O Feminismo e os novos géneros da Teoria e da História da Arte.
3 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
da A vertente da História da Arte no feminino aberta com os estudos de Linda Murray e Griselda Pollock veio reforçar o poder de saber olhar e ver as obras de arte na sua plenitude, integrando naturalmente a produção das mulheres no seu campo de estudos e no seu devido contexto histórico. Trata-se de virar no campo das Humanidades uma página obscurantista em que dominou, também no campo da História da Arte, o preconceito, a homofobia e o sentido de menorização, dando ênfase a realidades que haviam estado desde sempre desvalorizadas, senão mesmo ignoradas: a arte criada por mulheres, assim observadas enquanto criadoras, acentuando ao mesmo tempo o ponto de vista que lança luz sobre tais mulheres observadoras que criam arte.
À luz dos novos caminhos
abertos pela História e a Crítica da Arte com as suas próprias orientações de
pesquisa, e as reflexões dinamizadas no último quartel do século passado, a abordagem feminista das artes
buscou a vertente das mulheres enquanto objecto de observação e criação
masculino (uma das tipologias persistentes ao longo da história da Pintura Ocidental)
e o lado das mulheres enquanto observadoras e criadoras. Esta dupla dimensão,
que engloba os temas da hegemonia do olhar masculino e as possibilidades do desejo, as fronteiras da nudez e a
‘colonização’ do corpo feminino, alarga sem dúvida o campo a História da Arte
praticada no nosso tempo a outras valências globalizantes, abrindo o necessário
debate em torno da produção artística no seu conjunto e inquirindo por que
razão pintoras tão importantes do século XVI-XVII como Lavínia Fontana e
Artemisa Gentileschi só tardiamente foram «descobertas», depois de desde sempre
terem sido vistas tão-só como filhas de pintores em cuja sombra, com maior ou
menor mérito, haviam seguido carreiras fugazes…
Olhemos o tão conhecido Cartaz
We Can Do It ! de J. Howard Miller (1943), primeiro grande ícone da
luta das feministas nos EUA e que, mais tarde, também na Europa dá valor
simbólico a tal movimento: esta célebre imagem de trabalhadora com lenço na
cabeça, que arregaça as mangas e assume a força necessária para as actividades
convencionadas como sendo exclusivas dos homens, nasce ironicamente no contexto
da última Grande Guerra, no seio da fábrica Westinghouse Electric Corporation,
com o fito de incentivar as mulheres americanas a colaborarem no esforço
militar, e só muito mais tarde (anos 80) se tornou, devidamente descontextualizada
e recontextualizada, ícone de luta da causa feminista. Dominava então uma linhagem da História da Arte «oficial», bem
pensante, académica, fechada na sua torre de marfim e mal escondendo a sua
vertente homofóbica e imperialista, parece ter esquecido durante muito tempo as
suas protagonistas mulheres, erradicando-as dos museus, das exposições e das
páginas dos seus livros…
Como diz Filipa Lowndes Vicente existe ainda uma arte sem História que precisa de ser reescrita, que precisa de
ser pesquisada a sério: aquela que foi produzida por artistas mulheres, e que a
História tradicional sempre colocou num plano subalterno, algo que se verifica
também no campo da arte portuguesa e só em anos recentes começou a ser revisto [1]. À parte os estudos sobre Josefa de
Óbidos (1630-1684) [2], existem vários casos de mulheres
artistas portuguesas que carecem absolutamente de estudo. Temos,
em suma, uma arte sem História que
precisa de ser reescrita, de ser pesquisada a sério, em torno da produção de
artistas mulheres, campo que a Histórias tradicional tem sempre posto em plano
subalterno e negligenciado. Que se sabe destas mulheres, que urge analisar em
exacta paridade com os homens do seu tempo ? Obras tão interessantes como a de
Damião de Froes Perym, onde se elogiam duas pintoras já atrás citadas, Josefa
de Óbidos (citada em certo documento, não como pintora, mas como «molher emancipada que nunca cazou») e D. Maria de Guadalupe de Lencastre e
Cardenas, destacam mais o «recato», a «modéstia» e as «qualidades
femininas» relacionadas com o lar, a educação dos filhos e as lides domésticas,
sem cuidarem de dar sentido de emancipação estatutária à mulher e referindo a
prática artística – mundo de homens – como natural mas limitada expansão
daquelas virtudes [3]...
[1]
Raquel HENRIQUES DA SILVA e Sandra LEANDRO (coord.), Mulheres Pintoras em Portugal, de Josefa d’Óbidos a Paula Rego,
Lisboa, ed. Esfera do Caos, 2013; e Filipa Lowndes VICENTE, op. cit.
[2] Vitor
SERRÃO, «Josefa d’Óbidos (1630-1684). A pintora, ’molher emancipada que nunca cazou’, e o elogio da inocência. A
‘escola de Óbidos’ e os novos ‘géneros’ da Pintura», in Mulheres Pintoras em Portugal, de Josefa d’Óbidos a Paula Rego,
cit., Lisboa, Esfera do Caos, 2013, pp. 16-39.
[3] João de SÃO PEDRO (com pseudónimo Damião de
FROES PERYM), Theatro heroino, abcedario historico, e catalogo das mulheres
illustres em armas, letras, acçoens heroicas, e artes liberaes (por) Damiaõ de
Froes Perym. - Lisboa : Regia Officina Sylviana, 1740.