sua transformação e a da realidade. – Daí talvez, um filósofo, Nietzsche, os ter considerado os grandes serventuários do Poder. – Sim, porque Alberti é um espírito suficientemente nlúcido, consequentemente crítico, e demasiado complexo, para ter da Arquitectura uma visão simplista, apologética, ou corporativista. De resto, ao tempo, as corporações eram outras, contra as quais o conhecimento teórico de Alberti investe. A sua visão da Arquitectura, da res aedificatoria, está inserida numa estratégia de “cultura de dominação”, que tendia a colocar o homem e a sua vontade de poder no centro do mundo – a Weltanschauung da Idade Moderna mais determinante –, e de que a passagem em que afirma servir essa actividade para estender e consolidar o poder [da pátria e da comunidade] é bem significativa. E a isto não podia deixar de estar associada uma certa má consciência, de que a visão irónica e cínica, ora utópica ora distópica, que se expressa em muitas das suas obras literárias, serve como testemunho eloquente.
O Trattato di architettura, segundo texto teórico sobre Arquitectura produzido em Itália, e primeiro redigido em volgare (italiano) e contendo ilustrações, foi elaborado entre 1461-64, por Antonio Averlino detto il Filarete (φιλαρετής = amante da virtude), na corte de Francesco Sforza, Duca di Milano, ao tempo em que trabalhava nos projectos e obras do Ospedale Maggiore di Milano. No Trattato é proposta uma Arquitectura e um sistema de proporções com base nas medidas e proporções do homem, pois Adão fora o primeiro arquitecto, e a Arquitectura e as edificações, uma consequência do pecado original, porque o homem, exposto às agruras do tempo, tinha necessidade de abrigo. Apresenta uma proposta desenhada e exaustivamente descrita de cidade ideal, de natureza utópica, Sforzinda, de forma circular e traçado rádio-concêntrico de grande regularidade, inspirada na descrição da cidade eólica de Vitrúvio, de que, historicamente, constitui a primeira interpretação com expressão desenhada. Trata-se de uma utopia urbanística, correlacionada com uma utopia política – a utopia de uma cidade-estado, organizada segundo um ideal aristocrata, onde as casas da poveraglia são escassamente contempladas, reduzidas aos aspectos funcionais, perchè non v’entra troppa spesa, neanche magistero –, e com um carácter de obsessiva organização e previsão, como se veio a revelar próprio das utopias.BIBLIOGRAFIA:
Vitrúvio, Tratado de Arquitectura (De architectura ou De architectura libri decem, escrito entre 35-25 a.C., impresso entre 1486-1490, ed. G. Sulpicio), I, 4, 12, trad. do latim, introd. e notas por M. J. Maciel, ilust. Th. N. Howe, Lisboa, 2006, IST Press.Alberti, L. B., L’architettura (De re aedificatoria, escrito entre 1443-52, impresso em 1485), ed. crítica, trad. di G. Orlandi, introd. e note di P. Portoghesi, Milano, 1989, Ed. Il Polifilo.J. M. Simões Ferreira, Visões
de
Utopia:
As
Teorias
da
Arquitectura
e
as
Utopias
Políticas nos alvores da Idade Moderna, Dissertação de Mestrado em
Filosofia, FCSH / UNL, 2001