A Cripto-História da Arte e as suas tipologias possíveis de abordagem.

15 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

No corpo de instrumentos de trabalho de que dispõem a História da Arte e as Ciências do Património conta-se o conceito operativo de Cripto-História de Arte, que assenta precisamente no estudo das obras de arte fragmentárias e mortas, ou seja, no papel que cabe aos indícios (mesmo de todo desaparecidos) para a caracterização histórica, artística, cultural, e estilística, dos vários «tempos» patrimoniais. Parte-se do princípio de que esta disciplina científica não deve ser restringida ao estudo das obras vivas, ou seja, os grandes monumentos, edifícios classificados e peças de valia museológica, mas também ao estudo daquelas muitíssimas obras que já desapareceram, por incúria ou destruição.

Acresce a utilidade de se estender esta análise dialéctica assente na noção de fragmento à essência de todo o património visto na sua máxima globalidade, ao estudo daquele que persiste truncado e, até, a projectos artísticos que quedaram inacabados ou não chegaram mesmo a realizar-se. Conceito com útil verificação prática pela comunidade científica, insere-se dentro de um quadro de pesquisa definido em vários níveis de abordagem (cripto-analítico, dedutivo, reconstitutivo, ‘encreativo’). Trata-se de visão alargada em termos teórico-metodológicos, assente na base de dados inventariais como instrumento maior, integrando as perdas patrimoniais no ‘corpus’ exaustivo de bens, ainda que fisicamente já não existam. Tal como a prescrutação micro-artística integrada (recorre-se aqui a Carlo Ginzburg), à dimensão de existências em contexto periférico, o conceito alarga este esforço de revalorização ao atentar na valência específica das franjas da paisagem construtiva em espaços de periferismo, incluindo a esfera dos patrimónios a preservar na dimensão por demais desvalorizada das micro-produções artísticas e evitando muitas das inexoráveis perdas que se sucedem no tempo.

Este reforço do testemunho das memórias ausentes, com recurso às 'obras mortas', ajuda a alargar a visão do património remanescente, reforçando o sentimento de fragilidade de que muitas vezes nos esquecemos, aduzindo-lhe memória valorativa e o testemunho acrescido das coisas que, por cataclismos ou incúria, já desapareceram – mas que não deixaram de fazer parte integrante de um tecido que urge reconstituír como testemunho integral de identidades. É por isso que o fragmento da obra parcialmente destruída é fonte essencial de reconstituição das correntes evolutivas do edificado, e assume importância para uma política de gestão integrada (e integral) do Património. Situamo-nos, assim, dentro de novas possibilidades abertas por uma investigação microscópica aplicada às artes, ou seja, o olhar antropológico de uma História vista de baixo para cima (utilizando-se aqui o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da «circularidade cultural» que o trabalho de Ginzburg perpecciona.     

As novas gerações de historiadores, críticos de arte, conservadores-restauradores e técnicos de património da era da globalização podem lidar melhor com a ruína envolvente porque aprendem nestas lições, que se tornam de evidenciada utilidade para uma cartografia de registo face à extensão brutal das perdas identitárias e para uma adequada intervenção preventiva. As possibilidades de intervenção de salvaguarda aumentam, também, fidelizadas ao respeito pelo valor máximo da autenticidade, tal como prescreve a Carta de Cracóvia. Mas se a história-crítica, na sua utilidade perene, fala com as obras de arte como obras em aberto (assim as definiu Umberto Eco), a verdade é que progrediu com dificuldade no seio de um mundo globalizado. Alargou a sua capacidade de análise crítica, sem dúvida, recentrou atenções regionais, disponibilizou apoios das tutelas, redefiniu o objecto de estudo com enfoque micro-artístico, amadureceu a sua visão patrimonialista sem peias auto-menorizadoras e reforçou esse seu entendimento (que só ela pode ter…) do discurso da arte como fenómeno que é, em todas as circunstâncias, inesgotável e trans-contemporâneo. Mas o dilema que permanece é que a força dessa consciência de saberes impõe sempre novas obrigações respostas dificilmente compagináveis com o fenómeno de descaracterização dos tecidos habitacionais.

Se o Património artístico só ganha pleno sentido se integrado em visão globalizante em que as suas perdas tenham lugar de referência, a História da Arte pode ajudar a revalorizar os espaços e obras ditos «menores» e justificar a sua preservação alargando perspectivas, pois só assim se entendem a caracterização dos mercados, as flutuações de gosto de artistas e clientes, o investimento ideológico dos mercados, os 'ciclos estilísticos' – em suma, tudo o que faz Património e caracteriza os espaços nas suas especificidades sui generis. Uma política de gestão integrada do Património Cultural deverá assentar no reforço da História da Arte, esteio fundamental de alargamento de uma consciência democrática de cidadania. Os inimigos deste estado de indiferença em que a ruína campeia são os de sempre: o estado da ignorância, a insensibilidade, a desonestidade, a auto-menorização e o preconceito redutor no olhar para a nossa realidade identitária, a desmemória multiplicada, o vandalismo e a especulação imobiliária…

É bem possível que persista uma dimensão aurática nas ruínas destes patrimónios eloquentes que se degradaram a tal ponto que, muitos deles, têm sentença de morte sem recurso. Creio que tal se percebe em muitas das imagem que aqui se registam, onde a beleza altiva das linhas construtivas, a particular expressão de estilo, o seu esforço de caracterizar o lugar e a relação estabelecida com a paisagem envolvente assumem, sem dúvida, uma via complexa de elaborações estéticas, que respiram uma aura ainda sobrevivente, ainda orgulhosamente afirmada. A respeito desse conceito oferecido pelo famoso filósofo marxista Walter Benjamin, é uma evidência que ele se aplica com propriedade a muitas destas arquitecturas devastadas pelo tempo e pela pressão dos interesses. Para esse autor, os conceitos de aura e de imagem dialéctica (categorias de História, Tempo, Melancolia e Alegoria), tal como modos de analisar a própria História global enquanto processo transformador (e não como mera evolução linear e positivista), devolvem-nos consciência de que as criações humanas que se desfazem em pó, mesmo quando truncadas da sua original complexidade, podem continuar a merecer um olhar estético demorado. O conceito abriu um processo de trabalho com futuro, segundo o qual a produção artística nos solicita, em última instância, uma mais dinâmica abordagem das relações intrínsecas entre produção cultural e estruturas sociais envolvidas. Sobre a aura, referiu no seu célebre ensaio de 1936 o seguinte: «A singularidade é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura»… O talento analítico de Benjamin expressou-se no modo como soube entrever relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa grande capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo. São valores fadados para longa sobrevivência, que interessam à prática da História-Crítica da Arte, e que explicam, de certo modo, os mecanismos paragonais de gosto e de repulsa, de marginalidade e de massificação, de deriva repressiva e de ruptura vanguardística.

É lugar comum e verdade indesmentida (por muito incómoda que seja) dizer-se que o estado do Património nacional suscita cuidados e impõe medidas cautelares, além do estudo e divulgação consequentes. São muitos os casos de património histórico-artístico, tanto erudito como vernacular, que vivem situações de ameaça, roubo, descuido, desmemória, delapidação, abandono e ruína pura e simples... basta verem-se as imagens deste livro para se perceber  o quanto isso é inquestionável e uma dolorosa  verdade. E, todavia, é este mesmo património, tantas vezes subvalorizado, que melhor define -- juntamente com a língua portuguesa -- as especificidades culturais de um território como o nosso, e justifica, por isso, um programa de salvaguarda em globalidade a partir dos princípios da Gestão Integrada do Património. A destruição consentida do património construído, fruto de políticas descoordenadas, da insensibilidade crescente, de valores de grosseira auto-menorização, de falta de prioridades no esforço de salvaguarda – sacrificado a altos interesses imobiliários e especulativos – avisa-nos para o imperativo de se desenvolver uma carta de direitos e deveres de cidadania no campo da fruição de bens que são, antes de tudo, pertença das comunidades. Esse deverá ser um dos imperativos de uma Democracia avançada e participada: na nova definição de Património sem fronteiras, cabe o entendimento valorativo de todas as unidades artísticas criadas pelas comunidades ao longo de séculos (ontem, hoje, amanhã...), em atenção à especificidade de peças (monumentos, objectos, conjuntos e espaços) que só numa perspectiva de globalidade (que a História da Arte assegura) podem ser integralmente preservadas. Nunca é de esquecer que o património construído é testemunho de identidade, valor de inesgotável poder encantatório, mas também, e por isso mesmo, é frágil e perecível e exige esforços congregados das tutelas e pessoas no sentido da sua cabal preservação.

A consciência da salvaguarda do património artístico, cultural e ambiental impõe um esforço pluri-disciplinar que visa congregar a comunidade científica no seu conjunto (arquitectos, arqueólogos, técnicos de conservação e restauro, etnógrafos, museólogos, bibliotecários-arquivistas, autarcas, galeristas, historiadores, etc) e ganha ênfase no trabalho da História da Arte, disciplina cuja metodologia no estudo de monumentos, espaços e obras a torna ponto de encontro fundamental para se reforçar a imperiosidade da defesa desses valores-memória e o imperativo político de estratégias de análise, formação profissional, salvaguarda e fruição adequados às necessidades do nosso tempo. Esta disciplina, cuja emancipação no quadro científico é uma realidade, está apta a intervir neste processo de reabilitação, com a metodologia em que se alicerça e com os seus instrumentos de análise dos conjuntos e obras de arte.  É certo que não se pode defender aquilo que se desconhece; por isso, a História da Arte vocaciona-se para activar projectos integrados de estudo histórico-artístico, inventário, salvaguarda e redignificação dos bens patrimoniais com técnicos de outros saberes e práticas. O estancamento das perdas decorre desse estudo histórico-artístico aprofundado e de um exaustivo recenseamento de bens. Cada vez mais o investimento nesta área (num país pobre como o nosso) se assume mais-valia social e, face à realidade, não pode mais ser adiável. Sendo o património um dos pilares de identidade cultural que, por sua vez, se transforma em testemunho vivo para as gerações vindouras, reforçando laços de memória e encantações auráticas, é fundamental intervir em prol da sua preservação ou, quando este se torna impossível, assegurar o seu recenseamento cripto-artístico na base do inventário nacional. O entendimento das obras de arquitectura e arte numa perspectiva globalizada, dentro de um conceito de História da Arte Total sem preconceito que se abra também à dimensão não-erudita e à valência das perdas, à luz de uma articulação de múltiplos saberes, dá-nos maior capacidade de perscrutar a memória oculta das peças artísticas, desvendar as razões da sua produção, deslindar os seus programas estéticos, ideológicos e iconológicos, captar o seu sentido último que nos permite, não raras vezes, devolver-lhes vida e justificar a sua existência travando a sanha destruidora.

A análise globalizante do tecido patrimonial nas suas múltiplas existências abre-nos um campo do conhecimento (a que chamaríamos antropologia artística) e que nos revela as vivências, exaltações e misérias, a grandeza criadora e as mediocridades epigonais, em tantos aspectos da produção das artes. Portanto, uma abordagem às obras de arte tem que ser entendida contando com a sua acção/reacção face ao meio envolvente e ao modo, mais, ou menos ajustado, da sua interacção enquanto espaço de passagem, uma existência que é em si, como diz Paulo Pereira, ética e existencial, além de artística. Elas foram acumulando memórias com pluridimensionalidade e constituem-se elemento-chave ao nível da abordagem de determinada realidade, transformando-a e transformando-se, em última essência, numa estrutura significativa que assume essa dupla dimensão de objecto de arte (peça integrante de um universo estético) e documento histórico (fonte primeira de conhecimento das vivências de um tempo e espaço precisos). Esta dimensão precisa do contributo de diversos meios e saberes imprescindíveis ao historiador de arte para maior compreensão da realidade patrimonial enquanto transmissora de memórias, ou seja, o desafio de analisar o discurso sempre renovado das obras de arte, das peças grandiloquentes às singelas construções não-eruditas.

A História da Arte portuguesa, depois de viver longa etapa de letargia, aprendeu a agir com visão e prática interdisciplinares, ancorada em três princípios fundamentais, ao assumir: a) uma doutrina com base teórica o mais possível alargada; b) uma metodologia com prática de contornos pluri-disciplinares; c) uma ética com base de princípios morais em nome da salvaguarda do património. A História da Arte e os técnicos de salvaguarda do património, em conjunto com as tutelas, os proprietários, os gabinetes de arquitectura e os conservadores-restauradores, devem saber unir esforços no sentido de definir um caderno de prioridades neste campo, como sejam:

1 -- identificar sem preconceito o objecto de estudo;

2 -- inventariar todas as existências em registo em globalidade;

3 – investigar, contextualizar, datar e revalorizar a história das obras em apreço;

4 -- pesquisar de modo sistemático as fontes documentais e arquivísticas;

5 – definir, caso a caso, o diagnóstico de conservação, prevenindo desgastes e perdas;

6 -- intervir no processo de restauro das obras, quando tal é imperativo

7 -- analisar as dinâmicas trans-contextuais e trans-memoriais das obras de arte;

8 – estudar as realidades artísticas num alargado contexto comparatista;

9 – divulgar, sensibilizar e revalorizar as obras perante a sociedade e o público em geral;

10 -- promover um turismo cultural qualificado, alargando alternativas de empregabilidade;

11 -- combater os especuladores de espaços  históricos e os traficantes de obras de arte;

12 -- promover verdadeiras políticas de Estado no sector, a nível local, regional e nacional, reforçando meios técnico-financeiros e poder dialogal entre serviços a nível das tutelas e das comunidades.

Impõe-se, em suma, entender os patrimónios construídos como corpos vivos com características vivenciais plurais, dialécticas e transformadoras, vendo-os como testemunhos histórico-artísticos contemporâneos na medida em que afectam o olhar do presente e podem constituir um garante de legitimação de identidades.  Algumas das obras, apesar da acelerada ruína que as corrói, tornaram-se actuantes elementos dinamizadores de paisagem e de sítio e, por isso, recuperaram parte da aura perdida, das suas memórias encerradas nas fímbrias das paredes de musgo, e da sua vivência social de outrora. Do que se precisa é da dinamização de uma pesquisa de sensibilidades junto a objectos que ainda não desapareceram e que resistem à destruição. Este entendimento globalizante de que aqui falamos é estético, histórico, ideológico, contextual, e afectivo, e segue um caminho traçado pela iconologia no estudo das obras de arte particulares, à luz da compreensão dos seus «pontos de vista intrínsecos» (como disse Aby Warburg [10]), ou seja, as condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, etc, que permitem visionar a sua aura e tirar dela a fruição ainda possível.29)


BIBLIOGRAFIA

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