Casos de estudo no campo da abordagem iconológica: santiago Sebastián e as artes hispano-americanas.

17 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A linguagem emblemática e os programas artísticos organizados em séries ou ciclos narrativos: emblemas, hieroglíficos, carros alegóricos, cenas funerárias, hagiografias, prefigurações virtuosas, Sibilas, Profetas, Virtudes e Artes Liberais.

A Erwin Panofsky se deve a ampla difusão das teses warburghianas, ao estudar a arte figurativa conforme à sua natureza e aos seus códigos iconológicos (na obra ‘Studies in Iconology’, N. York, 1939), aos seus significados formais e simbólicos. A consciência de que a História da Arte tem de analisar sempre as tendências ideológicas, políticas, socio-económicas, religiosas, filosóficas e outras do ‘tempo’ a que se reporta a obra de arte em apreço tornou-se um dado adquirido – ainda que nem sempre possa ser, em si, caminho suficiente. A análise iconológica panofskiana conduz-nos ao estudo das visões do mundo da peça que analisamos – um conceito, afinal, tão próximo do conceito de «ponto de vista das obras» de Warburg... Recorremos a exemplos como o EMBLAMATUM LIBER de Andrea Alciato (1531) e a QUINTI HORATII FLACCI EMBLEMATA de Otto Vaenius (1669), bem como a outras obras de literatura iconográfico-simbólica para empreender um estudo exemplificativo de tendências e modos de ver integralmente as obras de arte, afectadas sempre pelos modos de ver do seu tempo e do seu contexto específicos, bem como pelas ‘nachleben’ retomadas de um imaginário imagético nunca interrompido... 

Aplicado ao campo da Arquitectura, a lição iconológica explica, por exemplo, o programa da igreja mexicana de Tepalcingo, estado de Morelos, que data já de 1759-1764, pese o seu pronunciado gosto arcaizante. O templo colonial mostra sólida ‘ideia’ iconográfica sobre a vinda de Cristo para salvar os homens do pecado, tema esse tratado em moldes populares mas com sabor românico pelo tipo da decoração, onde se exaltam os temas do CICLO DA FRAQUEZA, a REDENÇÃO (Paixão de Jesus Cristo), a DOUTRINA CATÓLICA (Doutores da Igreja e Evangelistas), e a MISERICÓRDIA DE DEUS, com a glória de arcanjos como mediadores entre a Divindade e a Humanidade. Sistematiza todo um elaborado programa em imagens da ESTRADA DA PURIFICAÇÃO, tratado a modos populares para uma clientela de índios e mineiros. 

As Virtudes e a Emblemática: a influência da obra de Otto Vaenius Quinti Horatii Flacci Emblemata (ou Theatro Moral de toda la  Philosophia de los Antiguos y Modernos, na  versão espanhola  saída em Bruxelas em 1669), com gravuras do mesmo autor, segundo textos de Horácio, exaltando os níveis moral, amoroso e místico.

A meditação sobre a Morte e a iconografia ao serviço da literatura moral.A difusão do Humanismo: Alegorias de Virtudes e Vícios, de Artes Liberais, de Profetas e de Sibilas, Triunfos neo-petrarquianos e outras retomas clássicas. Frontispício do livro Commentaria in duodecim Aristotelis libros de prima Philosophia, de Juan Gines de Sepúlveda, Paris, 1536. Os filósofos da Antiguidade (Sócrates, Platão,Aristóteles, Pitágoras, Cícero e Séneca) atestam  e exaltam o rigor da doutrina de Santo Agostinho. Só são ricos os que se enchem de virtudes, diz Cícero, por exemplo... As Entradas Virtuosas e os Triunfos alegóricos radicam no famoso

texto de PETRARCA ‘Os Triunfos’, que analisa sucessivamente os triunfos do Amor, da Castidade, da Morte, da Fama, do Tempo e da Divindade. Mudam neste tipo de representações petrarquianas os animais que puxam as carruagens: cavalos, no  triunfo do Amor, unicórnios, no da Castidade, bois, no da Morte; e elefantes, no da Fama, ou cervos, no do Tempo. O êxito destes esquemas levou a que também os deuses olímpicos sugerissem novos Triunfos, como Mercúrio, Apolo, Vénus, Ariadne, etc, e passou daí a personagens históricos, e outros. O senhor D. Tomás de la Plaza, em 1580, mandou decorar a Casa del Deán, em Puebla, com um conjunto de frescos alusivos aos Triunfos, adaptando o discurso petrarquiano a uma lógica contra-reformista.

Sibilas, videntes, profetas: Tal como os Profetas anunciam a vinda de Cristo aos judeus, as Sibilas da antiguidade revelam.-no aos pagãos. Os ‘Oracula Sibylina’ datam de Alexandria, no séc. II AC. (publicados em 1545), com dez Sibilas, destacando a de Tibur, que anunciara a Augusto o nascimento de Jesus. Em 1481, o domínico frei Filippo Barbieri escreve a obra Discordantiae nonullae inter sanctorum Hieronymim et Agustinum e aí

fala de DOZE SIBILAS, tal como os PROFETAS e os APÓSTOLOS. As Sibilas anunciaram as bases do Cristianismo: a sibila Eritreia fala da Anunciação, Samia da Natividade, Pérsica a Virgem Apocalíptica, a Europa a matança dos inocentes, a Tiburtina a Paixão; Cimeria, a maternidade; Délfica, a coroação de Maria; Hellespontica, o Calvário. Em 1601, em Colónia, foi publicado um ciclo de gravuras de Crispim van der Passe I, que teve grande difusão. Em 1621, em Cuenca, o Padre Baltasar Porreño edita uns populares Oraculos de las doce Sibilas.

Um caso português: o ciclo de frescos com Sibilas e Profetas da igreja matriz de Santa Maria de Machede (Évora). Reconstruída no início do século XVII segundo traça de Pero Vaz Pereira, arquitecto do Duque  de Bragança D. Teodósio II, a igreja matriz de Santa Maria de Machede é a mais antiga freguesia rural do actual Concelho de Évora, já que se sabe que o edifício foi sagrado em 1221, no reinado  de D. Afonso II (ainda que alguns defendam origem mais remota, de c. 672, ao tempo do rei godo Wamba). Teve obras importantes no tempo do Cardeal-Infante D. Henrique (1532). A campanha remanescente é brigantina e decorreu de 1604 (data da traça) até 1624 (data inscrita  no portal, de pedra de Estremoz).  Por estes anos, o interior sofreu grandes decorações, cabendo ao pintor  Pedro Nunes o novo retábulo (de que resta uma tábua) e a um pintor não identificado o ciclo que  reveste o interior com interessante ciclo fresquista de REIS, PROFETAS e SIBILAS, fruto de um complexo programa iconológico que caberá tributar a Pero Vaz Pereira, arquitecto e escultor ducal com sólida educação romana.  O pintor dos frescos, acaso oriundo dos estaleiros de Vila Viçosa, é desconhecido... Na segunda metade do século XVIII uma nova campanha depauperou o acervo artístico da igreja, com grandes remodelações na fachada e no presbitério e com frustes repintes no conjunto dos frescos seiscentistas com as Sibilas e Profetas, cujo teor iconográfico deixara de ter sentido e actualidade...