Ut Ars Theatrum: a arte como teatro do mundo.

3 Maio 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

UT PICTURA THEATRUM. Retórica e teatralidade nas artes.

Tomo emprestado o conceito de Ut Pictura Theatrum utilizado por Emmanuelle Henin num ensaio de incontornável consulta, uma espécie de viagem analítica e descritiva pelas formas, valências, discursos, simbologias e programas estéticos (com 'casos de estuido' na pintura portuguesa no tempo do Renascimento, do Maneirismo, do Barroco e do Rococó) seguindo quatro dimensões possíveis de abordagem:

1. em torno do seu sentido de narratividade activa, a partir de estratégias de encenação de e com as imagens;

2. em torno do recurso a tipos ilusórios de representação, a partir de articulações metafóricas de afectos e memórias;

3. em torno do seu papel no seio de uma teatralização simbólica do quotidiano, a partir de uma redefinição do papel mediador do proscénio cenográfico;

4. enfim, em torno do seu discurso de inesgotabilidades trans-contextuais segundo vertentes analisadas em cotejo com a literatura, o teatro, a literatura e outras áreas da esfera cultural.

Como tem sido matéria de abundantes estudos, a arte contemporânea do pós-guerra, ao privilegiar vias de expressão como o happening, a instalação e a performance, veio desenvolver e abrir os mercados artísticos ao impacto de novas dinâmicas de teatralização. Esse papel, que desde a época da Antiguidade grega se atribuíu ao proscenio na representação, ao criar uma espécie de suspensão da acção gerada em palco, gerando novas dimensões trans-contextuais e prolongando o uso da mediação pública, abriu às obras de pintura esse seu novo atributo, digamos assim, de mediador activo, de que fala Friedrich Kittler sobre o papel mediatizado(r) das artes, dotando as obras de pintura de um suporte proscénico imaginizável, que é inesgotável e convida os públicos à expressão plural de sentimentos e emoções.

Recordo o modo como, a partir da celebrada crítica de Platão ao Teatro e à teatralidade (formulada justamente por desvirtuar a missão tributada às obras de arte clássica, pelo seu poder de gerar equívocos, com perda do seu sentido simbólico e icónico), foi conceptualizada a exposição que esteve patente no Museu Berardo (CCB), com o sugestivo título Um Teatro sem Teatro (2007). Aí se reuniram centenas de obras, desde o dadaísmo, com nomes como Daniel Buren a Mike Kelley, Dan Graham, Oskar Schlemmer, ao pós-minimalismo de Bruce Nauman, James Coleman, etc, tendo como objecto propôr uma reflexão sobre os intercâmbios possíveis entre Teatro e artes visuais. A partir das teorias que transformaram o espaço clássico do Teatro (Vsevolod Meyerhold, Antonín Artaud, Samuel Beckett, Tadeusz Kantor) e fortaleceram a ligação às vanguardas artísticas (futurismo, construtivismo, dadaísmo), o fervor inventivo dos anos 60 produziu tentativas experimentais de estabelecer a união de discursos entre as várias artes (com ecos importantes até finais dos anos 80), e com as consequências que tais contributos iriam conhecer no território das artes, da pintura à fotografia, à escultura ou à instalação.Temos aqui bom ponto de partida para uma reflexão sob o ponto de vista da História da Arte e da Iconologia. Não perco de vista a lição de um clássico como O Mundo como Teatro. Estudos de Antropologia Histórica de Peter Burke (ed. Difel, colecção ‘Memória e Sociedade’ dirigida por Diogo Ramada Curto, tradução de Vanda Anastácio, 1992), onde a caracterização dos media no contexto da Europa dos séculos XVI-XVII se desenvolve a par dos estudos do imaginário social e a teatralização no seio das comunidades, em atenção aos sonhos, à história urbana, às crenças populares, à literatura de cordel, à festa, ao teatro de rua, às correntes das artes, à reforma das Universidades. Uma dimensão comparatista como esta mostra-nos que o Teatro na Idade Moderna europeia, entre outros dispositivos de comunicação influentes, foi capaz de intervir no espaço da existência humana, tornando-se chave fundamental para a inteligibilidade dos canais de narratividade activa. Recomendo também a obra de Marc Bayard, L'histoire de l'art et le comparatisme: les horizons du détour (Paris, éd. Somogy, 2007), que segue uma perspectiva de análise das obras de arte, que se afigura atractiva, explorando os conceitos e métodos de trabalho da Teoria da Literatura e da lição do Formalismo (morelliano) a fim de alargar pontes entre a História da Arte e o estudo dos estilos, a partir da analogia, diferenças, aproximação, variações, etc, paralelamente à ‘mise en question’ sobre o funcionamento da disciplina científica. A História da Arte tem usado (embora sem teorizar devidamente tal abordagem) a via comparatista, que constitui um referencial de base da História da Arte e da peritagem da Arte.

Quanto aos ecos desta narratividade teatralizada no campo das artes plásticas portuguesas ? Neste caso, é importante o ensaio de João Nuno Sales Machado A imagem do teatro. Iconografia do teatro de Gil Vicente. Leitura de “Breve Sumário da História de Deos” (tese de Mestrado na FLUL, 2002), onde o autor aprofunda a relação entre o Teatro de Gil Vicente e os sentidos teatralizantes na representação da pintura coetânea e constitui um dos raros títulos de referência num deserto de contribuições para o estudo integrado da arte do Teatro. O ensaio recente de Emmanuelle Henin, ‘Ut Pictura Theatrum’. Théatre et Peinture de la Renaissance italienne au Classicisme français (Genève, éd. Droz, 2007), veio destacar as similitudes entre a teoria das artes plásticas e os escritos sobre Teatro e arte dramática, bem como as flagrantes parecenças que existem entre a 'arte de comover' através da pintura de História (seja sacra, política, alegórica ou mitológica) e o drama que se representa em palco. «A originalidade de Molière, diz-nos, decorre do seu talento de pintar a verosimilhança através da caricaturação da vida real». Modelo eterno das artes da imitação, da ars naturans e da ut pictura poesis, a arte da Pintura passou a assumir, assim, os gestos da linguagem, a expressão das emoções vivas e a teatralidade dos discursos humanos. Noutro livro recente, Iconoclasm, Eroticism and Painting, in Early English Drama (ed. Rosemond Publ., London, 2005), a historiadora Marguerite Tassi explora esta íntima relação entre géneros artísticos, cotejando obras de teatro e de pintura produzidas durante o conturbado tempo do Seiscentismo inglês.

Procuro ver as obras de arte à luz do seu poder de convencimento crítico com a sua textualidade imagética, a sua retórica discursiva e o sentido de narratividade das suas ‘histórias’, sacras ou profanas (nível contextual), e também à luz do seu grau de encantação e multiplicidade de leituras, sejam estéticas, ideológicas, iconológicas e funcionais (nível trans-contextual). Sigo de certo modo a lição de Emmanuelle Harris, de William Mitchell, aplicadas aos estudos integrados da arte, da imagem e do teatro vicentino por Maria José Palla e João Nuno Machado. Tomo como exemplo algumas obras de Gregório Lopes, do Mestre da Lourinhã, Diogo de Contreiras, Gaspar Dias, Francisco Venegas, Simão Rodrigues, Diogo Pereira, José do Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos, Bento Coelho, António de Oliveira Bernardes e João Glama Stroberle, onde é relevante a noção de teatralização cénica das composições.

Observo, assim, alguns sentidos da teatralização e dinâmicas possíveis do proscénio imaginizável a fim de acentuar o poder da retórica comunicativa transcontextual nas artes plásticas: a Tentação de São Jerónimo pelas mulheres demoníacas, tábua maneirista de Simão Rodrigues-Domingos Vieira, c. 1615 (na sacristia do Mosteiro dos Jerónimos), vista a par de uma pintura de Oskar Schlemmer patente na exposição Um Teatro sem Teatro, no Museu Berardo, CCB, Lisboa, 2007, traduz estratégias distintas de conceber os discursos da composição e, contudo, ambas aspiram a um mesmo sentido: o de perpetuar uma impressão durável de carga simbólica. A série da Vida de São Jerónimo da sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, pintada no princípio do século XVII, é um óptimo exemplo desse sentido da narratividade teatralizada aplicável às artes plásticas em tempo de Contra-Reforma e no contexto da arte católica de propaganda. São poucas as representações específicas de Teatro na arte portuguesa anterior ao século XIX. Além da conhecida tela O Pátio das Comédias, pintura anónima da primeira metade do século XVII (Museu da Cidade), mostrando a relevância do teatro no sistema cultural do Barroco, destaco um pormenor do painel de azulejos A Retórica (da Galeria das Artes Liberais, Palácio dos Marqueses de Fronteira, Lisboa, c. 1670), com raríssima representação de um teatro de rua. Esse painel de azulejo, todavia, buscou inspiração directa (algo anacronicamente) numa gravura de Jan Sadeler segundo modelo de Maerten de Vos. Infelizmente, este detalhe de peça teatral na azulejaria barroca não é um acto de representação de visu, mas tomado exactamente a partir dessa estampa maneirista de Antuérpia, em que, como atestou Ana Paula Correia, todos os azulejos da Galeria das Artes Liberais se inspiraram. Apenas se verifica a omissão de uma das figuras de actor, cujo gesto inflamado pode ter constituído razão de censura numa série decorativa que se pretendia mais comedida e decorosa...

Nas representações da pintura portuguesa dos sécs. XVI-XVII, tanto sagrada como profana, o sentido de narratividade activa (seja o Inferno dantesco, o fabuloso mundo de Ovídio ou a exaltação do imaculismo mariano) constitui veraz estratégia de encenação do real, isto é, do inteligível, a partir do jogo de imagens tornadas tipos ilusórios de representação, que se desdobram em pretextos para a teatralização simbólica do quotidiano. Tenho em vista, por exemplo, duas obras-primas da pintura do Maneirismo nacional: a Aparição do Anjo a São Roque de Gaspar Dias, c. 1584, na igreja de São Roque, e a Alegoria da Imaculada Conceição de Francisco Venegas na igreja da Luz de Carnide (c. 1590), extraordinários exercícios da cenografia teatralizante, jogando no palco das ambiguidades com seduções plásticas e convites multiplicados a um olhar intimista e crítico. Estes serão bons exemplos da prática de uma narratividade activa e de uma representação cénica imaginizada, com aberturas múltiplas ao olhar dos fruidores e convites diversificados de mediação.

Em suma: poderei desenhar, dentro desta linha de inquérito histórico-artístico e iconológico, uma espécie de esboço tipológico para uma análise comparatista da arte do Teatro versus arte da Pintura, nas suas múltiplas relações discursivas, cenográficas e imagéticas, a partir de cinco items possíveis sobre o corpo em representação e a representação do corpo em movimento :

a) O corpo visto como alegoria moral: testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais; 

b) O corpo como magia de Eros: a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas;

c) O corpo como equívoco: testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros;

d) O corpo como pecado e crítica: a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a efemeridade;

e) O corpo como pretexto de teatralização, sempre: tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico, espectáculo cénico.

Neste dealbar do século XXI em que nos encontramos, é confrangedor notar-se a falta de estudos conjuntos sobre Teatro e Pintura em terreno português. Todavia, se se entender sempre a obra de arte em contexto e em trans-contexto, recorrendo a uma ‘arqueologia de saberes’, ao olhar da iconologia e a uma relação com a literatura de espiritualidade, e outras, pode-se contribuir para dissolver alguma dessa espuma do tempo que dificulta sempre a leitura integral das obras de arte e, em consequência também, os estudos sobre a Arte do Teatro.