Teoria da Arte e Iconologia: Aby Warburg e o nascimento do método iconológico.

15 Março 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A História da Arte, afirmou Aby Warburg, não se define no sentido cronológico ou evolutivo da análise estilístico-formal, mas sim através do estudo do sentido da involução morfológica que afecta de anacronismo todos os modos históricos e estilos. Urge estabelecer um espaço de reflexão e de investigação – Denkraun – que permita o projecto de uma psicologia histórica da expressãohumana a partir do estudo das imagens. Esse teatro será a Biblioteca, construída a partir de 1926 em Hamburgo para albergar a Kultgurwissenschstliche Bibliothek Warburg. Aby Warburg contribuiu para alterar radicalmente as bases de uma imagem evolucionista da história cultural, ao declarar impraticáveis as periodizações tradicionais. Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma antiga família de ricos banqueiros judeus, e teve a existência assegurada pela fortuna familiar, o que mostra, “pelo exemplo pessoal – disse-o em carta ao irmão Max Warburg de 30 de Junho de 1900 – que o capitalismo pode também levar a cabo um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance”. A tese que apresentou em 1891 em Estrasburgo sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, inicia um trabalho de investigação de décadas com objecto no Renascimento e na sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Logo aí começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” centro nevrálgico da sua investigação, tentou compreender o modo como ela é  dotada de enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e inserida num processo de transmissão de culturas, facto esse pleno de implicações na própria arte viva. Tratou de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Walter Benjamin, “escova a história a contra-pêlo”...), em que estas, não se reduzindo a simples documento da História, são dotadas de vida póstuma e mostram como é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar completamente diferentes. No estudo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, onde pela primeira vez refere o método iconológico, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época moderna.

 No estudo Arte Italiana e Astrologia Internacional no Palácio Schifanoja de Ferrara (1912) conclui: «A História da Arte tem sido até aqui impedida, por inadequadas categorias gerais da evolução, de colocar o seu material à disposição da ‘psicologia histórica da expressão humana’, que na verdade ainda não foi escrita». Com esse estudo, Warburg propõe a metodologia da «análise iconológica» que «não se deixa intimidar por um exagerado respeito pelas fronteiras e considera a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade como épocas ligadas entre si». Como conclusão final, uma frase tantas vezes citada, talvez pela estranha conjunção da nietzschiana referência ao «bom europeu» com a profissão de fé numa Aufklärung pouco convencional: «Com esta vontade de restaurar a Antiguidade, “o bom europeu” iniciava a sua luta pela Aufklärung naquela época de migrações internacionais das imagens que nós – de modo demasiado místico – chamamos época do Renascimento». Warburg  definiu como condição do pensamento a criação de uma distância entre o eu e o mundo a que chamou Denkraum, isto é, espaço de reflexão ou pensamento. A criação do Denkraum, do intervalo entre pólos opostos (oposição entre magia e lógica, conciliada nunca de maneira definitiva no pensamento), é definido como um modo essencialmente simbólico. O símbolo apresenta-se como produção da consciência da distância e a arte, enquanto órgão da memória social, a mais elevada produção simbólica. Na apresentação do Bilderatlas, em 1929, na Biblioteca Hertziana de Roma, Warburg disse: «Introduzir uma distância consciente entre o eu e o mundo exterior é aquilo que podemos designar como o acto fundador da civilização humana; se este intervalo [Zwischenraum] se torna o substrato da criação artística, então esta consciência da distância pode tornar-se uma duradoura função social, cuja adequação ou insuficiência como instrumento de orientação intelectual significa justamente o destino da cultura humana. 

Em 1923, numa célebre conferência que pronunciou na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, onde esteve internado durante cinco anos, e com a qual deveria provar que já estava em boas condições mentais para regressar a casa, Warburg fez uma incursão antropológica ao «ritual da serpente» dos Índios Pueblo, que tinha visitado vinte e oito anos antes, numa viagem à América. Aí, mostrando como o paganismo primitivo dessa tribo índia passa pelo paganismo da Antiguidade clássica e chega até ao homem moderno sob a forma de Nachleben, Warburg defende que  cultura humana evolui para a razão, o que significa, explicado na sua linguagem, que o símbolo substancial se transforma naquele simbolismo que só existe no pensamento. É a isto, e só a isto, que ele chama evolução da cultura humana. A história da cultura, mostrada em imagens, em símbolos, em monumentos que sobrevivem à história efectiva, apresenta-se, assim, para ele, como um processso de conquista (nunca finalizado, nunca obtido de uma vez por todas) deste Denkraum que é o resultado do confronto entre os pólos da realidade e da abstracção, da religião e da lógica, da prática mágico-religiosa e da visão matemática do mundo. O problema fundamental que se apresenta a Warburg, aquele que determina toda a sua visão da história, é este entrelaçamento de mito e iluminismo como componente essencial do pensamento ocidental. Nalguns momentos paradigmáticos do advento da razão – como são o Renascimento e a Reforma – ele descobre que o processo de desmitização (a dialéctica da Aufklärung) se revela problemático. Por isso é que o confronto entre as tensões bipolares tem a dimensão de uma luta trágica. Assim, a concepção da história de Warburg  implica um diagnóstico que nos dá conta de uma tragédia: a tragédia da cultura.