Felicitá e Utopia na Cultura Artística Portuguesa do Século XVI: algumas considerações teórico-metodológicas a propósito.  

19 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumira que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza. Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã. 

Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.•Embora não tenha existido no Portugal quinhentista uma literatura artística abundante, a exemplo do que sucede em Itália e na vizinha Castela, os temas ligados às letras e artes tiveram alguma expressão sob influência do Humanismo cristão e o signo do neo-platonismo (quadro que seria alterado, a breve trecho, com a Contra-Reforma). A cultura do tempo de Luís de Camões, disse Sylvie Deswarte, situa-se num «campo de criação dotado de uma forma mentis, com uma imagística e uma inspiração filosófica idênticas»; tal clima, se não gerou um tratadismo artístico como género autónomo, veio abrir mesmo assim debates em torno da mudanças de paradigmas de vida em nome da efervescência criadora que exprimiu discursos de actualização face à Bella Maniera a seguir à viagem a Roma de Francisco de Holanda, António Campelo, Gaspar Dias, Venegas, e outros artistas. O ambiente de cortes literárias em que as humaniores litterae eram matéria de estudo, de debate arqueológico, abertas ao bucolismo do locus amoenus, à ressonância das antigualhas, a reflexões em torno de Vitrúvio e a ruína, às obras de Alberti e Serlio, o Mundo Antigo, as novidades cosmológicas, o estudo da matemática, temas agrícolas, citações de Hermes Trimegistro e outros autores clássicos, tudo gerou um ambiente propício à recepção da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa, e à produção de alguma expressão literária. Existiu um re-conhecimento da ideia motriz da arte, da consciência liberal dos praticantes e do sentido de felicidade que dela advinha (com Benito Arias Montano no seu presumível legado lusitano). Mesmo em clima repressivo de Contra-Maniera (que fechava o campo da irreverência dos artistas) a tradição do legado intelectual permanecia em aberto, e é de crer que dentro da Irmandade de São Lucas, instalada no Mosteiro da Anunciada, se seguissem linhas de debate teórico sobre o primado do debuxo e a ideia motriz da criação das artes, à luz do que ensinavam os tratados disponíveis. A tratadística de arte em Portugal nos séculos XVI -XVII não abunda de textos que se possam dizer significativos. Salvo os escritos de Francisco de Holanda e Félix da Costa Meesen, não dispomos de uma produção original de testemunhos sobre a essência da arte, para além do que marginalmente integra os receituários e manuais de trabalho de pintores, iluminadores e desenhadores. Mas é verdade que circulavam exs da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa sobre Arquitectura e Pintura .À dimensão do país, pouco de original se escreveu além de traduções e reapropriações de ideias. Entre 1548, data em que o pintor e  arquitecto Francisco de Holanda escreve  o famoso tratado Da Pintura Antigua (onde põe tónica do seu discurso na scintilla divina e no primado  do  disegno) e 1696, ano em que o pintor, escritor e poeta sebastianista Félix da Costa redige a Antiguidade da Arte da Pintura (elogio da liberalidade e memória sobre a nossa produção), mal se pressente na produção literária o ardor da teorização que permita falar de um corpo autonomizado de textos comparável a outras situações da Europa coeva. Desenvolveu-se, sim, a Caligrafia. No Renascimento, os humanistas, de Erasmo a Juan Luís Vives e João de Barros, preocuparam-se pela educação dos filhos-família a quem se destinavam lugares no aparelho de Estado, razão acrescida para dar bases de caligrafia harmoniosa segundo o humanismo cristão e a doutrina neoplatónica. Em clima de desenvolvimento das artes e letras no Portugal do séc. XVI, sob signo do neoplatonismo e influência do Humanismo (quadro alterado com a Contra-Reforma), a cultura do tempo de Camões, disse Sylvie Deswarte, situa-se num «campo de criação dotado de uma forma mentis, com uma imagística e uma inspiração filosófica idênticas».

Tal clima não gerou um tratadismo artístico como género autónomo, mas abriu debates a mudanças de paradigma e uma efervescência criadora que exprimiu discursos de actualização face à Bella Maniera a seguir à viagem a Roma de Francisco de Holanda, António Campelo, Gaspar Dias, Venegas, etc.O ambiente de cortes literárias em que as humaniores litterae eram matéria de estudo e se abria ao debate arqueológico, ao bucolismo do locus amoenus, à ressonância das antigualhas, a reflexões em torno de Vitrúvio e as ruínas,  a obra de Alberti e Serlio, os templos do Mundo Antigo, as novidades cosmológicas, estudos da matemática, temas agrícolas, citações de Hermes Trimegistro e demais autores clássicos, tudo gerou um ambiente propício à recepção da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa. Existiu sim um re-conhecimento da ideia motriz da arte, da consciência liberal dos praticantes. e mesmo em clima de Contra-Maniera (que fechava a irreverência dos artistas) a tradição do legado intelectual permanecia em aberto, e é de crer que dentro da Irmandade de São Lucas no Mosteiro da Anunciada, se seguissem linhas de debate teórico sobre o primado do debuxo e a ideia motriz da criação, à luz do que ensinavam os tratados disponíveis.