Ainda a Trans-Memória como instrumento de análise.

1 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A História a Arte deve estimular o conhecimento e a reflexão crítica sobre os sentidos da arte, em termos de produção autóctone, condições de mercado, encomenda, valorização, mobilidade de obras, permuta de peças artísticas e repercussão de correntes estéticas – ou seja, num sentido globalizante.

Nesse âmbito, partimos da definição de novos conceitos operativos que se consideram basilares para a prática de uma História da Arte-ciência que seja eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte e, também, útil e socialmente comprometida: a noção de PROGRAMA ARTÍSTICO, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (histórica, estética, ideológica, contextual, etc) das obras de arte à luz da compreensão daquilo a que o iconólogo Aby Warburg, entre outros autores, já definia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, as condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, valorativas, ideológicas, de perduração e continuidade, etc, para o pleno entendimento iconológico das mesmas; e a noção de TRANS-MEMÓRIA IMAGÉTICA, que busca (re)conhecer nas obras de arte as suas capacidades de perpetuação memorial, tornando-as um elemento fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-temporal sempre aberta. 

Seja qual for a circunstância histórica de concepção, de produção ou de fruição, as imagens artísticas são sempre um testemunho estético dotado de muitos sentidos. Elas apresentam-se ao nosso olhar com significações distintas e com variados traços de comunicabilidade que se expressam tanto no plano da sua estrita conjuntura de tempo e de espaço como, sobretudo, no plano de uma dimensão trans-contextual que lhes confere novos níveis de leitura. As obras de arte são, quase sempre, uma espécie de jogo de espelhos na sua qualidade natural de objectos vivos, dotados da capacidade de prolongarem a sua função pela fruição, de assumirem novos contextos e de se exprimirem em plenitude face a novos olhares. Aptas a gerar novos públicos na sucessão dos tempos, as obras de arte comunicam impressões, resguardam a sua complexidade originária e renovam os seus traços de encantação estética. Como afirmou o escritor Antoine de Saint-Exupéry, elas encerram tanto uma dimensão onírica quanto uma dimensão tangível, ambas essenciais para caracterizar a sua essência artística.É precisamente a dimensão memorial das imagens artísticas com os seus contornos nunca efémeros, ou neutrais, que se impõe analisar à luz das suas razões de ser, sejam ideológicas, religiosas, políticas, ou outras.

    ... E, sabemo-lo pela experiência que a Iconologia, a Semiologia e a Sociologia da Arte nos oferecem, as obras de arte são mais atraentes como interlocutoras dinâmicas de diálogos interrompidos quanto melhor explicáveis na essência do acto de produção que lhes deu origem, e na consequência dos actos de contemplação que, muito tempo depois, continuaram a legitimá-las, mesmo com o peso do esquecimento colectivo sobre os significados reais que um dia lhes deram origem e modelação criadora... Parece ser útil, assim, para uma maior riqueza metodológica na prática da História da Arte, recorrer à utilização de um novo conceito: o conceito de trans-memória aplicado ao estudo integral das imagens artísticas. Tal dimensão teórica tem em vista o entendimento de que a obra de arte, mais que um testemunho trans-contextual (como diria Arthur Danto, ou U. Eco  com o conceito de ‘obra em aberto’) apto a formar novos públicos cada vez que é alvo de um novo acto de fruição, é também um laboratório de memórias acumuladas que sobrevivem e perduram, seja nas franjas do subconsciente, seja na prática da criação e da re-criação dos artistas. 

     Apresentam-se, a terminar, alguns 'estudos de caso' na Arte Pública da cidade de Lisboa.