Ainda a Teoria da Arquitectura renascentista e a Utopia Edificatória.
12 Abril 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
O utopismo de Filarete não se limita a Sforzinda, a cidade ideal: há toda
uma série de propostas de edificação do
território, de que constam Portos de Mar, Aquedutos, Pontes, Igrejas,
Templos, Castelos, Torres, Palácios, Monumentos… Enfim, toda uma panóplia de
construções, em que parece ressoar a Utopia
Edificatória
de
Alberti, e um análogo desejo
de
construir
o
Mundo. A proposta urbanística de Leonardo da Vinci consiste num esquema
de
cidade
de retícula
quadrada, atravessada por canais derivados de um rio próximo; os canais e o rio tinham uma importância fundamental na estruturação
da
cidade do ponto de vista da higiene
e
da
salubridade,
e para a amenização do clima. As ruas seriam construídas em níveis diferentes: as do nível inferior eram destinadas à circulação
de carros e outros transportes para as
necessidades e
o abastecimento do povo… Pelas ruas altas não devem andar carros nem outras coisas similares, sim que são só para uso dos gentis-homens. Deste modo, à diferença em níveis
planimétricos das ruas corresponderia uma diferenciação de uso pelos níveis sociais da população. Pelas
passagens subterrâneas devem-se vazar as retretes, estábulos e similares coisas fétidas.Estas iriam desaguar no rio, através de grandes esgotos. As casas eram elevadas sobre arcadas e formariam quarteirões na sua disposição, sendo outras, tipo casa-páteo, voltadas para o seu interior, mas também formando quarteirões. A cidade esboçada e descrita por Leonardo da Vinci parece, por um lado, prefigurar as grandes cidades contemporâneas, com níveis diferenciados de tráfego, que começaram por ser
teorizadas, no princípio do Séc. XX, por Eugène
Hénard, com o seu conceito de rues pour étages, e que o crescimento do tráfego automóvel e dos meios de transporte
colectivo pôs em prática, através de túneis, viadutos sobre-elevados, e galerias. Por outro lado, se se atender à prescrição da total separação de classes sociais pelos diferentes níveis de arruamentos, parecem evidenciar-se as cidades descritas nas distopias
da Modernidade, de Aldous
Huxley, Eugeni
Zamiatine, e George Orwell, e que são o correlato urbanístico
das sociedades absolutamente estratificadas descritas nessas distopias.E,
na realidade, o progetto di città
e per una politica di urbanizzazione, parecem relevar mais da distopia do que propriamente da utopia. Com efeito, esta proposta de cidade, tão estratificada como jamais as houve (embora pareçam estar em marcha nos tempos que correm), e tudo isto conexionado com o desejo de autoridade para fazer a terra
obedecer; ou edificar e acrescentar a cidade para tornar eterna a fama do principe,
um condottieri, tende a caracterizar-se como expressando o desejo de edificação de uma cidade-sociedade radicalmente estratificada, onde se evitaria qualquer tipo de contacto entre os gentis-homens e a poveraglia, e vocacionada para o culto da autoridade, expansionismo, e obediência. É um tipo de ideal
aristocrático, análogo ao expresso no Trattato de Filarete, como se viu anteriormente, e que faz duvidar da caracterização idealista e positivista, à maneira de Hegel, ou de Michelet, da Cultura da Idade Moderna, com o suposto ideal de Homem no Centro do Mundo.
O utopismo atinge um ponto alto na Hypnerotomachia Poliphili, 1499, obra de autoria incerta (Francesco Colonna ?), que narra um sonho e, dentro desse sonho, o passeio de um par amoroso por uma selva densa e obscura (clara alusão ao Inferno de Dante), onde, quase como clareiras no meio dessa emaranhada selva, vão surgindo magníficos vestígios de um passado glorioso – a Antiguidade Clássica ! – materializados em monumentos, edifícios, ruínas e estátuas, além de amenos e agradabilíssimos jardins.Para os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna esta ilha é uma mina, pois tem analogias com as ilhas ou anéis concêntricos descritos por Dante em A Divina Comédia, e com a ilha de Atlântida descrita por Platão, e é claramente prefiguradora das ilhas de Utopia, de Thomas More, da New Atlantis, de Francis Bacon, e ainda da Civitas Solis, de Tommaso Campanella, além do que, pelo seu traçado, se deduz derivar da descrita cidade vitruviana e da filareteana Sforzinda, com os seus sistemas rádio-concêntricos. Mas o mais notável talvez é o sentido antecipatório, quer em relação às utopias urbanístico-arquitectónicas e utopias políticas, quer em relação ao culto dos jardins arquitectados ou pictóricos (picturesque), que se desenvolveria a partir dos Séculos XVII e XVIII, e que tantos aspectos utópicos viriam a revelar.
No total dos casos considerados os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura do Século XV salientam-se, revelando todo um forte desejo (libido aedificandi, como o designa Alberti) de transformação do Mundo, da Realidade, e da Vida, através de uma actividade edificatória (Industriam, Attività, a designaria Alberti), que toma por modelos a Arquitectura e Urbanística da Antiguidade, e que visaria restaurar o esplendor áureo (o aureo tutto, de Petrarca) dos Tempos Antigos, quando o Império Romano cercava todo o Mediterrâneo e se estendia pela maior parte da Europa Ocidental, Norte de África, e o Próximo Oriente Esse desejo, nas obras e casos considerados, exprime toda uma pulsão utópica (propensão utópica, como já foi designada), assinalada com maior evidência de significado de forma e conteúdo nos aspectos seguintes:
Utopia Edificatória, de Alberti: transformação do Mundo através da res aedificatoria (ou Arquitectura), visando tornar a vida feliz, mas não fornecendo modelos concretos, mimetizáveis, apenas um conjunto de regras operativas. Cidades Ideais, de Filarete e de Da Vinci: projectos de edificação de cidades ideais, inspiradas em Vitrúvio, marcadas pela regularidade do traçado geométrico – rádio-concêntrico (Filarete) ou ortogonal (Da Vinci) –, conexionadas com projectos de utopias de Estado, de sociedades aristocráticas.
Utopia Insular, da Hypnerotomachia Poliphili: representação de um ambiente paradisíaco (locus amoenus) e onírico, marcado pela regularidade de um traçado geométrico, inspirado em Vitrúvio ou Filarete, em que se operaria a união de Cultura e Natureza (com subordinação da Natureza pela Cultura), sublimada pela existência de Monumentos Arquitectónicos e Artísticos da Antiguidade, dispersos em todo o exótico ambiente por onde os amantes fazem a sua viajem. Ao contrário de Alberti, os outros casos exprimem-se em modelos desenhados.
Veja-se ainda o que se passa com as Imagens Pictóricas de Cidade Ideal.Existe um tipo de pinturas de ambientes urbanos imaginários, que se consideram como constituindo autênticas imagens de cidades ideais. A autoria das pinturas não está exactamente determinada, hesitando-se entre Luciano Laurana, Piero della Francesca, Francesco di Giorgio Martini. Em desenho, sob a forma de gravura, existe uma imagem do mesmo género que está identificada como sendo de Donato Bramante. São todas, sensivelmente, da mesma época: segunda metade do Século XV, princípios do Século XVI. – Vai-se mostrá-las e intentar uma interpretação visando evidenciar as suas características como imagens de cidades ideais, análogas às da Teoria da Arquitectura desse tempo.
Bruschi A., e.a. (a cura di), Scritti Rinascimentali di Architettura, Milano, 1978, Ed. il Polifilo.
Hénard, E., Études
sur
les
transformations
de Paris,
1903-1909, in
Sica, P., Antologia di urbanistica.
Dal Settecento a oggi,
Roma-Bari, 1980, Laterza.