Contributos sobre a importância de uma Nova Iconologia na prática da História da Arte no limiar do século XXI.

17 Maio 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

«(...) E então na sua memória pairava a velha inquietação: porque é que os homens têm tanta dificuldade em entender, sem explicações racionalmente formuladas ? Falta-lhes escutar a complexa voz da percepção. É que a compreensão da manifestação maior do espírito humano – a arte – não se reduz a uma observação directa e factual, tornando-se também necessário ver o que está para além do objecto, os mecanismos que o artista accionou na sua elaboração. Para decifrar os códigos e mensagens que pretendeu transmitir, para entender a complexidade da expressão artística, só vendo e apreendendo o tangível, o concreto, mas também o sonho que se encerra em cada objecto criado».  (ANTOINE DE SAINT-ÉXUPERY, Le Petit Prince, ed. Aster, Lisboa, pp. 10-11). 

A Iconologia não é a História da Arte nem a ela se substitui ou pretende substituir: é sobretudo um método de estudo que alarga – consideravelmente, deve dizer-se – o processo de análise integrada (e integral) das obras de arte tomadas em si como documentos vivos de conjunturas precisas e com significados mais ou menos perceptíveis. Como método de estudo, portanto, a Iconologia será uma vertente da História da Arte que, a par de outras frentes de aproximação às obras (fontes arquivísticas, leituras formais, contextualização histórica, métodos de laboratório, etc), analisa e reflecte sobre os vários significados intrínsecos das obras de arte particulares e sobre o sentido global dos programas artísticos. A Iconologia está de novo operativa e a justificar um espaço de intervenção, que é cada vez mais útil, senão imprescindível, nos estudos integrados da nossa disciplina. Já passou o tempo da estagnação, em que determinadas correntes teóricas da História da Arte  (designadamente aquelas conotadas com o pós-estruturalismo e com os estudo literários, mas também aquelas conotadas com uma Sociologia da Arte redutoramente entendida como tal) recusavam liminarmente o uso da Iconologia por a considerarem coisa ultrapassada, senão reaccionária – devido à sua identificação com a retórica universalista e humanística da disciplina. A verdade é que, no curso dos últimos anos a Iconologia adquiriu um novo fôlego e um novo enquadramento, beneficiando do forte criticismo que, sobretudo por via de algumas abordagens semióticas, envolveu as ânsias de crescimento e de maturação da nossa disciplina. A situação actual mostra assim o reforço de um pensamento iconológico amadurecido nos estudos integrados de História da Arte. Por um lado, multiplicaram-se os estudos dedicados aos mais significativos textos teóricos da Iconologia (Warburg, Panofsky, Schapiro, Saxl) e recuperou-se, com visão crítica, a bagagem intelectual e os métodos dos seus fundadores. Por exemplo, as mais importantes obras do quase desconhecido Aby Warburg só foram traduzidas para inglês na década de 90 tal como se «reavaliaram» a outra luz os escritos da fase europeia de Erwin Panofsky (mais especulativos e inovadores em comparação com os «receituários» da fase americana, que de certo modo estiolou a esfusiante contribuição inicial deste grande historiador de arte).      Por outro lado, tal como o avanço da Fotografia no final do século XIX provocou alterações significativas na forma de conceber e percepcionar o mundo, as possibilidades abertas nos nossos dias pela realidade virtual, pelas imagens digitais e pelas possibilidades de criação de gigantescas bases de dados de imagens (Axel Bolvig; Jerôme Baschet; Gertrud Schiller; e a base ICONCLASS criada por De Waal na Universidade de Leiden) parece provocar rupturas e abrir novas vias para a História da Arte, equiparáveis às que se começaram a trilhar por volta de 1900.

Com efeito, aquilo que podemos designar por Nova Iconologia (segundo a proposta recentemente de Axel Bolvig e Philippe Lindley) surge definido por um outro discurso: um esforço de análise que atenta mais ao estudo das funções da imagem e do seu «pensamento visual», das variações seriais que apresenta e da relação cognitiva e mnemónica entre ela e outras imagens (e entre estas e os públicos), do que na relação entre imagem e texto, como fizeram em geral as experiências ditas iconológicas da segunda metade do século XX. Após a morte dos seus fundadores, a Iconologia perdeu-se em exercícios que visavam encontrar tão-só a fonte escrita ou gravada de determinada imagem, recorrendo-se a uma pesquisa estéril nos mais obscuros manuscritos e nas mais crípticas passagens dos tratados de teologia medieval ou da literatura clássica, a fim de se identificar e explicar o «significado intrínseco» de uma determinada imagem. Atenta a estes limites hoje bem visíveis, a Nova Iconologia assume, pelo contrário, o contributo para o estudo integral daquilo que designamos por programa estético das obras de arte -- a polissemia das imagens e a consequente multiplicidade das suas interpretações e percepções --, aponta para a compreensão dos vários significados das obras de arte, e advoga a sua independência, como método, face à cultura escrita (tomada, erroneamente, como sinónimo de «cultura» no seu sentido mais lato). A nova prática iconológica procura explicar o sentido das imagens de forma micro-contextual, tentando perceber quais as expectativas dos diferentes públicos e quais as funções sociais que as imagens desempenharam (e desempenham) em determinadas circunstâncias. Neste sentido, a Nova Iconologia procura libertar-se do intelectualismo livresco que tornou a Iconologia uma actividade alheia à realidade social em que as obras são produzidas e procura libertar-se, também, do pesado lastro hegeliano (numa via reducionista do legado de Panofsky) em que a imagem é sempre vista como condensação visual, holista, do «Espírito de uma Época» (Zeitgeist). Esta renovada abordagem complementa-se com os novos sentidos de enquadramento (e de entendimento ideológico mais preciso) da Sociologia da Arte, à luz de determinados postulados marxistas (nomeadamente a caracterização do tecido laboral ou a dimensão ideológica e simbólica das obras) que melhor se reajustam com o novo olhar iconológico. Enfim, este deve alargar-se ainda à produção artística desaparecida e até àquela que foi tão-só projectada mas nunca realizada (a Cripto-História da Arte), assim  rasgando novos caminhos e possibilidades à indagação iconológica.

Em suma, a Nova Iconologia será mais um aglomerado de perspectivas abertas (logo, experimentais) oscilando entre a análise quantitativa e qualitativa, entre a contextualização histórica e a contextualização perceptiva, do que um rígido programa teórico-metodológico que vise instituir-se como «super-disciplina» das ciências sociais e humanas. O seu fascínio reside precisamente no desconhecimento do que está diante do olhar, na criação de formas imaginativas de encontrar programas estéticos, sem a ingenuidade (ou arrogância) de se apresentar livre de preconceitos ideológicos conotados com o Humanismo e advogar uma agenda política comprometida com os estudos patrimoniais e identitários.