Sumários

Teste presencial

17 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

TESTE DE TEORIA DA HISTÓRIA DA ARTE – Licenciatura em História da Arte

(1ª chamada) – 17 de Maio de 2018 – Prof. Vitor Serrão

 

 

 

I

Leia atentamente as sete seguintes questões e responda de modo suficiente, com estilo claro e num texto bem estruturado, com recurso a exemplos se e quando necessário, a TRÊS delas:

 

1.         Quais os limites que foram apontados, de um modo geral, à prática da Iconologia como processo de análise das obras de arte ? E em que medida esses ‘limites’ podem e devem ser contestados ?

 

2.         Em que sentido o conceito de aura formulado por Walter Benjamin (1936) expressa um novo modo de entrever relações estreitas e clarificantes entre a matéria bruta, o imaginário da produção de bens de consumo e a singularidade (aurática) das obras de arte ?

 

3.         Face à prática de investigação que tem desenvolvido, pensa que o conceito Trans-Contextualidade (tal como foi formulado por Arthur C. Danto) ajudou a reestruturar a História Crítica da Arte e a abrir novas vias de análise e fruição das obras de arte ?

 

4.         Quais as razões profundas do iconoclasma como prática destrutiva que se repete, com tão nefastos efeitos, ao longo da História e em que moldes pode ser considerada um terreno fértil de trabalho para os historiadores de arte ?

 

5.         O conceito de iconologia do intervalo, definido no início do século passado por Aby Warburg, abriu os historiadores de arte para um olhar em globalidade para o seu objecto de estudo. Em que termos esse conceito nos ajuda a situar os fenómenos da produção, época a época, sem constrangimentos nem visões preconcebidas ?

 

6.         Será que a abertura da História da Arte a vertentes «de género» (Feminismo, art outsider/Art Brut, arte pós-colonial, arte ingénua, street art, gay and lesbian studies,novos primitivos’, arte pública, etc) acentuou, num mundo globalizado como o nosso, a adequação da Teoria da História da Arte aos seus objectivos programáticos ?

 

7.         Uma visão globalizante e ontológica sobre o mundo das artes, como o definiu Theodor Adorno, atesta o quanto esse mundo nos traz de perene e de sublime, espécie de «movimento contínuo algures entre o efémero e o inesgotável». Será o conceito de sublime definido por esse filósofo da Escola de Frankfurt uma justificação para a História-Crítica da Arte no sentido da sua maior abertura analítica e crítica ?

 

 

II

 

Leia atentamente os dois seguintes textos e escolha UM deles para um comentário claro, bem estruturado, suficientemente desenvolvido e com reflexão original.

 

1.                  Comente o seguinte texto de Howard Becker (Mundos da Arte) a partir de uma visão mais ampla do conceito de artworld de Arthur C. Danto: «Para que as reputações das obras de arte se imponham duradouramente, os críticos e a gente ligada à esfera da estética devem estabelecer teorias da arte e critérios que permitam reconhecer o território da arte. Sem tais critérios, ninguém poderá formular juízos acerca das obras, dos géneros e das disciplinas que, por sua vez, determinam os juízos dos artistas». É justa esta perspectiva de «mundo da arte» que atribui a responsabilidade da reputação do artista ao trabalho colectivo operado no seio dos vários artworlds ? Ao realçar a cooperação entre estes, Becker destaca o momento em que a obra de arte se mostra, isto é, o momento de exposição: «O juiz só fala depois de exposto o caso; no caso do réu, tem de contratar advogado e, em cooperação, construir argumentos de defesa; ora o artista tem também de forma a sua identidade, buscar e obter parcerias, procurar formação, desenvolver técnicas. De forma leviana se afirma que o artista pode fazer o que bem entender e só depois terá sucesso em função do mundo da arte».

 

 

2.                  Como afirmou o historiador de arte e iconólogo alemão Aby Warburg (1866-1929), «a História da Arte é a investigação orientada e inter-disciplinar que visa o entendimento globalizante (estético, histórico, ideológico, contextual, trans-contextual) das obras de arte à luz da compreensão dos seus ’pontos de vista’ intrínsecos, isto é, das condições culturais, políticas, socio-económicas, ideológicas e das suas perdurações e continuidades – ou seja, o entendimento iconológico das obras». O autor defende, assim, uma espécie de Antropologia das Imagens, a partir dos conceitos de pathos (ou seja, a sobrevivência de formas) e das chamadas Nachleben (a vida póstuma dos códigos imagéticos, que transmigram e tendem a adquirir novas corporalidades). Note-se que estes conceitos vieram quebrar a tradicional visão histórica das artes como um continuum… Comente este belíssimo texto de síntese à luz daquilo que conhece dos conceitos de Warburg, sem deixar de se pronunciar sobre a sua aplicação no campo da Iconologia e sem esquecer o peso que a contribuição iconológica deste grande pensador alemão tem, sem dúvida, na reflexão teórica e na investigação da História da Arte do presente.

 

 

Vitor Serrão

 


Ideologia imagética e marxismo: Frederick Antal, Th. Adorno, Nicos Hadjinicolaou.

15 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Um balanço sobre a Sociologia da Arte e a Teoria da Arte marxista. O conceito de deologia imagética e a visão marxista: Frederick Antal, Theodor Adorno, Nicos Hadjinicolaou.



Theodor Adorno, a teoria da Estética e o conceito de 'inexprimível' artístico.

10 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

SOBRE THEODOR ADORNO E A ‘ESCOLA DE FRANKFURT’ (1903-1969)

A Escola de Frankfurt (Frankfurter Schule), de que a figura mais ilustre será Theodor Adorno, foi uma escola de teoria social interdisciplinar, dse perfil neomarxista, associada ao Instituto para a Pesquisa Social da Universidade dessa cidade. A escola reunia na origem filósofos e cientistas sociais que que acreditavam que alguns dos seguidores de Karl Marx tinham abastardado e limitado as suas teses, levando à ortodoxia. Muitos desses teóricos admitiam que a tradicional teoria marxista não podia explicar adequadamente o turbulento e inesperado desenvolvimento de sociedades capitalistas no século XX. Críticos tanto do capitalismo e do estalinismo, as obras desta escola apontaram para a possibilidade de um caminho alternativo para o desenvolvimento social. Apesar de todas as dificuldades e alinhamentos, os teóricos da Escola de Frankfurt usaram um paradigma comum, compartilhando assim os mesmos pressupostos e preocupando-se com questões similares. A fim de preencher as omissões do marxismo tradicional, recorreram outras escolas de pensamento, usando ensaios de Sociologia anti-positivista, Psicanálise, Filosofia Existencialista, Estética e outras disciplinas. Assim, as principais figuras da escola aprenderam e estudaram o pensamento de Kant, Hegel, Marx, Freud, Weber, Lukács, etc. Seguindo Marx, estavam preocupados em perceber as condições que permitiam as mudanças sociais e o estabelecimento de instituições racionais. A sua ênfase na componente crítica da teoria derivou significativamente da sua tentativa de superar os limites do positivismo, do materialismo e do determinismo, retornando às bases da Filosofia crítica de Kant e aos seus sucessores no idealismo alemão, principalmente a filosofia de Hegel, com sua ênfase na dialéctica e contradição como propriedades inerentes da realidade. Desde a década de 1960, a teoria crítica da Escola de Frankfurt tem sido guiada pelo trabalho de Jürgen Habermas na razão comunicativa, inter-subjectividade linguística, estética, e aquilo a que Habermas chama "discurso filosófico da modernidade". Mais recentemente, teóricos críticos como Nikolas Kompridis seguiram, como oposição a Habermas, a ideia de que ele tinha minado as aspirações à mudança social que originalmente davam propósito a vários projectos de teóricos críticos - por exemplo, o problema de que razão deve denotar, a análise e a ampliação de "condições de possibilidade" para a emancipação social plena e a crítica ao capitalismo moderno. Interessa-nos avaliar o legado desta escola de pensamento no campo da arte e da estética, em que o pensamento de Adorno foi especialmente original. «Todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas, o que sempre irritou a teoria da arte», disse. Desenvolveu os conceitos de incognoscível, de instável, de «determinação do indeterminado», na sua abordagem do fenómeno artístico, a partir da ideia de que «a arte não é um puro objecto hermenêutico».

Verdenor Wiesehngrund (Adorno) nasceu em Frankfurt, filho de Oscar Alexander Wiesengrund (1870-1941), judeu, negociante alemão de vinhos, convertido ao protestantismo, e de Maria Barbara Calvelli-Adorno, cantora lírica italiana e católica. Theodor passou a abreviar o último nome, utilizando o nome de solteira da mãe como sobrenome (Theodor W. Adorno, ou Theodor Adorno). Estudou música com a meia-irmã, Agathe. Frequentou o Kaiser-Wilhelm-Gymnasium, onde se destacou. Ainda na adolescência teve aulas de composição com Bernhard Sekles e leu Immanuel Kant com o seu amigo Siegfried Kracauer, especialista em Sociologia do Conhecimento. Mais tarde, diria que deveu mais a essas leituras que a qualquer de seus professores na Universidade. Na Universidade de Frankfurt (actual Universidade Johann Wolfgang Goethe) estudou Filosofia, Estética, Musicologia, Psicologia e Sociologia. Completou os estudos, defendendo em 1924 a tese sobre Edmund Husserl (A transcendência do objecto e do noemático na fenomenologia de Husserl), orientado pelo Prof. Hans Cornelius. Diz Adorno que essa tese foi muito influenciada por seu orientador. No fim da graduação conhece já dois de seus principais parceiros intelectuais, Max Horkheimer e Walter Benjamin.

Entre 1921 e 1923 publicou cerca de cem artigos sobre crítica e estética musical e conhece Vilma, com quem casaria. A sua carreira filosófica começa em 1933 com a publicação da tese sobre Kierkegaard. Em 1925 conhece um dos filósofos que mais o influenciaram, o jovem Lukács que, sendo crítico de Kierkegaard, decepcionará o jovem Adorno e o leva a renegar a sua obra de juventude (A Teoria do Romance, por completo, e a História e Consciência de Classe, em parte). Essas obras são pilares do pensamento de Adorno, que travará polémicas com Lukács por seus "desvios" de pensamento em prol do partido. Outro filósofo que influenciará Adorno de forma crucial foli Walter Benjamin, a ponto de Adorno afirmar que, em determinado momento de suas produção filosófica a sua maior intenção era traduzir Benjamin em termos académicos. Com o fim da Segunda grande Guerra, Adorno é um dos que mais desejam o retorno do Instituto para a Pesquisa Social a Frankfurt, tornando-se seu director-adjunto e seu co-director em 1955. Com a aposentadoria de Hokheimer, Adorno torna-se o seu novo director.

 

Últimos anos e morte. Próximo de sua morte, em 1969, Theodor Adorno envolve-se em polémica com o seu companheiro e amigo da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, por não ter apoiado os estudantes que, em 31 de Janeiro desse ano, interromperam a aula, tentando continuar, dentro do Instituto, os protestos que tomavam as ruas das capitais da Europa. Adorno chamou a polícia... Marcuse posicionou-se a favor dos estudantes e, numa série de cartas, repreendeu severamente o amigo, dizendo de maneira clara que "em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são actos legítimos de protesto político (...). Na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, através do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extra-parlamentar torna-se a única forma de contestação: desobediência civil, acção directa". Famosas foram ainda suas polémicas com Arnold Gehlen, filósofo e sociólogo conservador, um dos representantes, ao lado de Hamns Frever e Helmut Schelsky, da Escola de Leipzig. Adorno faleceu, por problemas cardíacos, no dia 6 de agosto de 1969. Está sepultado em Hauptfriedhof,Frankfurt am Maim, Hesse (Alemanha). Ao visar a produção em série e a homogeneização, a técnica de reprodução sacrifica a distinção entre o carácter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças em grande parte ao facto de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitectadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Assim, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que não só o Cinema como também a Rádio não devem ser vistos como arte... O facto de não serem mais que negócios, escreve Adorno, basta-lhes como ideologia”. Enquanto negócios, os seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

 

O Conceito de Indústria Cultural. O termo Indústria Cultural foi empregue pela primeira vez em 1947, quando da publicação da Dialéctica do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Numa série de conferências de rádio, em 1962, explicou que a expressão “indústria cultural” visa substituir “cultura de massas”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos detentores dos veículos de comunicação de massa. Os defensores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente dessa interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam os seus interesses.

A indústria cultural transporta todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, o de portadora da ideologia dominante, que outorga sentido a todo o sistema. Adorno fala acerca da ideologia capitalista, e sua cúmplice, a indústria cultural, que contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal modo que o resultado final se torna uma espécie de anti-iluminismo. Considera que o iluminismo teve como a finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e libertando o mundo da magia e do mito, e admitindo que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e a técnica. Ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A indústria cultural nas palavras de Adorno, “impede a formação de indivíduos autónomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo na sua forma mais avançada, a diversão e o lazer se tornam um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para se colocarem de novo em condições de a ele se submeterem. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem, nos tempos livres, e sobre a sua felicidade, determinando tão completamente a fabricação dos produtos para distracção, que ele não tem acesso senão a cópias e reproduções do seu próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que uma pálida fachada: o que lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando a ele o ócio“.

A Filosofia de Theodor Adorno, considerada das mais complexas do século XX, fundamenta-se na perspectiva da Dialéctica. Uma das suas obras marcantes, a Dialética do Esclarecimento, em colaboração com Max Horkheimer durante a Segunda Grande Guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo (uma crítica, fundada numa interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista, que Adorno chama “indústria cultural"). Também é uma crítica à sociedade de mercado que não tem outro fim senão o progresso técnico. A actual civilização técnica, surgida do espírito do Iluminismo e do seu conceito de razão, não representa mais que um domínio racional sobre a natureza, que implica ao mesmo tempo um domínio (irracional) sobre o homem; os diferentes fenómenos de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam mais que a pior atitude autoritária de domínio sobre o outro (neste caso Adorno recorre a outro filósofo alemão, Nietzche). Na Dialéctica Negativa, intenta mostrar o caminho de uma reforma da razão em si mesma, com o fim de libertá-la deste lastro de domínio autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela carrega desde a razão iluminista. Opõe-se à filosofia dialéctica inspirada em Hegel, que reduz ao princípio da identidade ou a sistema todas as coisas através do pensamento, superando suas contradições (crítica também do Positivismo Lógico, que deseja assenhorar-se da natureza por intermédio do conhecimento científico), o método dialéctico da “não-identidade", de respeitar a negação, as contradições, o diferente, o dissonante, o que chama também de inexpressável: o respeito ao objecto, enfim, e a recusa do pensamento sistemático. A razão só deixa de ser dominante se aceitar a dualidade sujeito / objecto, interrogando (e interrogando-se) sempre o sujeito diante do objecto, sem saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por inteiro. Tal admissão do irracional (pensar no irracional é pensar nas categorias tradicionais que supõem uma reafirmação das estruturas da sociedade) leva-o a valorizar a arte, sobretudo a de vanguarda, já por si problemática (como a música atonal de Arnold Schonberg, p. ex.), porque supõe uma total independência face ao que representa a razão instrumental. Adorno vê na Arte um reflexo mediado do real.

Da Crítica da Razão, Adorno chega também à crítica da linguagem. Toda a linguagem conceptual produz alguma forma de violência cognitiva, pois nunca podemos conformar totalmente as palavras aos objetos e sentimentos tal como eles são (contradição do não-idêntico). Como alternativa e complemento à linguagem conceptual, valoriza a linguagem artística, que consegue expressar irracionalidades, contradições e medos sem os violentar por meio de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, a obra de arte cria um mundo interno sem necessidade de se espelhar em objetos externos e incorrer em violência cognitiva.

Para Adorno, a postura optimista de Walter Benjamin em respeito à função mais revolucionária do cinema desconsidera certos elementos fundamentais. Embora deva a maior parte de suas reflexões a Benjamin, Adorno mostrou a falta de sustentação de algumas teses, que não trazem à luz o antagonismo que reside no próprio interior do conceito de “técnica”. Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica define-se em dois níveis: primeiro “enquanto coisa determinada intra-esteticamente” e, segundo, “enquanto desenvolvimento exterior às obras de arte”. O conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode desaparecer.


A História da Arte de género: um caminho que reflecte o crescimento da teoria da arte...

8 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Artes Visuais e Estudos de Género: o desenvolvimento da História da Arte a partir de novas reflexões teóricas. A arte pós-colonial. A arte do Feminismo. A arte Brut ou Art Outsider. A body Art. Os Gay and Lesbian Studies. A arte 'popular': ingénua, não-erudita, espontânea. A Street Art. As artes urbanas da marginalidade.

Tanto a partir de um tema representado ou do olhar que enfrenta a representação, como no seio da disciplina da História da Arte, a construção do seu objecto de estudo e do seu método, o problema artístico insere-se em múltiplas disciplinas de género. Nesse sentido, importa observar tais instâncias formulando elementos iniciais e críticos de uma História da Arte em dimensão transversal. Referem-se cpomo estudos de caso os objectos que desafiam perceptivamente, tematicamente, ou ainda historicamente o problema da estrutura dual-naturalista do género e seus dispositivos e marcadores ideológicos. Propõe-se alinhavar uma visada ampla sobre os movimentos da relação entre arte e género. Para tanto, observa-se também a necessidade de operar a desconstrução da posição sobre, por exemplo, a sexualidade, conclamando minimamente autores como Kubler, Foucault, Preciado, Butler, Linda Nochlin, Danto, etc, para em seguida trazermos tal questão para a crítica do campo da arte, cultura e história: como a arte é regulada, regula e depende do género como disciplina. 

Nesse sentido, trata-se de problema tanto clássico quanto anticlássico. Este olhar implica necessariamente umas demanda: redefinir o conceito de arte e o processo histórico de estabelecer novos valores – como sistema e conceitos fundadores do que consideramos arte dependem e se afirmam sob a nossa disciplina. Discussão sobre arte e artistas, temas e possibilidades de uma História da Arte de Género.


Ut Ars Theatrum: a arte como teatro do mundo.

3 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

UT PICTURA THEATRUM. Retórica e teatralidade nas artes.

Tomo emprestado o conceito de Ut Pictura Theatrum utilizado por Emmanuelle Henin num ensaio de incontornável consulta, uma espécie de viagem analítica e descritiva pelas formas, valências, discursos, simbologias e programas estéticos (com 'casos de estuido' na pintura portuguesa no tempo do Renascimento, do Maneirismo, do Barroco e do Rococó) seguindo quatro dimensões possíveis de abordagem:

1. em torno do seu sentido de narratividade activa, a partir de estratégias de encenação de e com as imagens;

2. em torno do recurso a tipos ilusórios de representação, a partir de articulações metafóricas de afectos e memórias;

3. em torno do seu papel no seio de uma teatralização simbólica do quotidiano, a partir de uma redefinição do papel mediador do proscénio cenográfico;

4. enfim, em torno do seu discurso de inesgotabilidades trans-contextuais segundo vertentes analisadas em cotejo com a literatura, o teatro, a literatura e outras áreas da esfera cultural.

Como tem sido matéria de abundantes estudos, a arte contemporânea do pós-guerra, ao privilegiar vias de expressão como o happening, a instalação e a performance, veio desenvolver e abrir os mercados artísticos ao impacto de novas dinâmicas de teatralização. Esse papel, que desde a época da Antiguidade grega se atribuíu ao proscenio na representação, ao criar uma espécie de suspensão da acção gerada em palco, gerando novas dimensões trans-contextuais e prolongando o uso da mediação pública, abriu às obras de pintura esse seu novo atributo, digamos assim, de mediador activo, de que fala Friedrich Kittler sobre o papel mediatizado(r) das artes, dotando as obras de pintura de um suporte proscénico imaginizável, que é inesgotável e convida os públicos à expressão plural de sentimentos e emoções.

Recordo o modo como, a partir da celebrada crítica de Platão ao Teatro e à teatralidade (formulada justamente por desvirtuar a missão tributada às obras de arte clássica, pelo seu poder de gerar equívocos, com perda do seu sentido simbólico e icónico), foi conceptualizada a exposição que esteve patente no Museu Berardo (CCB), com o sugestivo título Um Teatro sem Teatro (2007). Aí se reuniram centenas de obras, desde o dadaísmo, com nomes como Daniel Buren a Mike Kelley, Dan Graham, Oskar Schlemmer, ao pós-minimalismo de Bruce Nauman, James Coleman, etc, tendo como objecto propôr uma reflexão sobre os intercâmbios possíveis entre Teatro e artes visuais. A partir das teorias que transformaram o espaço clássico do Teatro (Vsevolod Meyerhold, Antonín Artaud, Samuel Beckett, Tadeusz Kantor) e fortaleceram a ligação às vanguardas artísticas (futurismo, construtivismo, dadaísmo), o fervor inventivo dos anos 60 produziu tentativas experimentais de estabelecer a união de discursos entre as várias artes (com ecos importantes até finais dos anos 80), e com as consequências que tais contributos iriam conhecer no território das artes, da pintura à fotografia, à escultura ou à instalação.Temos aqui bom ponto de partida para uma reflexão sob o ponto de vista da História da Arte e da Iconologia. Não perco de vista a lição de um clássico como O Mundo como Teatro. Estudos de Antropologia Histórica de Peter Burke (ed. Difel, colecção ‘Memória e Sociedade’ dirigida por Diogo Ramada Curto, tradução de Vanda Anastácio, 1992), onde a caracterização dos media no contexto da Europa dos séculos XVI-XVII se desenvolve a par dos estudos do imaginário social e a teatralização no seio das comunidades, em atenção aos sonhos, à história urbana, às crenças populares, à literatura de cordel, à festa, ao teatro de rua, às correntes das artes, à reforma das Universidades. Uma dimensão comparatista como esta mostra-nos que o Teatro na Idade Moderna europeia, entre outros dispositivos de comunicação influentes, foi capaz de intervir no espaço da existência humana, tornando-se chave fundamental para a inteligibilidade dos canais de narratividade activa. Recomendo também a obra de Marc Bayard, L'histoire de l'art et le comparatisme: les horizons du détour (Paris, éd. Somogy, 2007), que segue uma perspectiva de análise das obras de arte, que se afigura atractiva, explorando os conceitos e métodos de trabalho da Teoria da Literatura e da lição do Formalismo (morelliano) a fim de alargar pontes entre a História da Arte e o estudo dos estilos, a partir da analogia, diferenças, aproximação, variações, etc, paralelamente à ‘mise en question’ sobre o funcionamento da disciplina científica. A História da Arte tem usado (embora sem teorizar devidamente tal abordagem) a via comparatista, que constitui um referencial de base da História da Arte e da peritagem da Arte.

Quanto aos ecos desta narratividade teatralizada no campo das artes plásticas portuguesas ? Neste caso, é importante o ensaio de João Nuno Sales Machado A imagem do teatro. Iconografia do teatro de Gil Vicente. Leitura de “Breve Sumário da História de Deos” (tese de Mestrado na FLUL, 2002), onde o autor aprofunda a relação entre o Teatro de Gil Vicente e os sentidos teatralizantes na representação da pintura coetânea e constitui um dos raros títulos de referência num deserto de contribuições para o estudo integrado da arte do Teatro. O ensaio recente de Emmanuelle Henin, ‘Ut Pictura Theatrum’. Théatre et Peinture de la Renaissance italienne au Classicisme français (Genève, éd. Droz, 2007), veio destacar as similitudes entre a teoria das artes plásticas e os escritos sobre Teatro e arte dramática, bem como as flagrantes parecenças que existem entre a 'arte de comover' através da pintura de História (seja sacra, política, alegórica ou mitológica) e o drama que se representa em palco. «A originalidade de Molière, diz-nos, decorre do seu talento de pintar a verosimilhança através da caricaturação da vida real». Modelo eterno das artes da imitação, da ars naturans e da ut pictura poesis, a arte da Pintura passou a assumir, assim, os gestos da linguagem, a expressão das emoções vivas e a teatralidade dos discursos humanos. Noutro livro recente, Iconoclasm, Eroticism and Painting, in Early English Drama (ed. Rosemond Publ., London, 2005), a historiadora Marguerite Tassi explora esta íntima relação entre géneros artísticos, cotejando obras de teatro e de pintura produzidas durante o conturbado tempo do Seiscentismo inglês.

Procuro ver as obras de arte à luz do seu poder de convencimento crítico com a sua textualidade imagética, a sua retórica discursiva e o sentido de narratividade das suas ‘histórias’, sacras ou profanas (nível contextual), e também à luz do seu grau de encantação e multiplicidade de leituras, sejam estéticas, ideológicas, iconológicas e funcionais (nível trans-contextual). Sigo de certo modo a lição de Emmanuelle Harris, de William Mitchell, aplicadas aos estudos integrados da arte, da imagem e do teatro vicentino por Maria José Palla e João Nuno Machado. Tomo como exemplo algumas obras de Gregório Lopes, do Mestre da Lourinhã, Diogo de Contreiras, Gaspar Dias, Francisco Venegas, Simão Rodrigues, Diogo Pereira, José do Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, António de Oliveira Bernardes e João Glama Stroberle, onde é relevante a noção de teatralização cénica das composições.

Observo, assim, alguns sentidos da teatralização e dinâmicas possíveis do proscénio imaginizável a fim de acentuar o poder da retórica comunicativa transcontextual nas artes plásticas: a Tentação de São Jerónimo pelas mulheres demoníacas, tábua maneirista de Simão Rodrigues-Domingos Vieira, c. 1615 (na sacristia do Mosteiro dos Jerónimos), vista a par de uma pintura de Oskar Schlemmer patente na exposição Um Teatro sem Teatro, no Museu Berardo, CCB, Lisboa, 2007, traduz estratégias distintas de conceber os discursos da composição e, contudo, ambas aspiram a um mesmo sentido: o de perpetuar uma impressão durável de carga simbólica. A série da Vida de São Jerónimo da sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, pintada no princípio do século XVII, é um óptimo exemplo desse sentido da narratividade teatralizada aplicável às artes plásticas em tempo de Contra-Reforma e no contexto da arte católica de propaganda. São poucas as representações específicas de Teatro na arte portuguesa anterior ao século XIX. Além da conhecida tela O Pátio das Comédias, pintura anónima da primeira metade do século XVII (Museu da Cidade), mostrando a relevância do teatro no sistema cultural do Barroco, destaco um pormenor do painel de azulejos A Retórica (da Galeria das Artes Liberais, Palácio dos Marqueses de Fronteira, Lisboa, c. 1670), com raríssima representação de um teatro de rua. Esse painel de azulejo, todavia, buscou inspiração directa (algo anacronicamente) numa gravura de Jan Sadeler segundo modelo de Maerten de Vos. Infelizmente, este detalhe de peça teatral na azulejaria barroca não é um acto de representação de visu, mas tomado exactamente a partir dessa estampa maneirista de Antuérpia, em que, como atestou Ana Paula Correia, todos os azulejos da Galeria das Artes Liberais se inspiraram. Apenas se verifica a omissão de uma das figuras de actor, cujo gesto inflamado pode ter constituído razão de censura numa série decorativa que se pretendia mais comedida e decorosa...

Nas representações da pintura portuguesa dos sécs. XVI-XVII, tanto sagrada como profana, o sentido de narratividade activa (seja o Inferno dantesco, o fabuloso mundo de Ovídio ou a exaltação do imaculismo mariano) constitui veraz estratégia de encenação do real, isto é, do inteligível, a partir do jogo de imagens tornadas tipos ilusórios de representação, que se desdobram em pretextos para a teatralização simbólica do quotidiano. Tenho em vista, por exemplo, duas obras-primas da pintura do Maneirismo nacional: a Aparição do Anjo a São Roque de Gaspar Dias, c. 1584, na igreja de São Roque, e a Alegoria da Imaculada Conceição de Francisco Venegas na igreja da Luz de Carnide (c. 1590), extraordinários exercícios da cenografia teatralizante, jogando no palco das ambiguidades com seduções plásticas e convites multiplicados a um olhar intimista e crítico. Estes serão bons exemplos da prática de uma narratividade activa e de uma representação cénica imaginizada, com aberturas múltiplas ao olhar dos fruidores e convites diversificados de mediação.

Em suma: poderei desenhar, dentro desta linha de inquérito histórico-artístico e iconológico, uma espécie de esboço tipológico para uma análise comparatista da arte do Teatro versus arte da Pintura, nas suas múltiplas relações discursivas, cenográficas e imagéticas, a partir de cinco items possíveis sobre o corpo em representação e a representação do corpo em movimento :

a) O corpo visto como alegoria moral: testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais; 

b) O corpo como magia de Eros: a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas;

c) O corpo como equívoco: testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros;

d) O corpo como pecado e crítica: a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a efemeridade;

e) O corpo como pretexto de teatralização, sempre: tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico, espectáculo cénico.

Neste dealbar do século XXI em que nos encontramos, é confrangedor notar-se a falta de estudos conjuntos sobre Teatro e Pintura em terreno português. Todavia, se se entender sempre a obra de arte em contexto e em trans-contexto, recorrendo a uma ‘arqueologia de saberes’, ao olhar da iconologia e a uma relação com a literatura de espiritualidade, e outras, pode-se contribuir para dissolver alguma dessa espuma do tempo que dificulta sempre a leitura integral das obras de arte e, em consequência também, os estudos sobre a Arte do Teatro.