Sobre Rudolf Wittkower e a análise iconológica.

29 Março 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade...

     Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais  puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

     Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer, Ruidolf Wittkower e Erwin Panofsky, entre outros...

     Rudolf Wittkower (n. Berlim, 1901- fal. Nova York, 1971) foi um grande historiador de arte alemão, profundo conhecedor da arte italiana do Renascimento  e do Barroco; orientou os seus estudos segundo a iconologia de Aby Warburg e de Panofsky e as formas simbólicas de Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras de arte.  Estudou um ano Arquitectura em Berlim, para estudar depois História de Arte em Munique com Heinrich Wölfflin e em Berlim com Adolph Goldschmidt. Perito em arte renascentista italiana, recebeu a influência da Iconologia e demarcou-se do Formalismo de Wölfflin. No libro Born Under Saturn. The Character and Conduct of Artists: a Documented History from Antiquity to the French Revolution (de 1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a evolução da condição social do artista, assim como o seu carácter e a sua conducta social. Cumpriu o seu trabalho no Instituto Warburg de Hamburgo e em Londres. Entre outras publicações suas, cabe destacar:Principios arquitectónicos na época do Humanismo(de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de 1958), e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).

     Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes: 1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14. Interpretation of Visual Symbols.

     Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.

     Quando uma obra de arte nos toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho,  a História tendeu a denominá-la muitas vezes como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos, em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico, político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas que assumem fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se História de Arte sem recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às ditas «obras-primas» ? A questão tem a maior pertinência: a História da Arte tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos particulares  da produção artística se poderá fazer História de Arte consequente. Mas será mesmo assim ? Lembrando Aby Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em cadeia de que todas e cada uma são a parte activa. A noção de ‘obra-prima’ – quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível, consciente da necessidade de o preservar.

     Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melancolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também  ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.