Sumários

A Caligrafia, arte primeira na senda da Liberalidade.

4 Outubro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Teoria da Arte: a dignitas da caligrafia. Entre Pintura e Caligrafia, de Giraldo Fernandes de Prado a Manuel Barata, um percurso pela arte engenhosa das letras no largo tempo do Renascimento

 

   Tudo começa no século XV e com a introdução da tipografia. Os humanistas do Norte de Itália, como intelectuais progressistas que eram, aspiram a ver impressas as suas obras com tipos desenhados com régua e compasso, numa harmonia assente em ‘proporções ideais’ capazes de reflectir a dignitas, a liberalitas e a virtú do homem do Renascimento. Os primeiros tipógrafos italianos usam as belas letras romanas, moldam os tipos de chumbo com formas derivadas de construções geométricas seguindo os padrões dos humanistas. O modo geométrico foi o processo ideal para conceber a arte do tempo, e também a Caligrafia se adequou às ‘proporções ideais’. Desenham-se de more geometrico caracteres que reflectem o antropocentismo e a harmonia do mundo, as belas proporções à luz dos princípios matemático-lógicos.

     Para os scriptores e calígrafos italianos, a famosa inscrição da lápide gravada na base da Coluna de Trajano por Apolodoro de Damasco, artista grego ao serviço dos romanos, foi a fonte inspiradora dos calígrafos, que viam nessas letras latinas a base-legitimação do rigor, legibilidade e beleza que se pretendia recuperar na arte de editar e escrever. O interesse pela epigrafia da Antiguidade greco-romana, e os estudos das proporções ideais (‘divinas’) do corpo em Leonardo da Vinci ou Albrecht Durer, levam à edição de tratados sobre a estética e proporções das letras versais romanas. Comum a todos é a inserção das letras no quadrado, a forma geométrica considerada pura. A qualificação da Caligrafia como verdadeira arte do Humanismo, apta a destacar valências estéticas e morais, vai ter enorme fortuna nos séculos seguintes, dando corpo às diversificadas formas de escrita, em nome da harmonia, ordem e sentido ontológico do mundo...

     Quando Aldo Manuccio discorreu sobre a forma geométrica das letras do alfabeto segundo a grelha quadrada (relação 1:9) e fez elogio da letra canceleresca (letra humanística) está consumada a ruptura com os scriptores medievais, que traçavam as letras à medida do olho, seguindo os cânones da ortodoxia monástica, enquanto que os calígrafos da Renascença reivindicam uma qualidade estética superior, em nome do antigo, usando a régua e o compasso para construir as letras. Para estes humanistas a perfeição e harmonia das artes baseava-se no estudo da perspectiva e da ciência das proporções numéricas e traduzia-se em figuras geométricas elementares (corte áureo). Estadistas, filósofos, cientistas, poetas, matemáticos, arquitectos, artistas recriam o pensamento dos filósofos greco-romanos, pesquisam os ideais estéticos, rejeitam as letras góticas (vistas como «bárbaras») e recriaram o uso da letra romana.

     A época de ouro da Caligrafia inclui livros famosos como o Champ Fleury de Geoffroy Tory (Paris, 1524), os de Luca Pacioli (Summa di Arithmetica Geometria Proportione e Proportionalita, 1494), Aldo Manuccio (ed. De Aeta de Pietro Bembo, 1495), Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori de 1535), Ludovico Arrighi Vicentino (La Operina, 1522, e Il modo de Temperare le Penne, 1525), Giovantonio Andrea Tagliente (La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere, Veneza, 1524), Giovanbattista Palatino (Libro nuovo d'imparare a scrivere Tutte Sorte Lettere antiche et moderne di tutte nationi, con nuove regole, misure et essempi, Roma, 1540, e Compendio del gran volume, 1566), e outros calígrafos italianos, bem como Gerardus Mercator (Literarum Latinarum, quas Italicas cursoriasque vocant, scribendarum ratio, 1540), o biscaínho Juan de Yçiar (Arte Subtilissima por la qual se enseña a escrevir perfectamente, Zaragoza, 1546, com várias edições), e ainda o calígrafo e secretário do Imperador Fernando I, Georg Bocskay (Mira Calligraphicae Monumenta, 1561-62), obras estas, muitas delas, patentes nas bibliotecas portuguesas e que puderam assim constituir fonte para os tratados de Giraldo de Prado e de Manuel Barata. Dos citados, um dos mais popularizados é o tratado de Giovannantonio Tagliente (1468-1527), mestre-calígrafo de Veneza que cria a letra ‘Bembo’, La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere. A fonte Bembo foi redesenhada por Stanley Morison (1929) com base no desenho de Tagliente. Existiu em Tagliente talento para aprofundar o modo simples de Arrighi, ao propôr letras floreadas a que chamou cancelleresca pendente (quase ilegível) como a letra Trattizata, a Bollatica e a Imperiale. Manifestamente, a Caligrafia queria renovar-se -- e individualizar-se, ao sabor de novas propostas estéticas. Das letras itálicas leva a palma a lettera cancelleresca (já em uso nas chancelarias das cidades-estado de Roma a Veneza, Florença, Siena, Milão, Pádua). Num outro livro (1531), Tagliente defende a arte da Caligrafia à luz da razão geométrica com propósito de educar o público: con la presente opera ognuno le potra imparare impochi giorni per lo amaistramento, ragione & essempi, como qui seguente vedrai. Também Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori, 1535, junto à obra de Sigismondo Fanti Liber elementorum theorica et practica, Veneza, 1514) seguiu nessa linha, compondo uma gravura com utensílios da arte da Caligrafia, depois utilizada no tratado de Palatino e no de Giraldo.

     Antes do livro de Manuel Barata (edições em 1590 e 1592 e presumivelmente já em 1572) as questões da arte da Caligrafia eram já patrocinadas e discutidas na Corte dos Duques de Bragança. No Renascimento, muitos são os humanistas, de Erasmo a Juan Luís Vives e ao português João de Barros, que se preocupam pela formação dos jovens da nobreza, os filhos-família de quem se esperam responsabilidades no aparelho de Estado, razão acrescida para lhes fornecer bases de escrita através de cartilhas, princípios pedagógicos e tipos caligráficos «cancellerescos». Os dados que se sabem sobre Giraldo de Prado são reveladores do seu destaque estatutário. É no seio da corte de Lisboa que, em 1560, desenha o Tratado de Letra Latina (Univ. de Columbia, New York), com objectivo de dignificar a Caligrafia e educar os príncipes (acaso D. João I, futuro 6º Duque de Bragança, filho de D. Teodósio I, com dezasseis anos) na letra cancelleresca. Em 1569-71, pinta e desenha as iluminuras do Compromisso da Irmandade das Almas da igreja de São Julião de Setúbal (Biblioteca Municipal de Setúbal), que andou mal atribuído a Francisco de Holanda. Essa Confraria foi fundada em Novembro de 1569, com Estatutos segundo modelo da Irmandade das Almas da igreja da Madalena de Lisboa, e teve Compromisso aprovado em Maio de 1571, pelo que a iluminação do códice tem de ser situada cerca de 1570-71. Em 1581, está estabelecido em Almada, mora no convento domínico de São Paulo e trabalha para o teólogo D. Francisco Foreiro, de seguida está ligado ao cronista régio Francisco de Andrada, em cujas casas passa a morar, e aos Sousas Coutinhos; pinta em 1584 a Bandeira Real da Misericórdia, é confirmado em 1585 cavaleiro da Casa Ducal de Bragança, recebe subsídio para sustento de uma moradia em Vila Viçosa, pinta os frescos da igreja de Santo António nessa vila ducal, em 1589 desloca-se a Braga, a pintar os retábulos do mosteiro de Vilar de Frades e em 1590 pinta as seis tábuas do retábulo da igreja da Misericórdia de Almada. Nesses anos, tem como criado e discípulo André Peres, que o substituirá no cargo de pintor da Casa de Bragança. Em Junho de 1591 recebe o devido pela pintura do retábulo da Misericórdia de Almada, entretanto dourado por Luís Álvares de Andrade e Francisco Rodrigues, dando-se quite da obra. Em 4 de Julho de 1592 falece nas casas de Almada e jaz em São Tiago. A viúva não ficou abonada: em Junho de 1604, Catarina Nunes nomeia procurador o padre Manuel das Chagas para receber da confraria de Nª Sª do Rosário de Montemor-o-Novo certa dívida (acaso de obra do marido), sendo testemunha o moço Luís do Prado, filho do casal, então criado de D. Francisco da Câmara.

      Resta dizer que -- embora ainda seja campo insuficientemente estudado -- a obra de Giraldo Fernandes de Prado para a Casa de Bragança deve ter incluído a direcção de projectos decorativos como os revestimentos a stucco e esgrafito maneiristas, caso de uma capela centralizada no Paço de Vila Viçosa, onde o ornamento estucado recorda o estilo de Giraldo. Além das tábuas do retábulo da Misericórdia de Almada, Giraldo deixou outras na Capela de Nª Sª da Luz da Sé de Portalegre, uma encomenda do Bispo D. Fr. Amador Arraes de que ainda restam três quadros do artista. Também são suas duas tábuas em Sesimbra e uma no Convento de São Francisco de Alenquer. Em Vila Viçosa há frescos seus na câmara-oratório de D. Teodósio I, recém-restauradas. Todas estas obras revelam as altas qualidades do cavaleiro-pintor dos Braganças. No Cap. 12 do Breve Tractado de lluminaçam, mss. anónimo de c. 1630 (Arquivo da Universidade de Coimbra), elogia-se o Prado pela qualidade das matérias-primas e técnicas que utilizava com sucesso na arte de dourar, policromar e iluminar.

 

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    Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592) nasceu em Guimarães, na nobreza rural ligada aos Prados, senhores de Farelões, serviu o condado de Barcelos, trabalhou para a Casa de Bragança em Vila Viçosa ao serviço de D. Teodósio II, viveu em Almada ligado a círculos da corte, foi pintor, iluminador, calígrafo e cavaleiro fidalgo e era  tido, segundo diz o padre lóio Jorge de S. Paulo, «homem de admiravel pincel na arte da pintura». A obra que tem sido identificada em data recente confirma esse qualificativo: foi nome relevante da geração de Luís de Camões, dos pintores Campelo e Venegas, do iluminador António Fernandes, do tratadista e arquitecto Francisco de Holanda.

      A Giraldo Fernandes de Prado se deve em 1560-61 o primeiro tratado português de Caligrafia, mss. que identificámos num arquivo nova-iorquino. Terá sido concebido para o ensino do filho de D. Teodósio I, D. João, conde de Barcelos e futuro 6º Duque de Bragança. O interesse histórico-artístico deste Tratado de Letra Latina (Columbia University, Rare Book & Manuscripts LIbrary, Cód. Plimpton, MS 297) e bem assim de outro mss. desse fundo (Manual para Copistas, Códice Plimpton, MS 296), também do português, e ainda inédito, impõe estudo integral e edição facsimilada. Os manuscritos procedem do fundo Georg Plimpton: em 1798 estavam em Mayence, em 1865 entram na posse do conde de Renessee Breidbach, em 1903 na de George Plimpton, cuja biblioteca é doada em 1932 ao actual arquivo. O tratado elogia a letra canceleresca à luz do humanismo cristão de Luca Pacioli (De Divina Proportione Veneza), Geoffrey Tory (Champ Fleury) e Aldo Manucio (De Aeta de P. Bembo) e a forma geométrica do alfabeto na grelha quadrada (relação 1:9). Tais tratados eram conhecidos de Francisco de Holanda e outros, e explicam as referências literárias e os círculos em que se movia Giraldo. Embora não tivesse sido publicado (por razões obscuras), o tratado de New York constitui testemunho valioso da Caligrafia portuguesa, e o seu primeiro manifesto. Em 1887-89, John William Bradley escreveu a seu respeito: «Giraldo de Prado. Calligrapher. s. XVI. Wrote at Lisbon, in 1560-1, a book of pictorial alphabets, with his signature frequently ocurring. Paper, 4to, 51 ff. The execution and ingenuity of design are said to be far superior to those of Palatino. Formerly in possession of Mr. Bragge, of Sheffield. Sold in 1876, at Sotheby's, Catalogue 23, n. 122».

     Apesar do que já se vai sabendo, Giraldo de Prado é ainda um nome esquecido da História da Arte. Todavia, foi artista de mérito, serviu na casa de D. Teodósio II e os seus talentos eram reconhecidos. Contemporâneo do escritor Fernão Mendes Pinto, do cronista Francisco de Andrada, de D. João de Portugal e outros ilustres, Giraldo foi homem da confiança de Manuel de Sousa Coutinho (o célebre Fr. Luís de Sousa), o que atesta personalidade culta com sólida educação italianizante e neoplatónica. Nesse contexto, assume papel pioneiro ao escrever um tratado de Caligrafia com valores pedagógicos e doutrinários e tipos caligráficos de «letra cancelleresca».

 

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     A arte da Caligrafia e as artes afins passaram a constituir um sub-domínio importante no contexto da História da Arte. No Renascimento, muitos humanistas, desde Erasmo a Juan Luís Vives e João de Barros, se preocuparam pela educação dos jovens da nobreza, os filhos-família a quem se destinavam lugares nas esferas do aparelho de Estado, razão acrescida para lhes fornecer bases de escrita e caligrafia harmoniosa segundo os valores do humanismo cristão e da doutrina neoplatónica.

     Os primeiros calígrafos portugueses de que se tem registo foram Frei Heliodoro de Paiva, filho do estadista Bartolomeu de Paiva e monge da livraria de Santa Cruz de  Coimbra, falecido em 1552, e João de Barros, que em 1539 deu à estampa uma Grammatica da Lingoa Portugueza. Quanto ao primeiro, porém, não resta obra, e o livro de Barros, embora incluindo xilogravuras com letras acompanhando a cartilha, não é propriamente um manual de caligrafia. O ensino dos filhos da nobreza uma prioridade na escala de investimentos da Dinastia de Avis. O humanista Clenardo, ao chegar em 1535 a Évora, onde a corte estadeava, fazia notar como floresciam os estudos dos príncipes, bom augúrio para a projecção do Reino português. A infanta D. Maria de Portugal (1538-77), princesa de Parma e Plasência, filha de D. Isabel de Bragança e do Infante D. Duarte, quando casou com Alessandro Farnese, Duque de Parma, fazia alarde de esmerada educação, com ensino das letras, da Matemática (por Domingos Peres) e conhecimentos de astrologia, filosofia e língua grega. Estas matérias eram ensinadas no Paço de Vila Viçosa nos anos dourados da corte do 5º Duque D. Teodósio I e dos sucessores. Campo nobilitante, a Caligrafia cresceu e não admira que tanto Giraldo de Prado e Manuel Barata, calígrafos de primeiríssima linha, fossem cavaleiros-funcionários da casa brigantina.

O facto de se tratar de uma actividade algo descurada nos estudos dos historiadores de arte, como se o seu desenvolvimento se situasse à margem da prática artística e não no plano mais fundo da sua essência, impõe que se destaque a sua presença nos círculos quinhentistas nacionais.

 

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     O códice manuscrito Plimpton MS 297 Tratado da Letra Latina por Giraldo Fernandes de Prado, de 1560-1561 (Columbia University, New York) é o mais antigo testemunho da arte da Caligrafia que se documenta em Portugal. A obra é anterior em doze anos, pelo menos, à edição do manual de Manuel Barata.

 Giraldo Fernandes de Prado mostra-se aqui homem de sólida cultura humanística. Revela domínio da Geometria e da Perspectiva e o gosto pela decoração de grotesco que depois perpassará nas suas obras a fresco. Os 51 fls. mostram originalidade, ainda que com citações de fls. de Içiar, Palatino e Tagliente: o fólio que representa objectos de calígrafo inspira-se num fólio de Sigismondo Fanti, Thesauro de scrittori (1535), mas ignora-se se alguma edição estava nas bibliotecas portuguesas ao tempo do Tratado de Letra Latina. As afinidades dos desenhos de Giraldo de 1560-61 são flagrantes quando cotejadas com os que ilustram o livrinho Exemplares de Diversas Sortes de Letras tirados da Polygraphia de Manuel Baratta, escriptor português, edição de João de Ocanha, Lisboa, tip. de Alexandre de Sequeira, 1592. Deste livro restam pouquíssimos exemplares: da edição de 1572, nenhum; da de 1590, quatro; e cinco da edição de 1592, um dos quais integra a Biblioteca Pública de Braga.  A obra de Barata mereceu encómio por ser considerada a primeira em que aparecem «os originais de Letras abertas em chapa» e a excelente letra chancelerescaa, bastarda itálica e romana». Tal como na edição de 1590, também a de 1592 contém dezoito folhas com modelos caligráficos (segundo chapas abertas em metal e madeira) de Manuel Barata. A obra foi publicada postumamente, junto com duas outras obras reunidas numa só: Tratado de Arismetica com mvyta diligencia, de Gaspar Nicolás (Lisboa, ed. Germão Galharde, 1519), e Regras qve ensinam a maneira de screver a orthographia da lingva Portuguesa, de Pero de Magalhães de Gândavo. Não se sabe com que objectivo João de Ocanha, livreiro do Duque de Bragança, propôs um livro-compêndio de pedagogia como este. Barata, de cuja vida pouco sabemos, morrera pouco antes; nascera na Pampilhosa, veio cedo para Lisboa onde se tornou calígrafo de renome, mestre de escrita do malogrado príncipe D. João, filho de D. João III, pai de D. Sebastião, e entrando (tal como Giraldo) ao serviço de D. Teodósio I na corte de Vila Viçosa.

     Concluindo: se uma das matérias nobilitantes que recebeu maior estímulo da parte dos Duques de Bragança foi a arte da Caligrafia; não admira que tanto Manuel Barata como Giraldo Fernandes de Prado, calígrafos de primeiríssima linha, tivessem sido cavaleiros-funcionários dessa Casa e figuras prestigidas. O elogio de Camões, num belo soneto que acompanha as ed. de 1590 e 1592 (e já deveria constar da de 1572) e é um verdadeiro elogio à arte da Caligrafia, diz o seguinte sobre Barata: «Ditosa pena, como a mão que a guia, / Com tantas perfeyçõens da sutil Arte, / Que quãdo com razão venho a louvarte, / Em teus louvores perco a fantasia. / Porém Amor, que effeitos vários cria, / De ti cantar me manda em toda parte, / Não em plectro belígero de Marte, / Mas em suave & branda melodia. / Teu nome Emmanuel, de hum noutro Pólo, / Voando se levanta, & te pregoa, / Agora que ninguém te levantava. / E porque immortal sejas; eys Apolo / Te offerece de flores a Coroa  /Que já de longo tempo te guardava».

     É certo que os livros de Arrighi, Palatino, Ludovico Vicentino e António Tagliente, e o Champ Fleury, deviam integrar as bibliotecas de Évora, Lisboa e Vila Viçosa e foram bases para Giraldo e Barata. Além dessas fontes de que ambos se serviram, é de referir a 5ª edição do Libro Subtilíssimo por el qual se ensenã a escrevir y contar perfectamente (Ortographia Practica), do calígrafo biscaínho Juan de Içiar, que Giraldo utilizou quando desenhava o seu tratado em 1560. Giraldo conheceu decerto essa quinta edição saída em 1559 (prelos por Miguel de Zapila) e nela se inspirou não só para a sequência de letras cancelerescas, mas ainda para o tipo de desenho de cinco ou seis dos fólios do seu Tratado de Caligrafia, que são similares aos de Içiar e prova cabal de que compulsou com demora o exemplar da edição de 1559, aliás integrado, ao que parece, na livraria do Arcebispo de Braga D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Esse ex. da Biblioteca Pública de Braga, que inclui no final um desenho colorido ao estilo de Giraldo, indica que foi esse mesmo exemplar de que o artista português se serviu.

 

BIBLIOGRAFIA:

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BARATA, Manuel, Exemplares de Diversas Sortes de Letras, ed. fascsimilada com introdução de Ana Lúcia Duque, Centro de Estudos Lusíadas da Universidade do Minho e Biblioteca Pública de Braga, 2010.

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SERRÃO, Vitor, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008.

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TAVARES, Pedro Vilas Boas, «Domingos Peres: professor de matemática da Princesa Maria de Portugal, na fundação de um beatério bracarense», actas do Congresso D. Maria de Portugal, Princesa de Parma (1565-1577) e o seu tempo. As relações culturais entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, 1999, pp. 7-28.


O Renadscimento e a liberalidade: o novo estatuto dos artistas.

1 Outubro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

No século XVI, com o Humanismo e o Renascimento, desenhou-se uma conjuntura favorável à libertação do artista do seu estatuto social inferior. De mecânico, artífice manual, trabalhador sem liberalidade, passa-se para o reconhecimento de um nível estatutário de independência e individualidade. A teoria da arte, com Léon Battista Alberti à cabeça, explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Alberti (no De Re Aedificatoria) assumira que a produção artística trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como Felicitá e Utopia na Cultura Artística Portuguesa do Século XVI: algumas considerações a propósito.

Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura italians e portuguesade Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã. 

•Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século. 

 


 


Ainda a estrutura de ficha analítico-descritiva de uma obra de arte: como proceder. Exemplo da obra do pintor seiscentista Diogo Pereira.

27 Setembro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 A identificação recente de quatro dezenas de pinturas de Diogo Pereira, um pintor que estava completamente esquecido, mostra a vitalidade da História da Arte e das suas metodologias de estudo, análise, descrição, avaliação e cotejo global. É a FORTUNA CRÍTICA a etapa de maturação mais consequente neste tipo de trabalhos e aquele que permite avançar do formalismo descritivo para o nível iconográfico e, de seguida, para a interpretação iconológica.

No contexto da pintura portuguesa do tempo da Restauração, é deveras singular a personalidade de Diogo Pereira, o nosso único «pintor de incêndios e catástrofes» do século XVII, o que o torna equiparável a nomes ilustres como o napolitano Cornelio Brusco, o lorenense Didier Barra (chamado Monsù Desiderio) ou o nórdico Brueghel de Velours. Bem integrado entre os destaques portugueses do seu tempo (José de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos), a sua produção conhecida situa-se entre 1630 e 1658 e mereceu dos seus contemporâneos, e de autores sequenciais (Félix da Costa Meesen, Pietro Guarienti), rasgados elogios pela sua operosidade num ‘género’ de pintura de temática trágica, então muito valorizado, onde episódios clássicos como Tróia abrasada (Eneias e Anquises), ou cenas vetero-testamentárias como Incêndio de Sodoma e Gomorra, contracenam com temas sacros, naturezas-mortas, bambochatas, cenas a la candela ou lume di vela, dentro da boa tradição barroca napolitana.

Pintor de sucesso, que ocupa cargos importantes no seio da Irmandade de São Lucas, Diogo Pereira trabalhou principalmente para um mercado predilecto, as colecções dos conspiradores de 1640 e demais classes possidentes do novo regime. Eram estes quem lhe encomendava quadros com o tema de Tróia abrasada, muito popularizado nos círculos restauracionistas pela sua simbologia ligada a uma parenética nacionalista de combate anti-castelhano, onde a figura de Eneias, o príncipe troiano, se identificava com os atributos e valências de D. João IV, espécie de novo Eneias libertador do seu povo. O artista pintou dezenas de quadros com este assunto, em tela, em cobre e, mais raramente, em madeira, como é o caso da peça estudada.

O tema TRÓIA ABRASADA, que muito repetiu ao longo da carreira e tem versões espalhadas em colecções portuguesas e estrangeiras (algumas delas, andavam mal atribuídas a François le Nommé/Monsú Desiderio), executados nos anos de 1640-1650 com destino a clientes que inequivocamente se identificavam com esse espírito restauracionista e essa militância pró-brigantina, mostra bem as qualidades plásticas do artista, o seu gosto por uma linguagem de abertura ao fantástico na cenografia das arquitecturas e dos ambientes (ainda que mostre certa dureza de desenho de figuras, inspiradas sempre em fontes gravadas italo-flamengas), e a desenvoltura do discurso parenético que lhe grangeou sucesso no panorama artístico português de Seiscentos.

Após o natural apagamento que o século XIX trará por este tipo de pintura, a obra de Pereira tem sido justamente revalorizada nos últims anos, sobretudo depois da grande exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris, 2001), que mostrou, devidamente restaurados, uma dezena de peças deste artista – caso único, a nível nacional, por um género de pintura de caprichos e catástrofes muito apreciado pelas circunstâncias de um tempo de crise como foram os anos de guerra do Portugal Restaurado.


Apresentação de uma ficha analítico-descritiva de uma Obra de Arte particular.

24 Setembro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Estudo de um quadro de Vasco Fernandes, «Jesus Cristo em casa de Marta e Maria», c. 1530 (Viseu, Museu Grão Vasco) como exemplo de como se pode realizar uma Ficha Analítico-Descritiva de uma Obra de Arte, seguindo as pesquisas chamadas Fortuna Histórica, Fortuna Crítica e Fortuna Estética, com o objectivo de ver melhor a obra em apreço.


•FORTUNA HISTÓRICA –

Recolha de dados sobre a peça; investigação de fontes (bibliotecas, arquivos, entrevistas) e crítica heurística; definição de estilo e época; inquirição sobre as questões QUANDO SE FEZ, QUEM FEZ, COMO SE FEZ, PORQUE É QUE SE FEZ, POR QUEM SE FEZ, POR QUANTO SE FEZ… Análise iconográfica, formal e descritiva. Primeira caracterização geral da peça.

•FORTUNA CRÍTICA –

Análise comparativa com outras peças; investigação relacional; análise estilística e iconológica; integração em contexto alargado; definição de problemas;  estudo trans-contextual da peça na sua vivência entre a época de factura e o nosso tempo, à luz dos mercados, das avaliações e das críticas.

•FORTUNA ESTÉTICA –

Análise estética: O QUE É A OBRA ? O percurso amadurecido da pesquisa abre perspectivas para se ver melhor a peça e saber apreciá-la à luz das suas reais potencialidades criadoras. 

 

Aula Teórico-Prático      24-09-2018 08:00 - 53 alunos assistiram à aula. - Docente:            Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão - Data da Última Modificação:     25-09-2018 11:22


Poder e Fragilidade das Obras de Arte: Iconoclastia e Iconofilia.

20 Setembro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     ICONOCLASTIA E ICONOFILIA

 

     O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária…

     Em nenhuma outra época de incremento da produção artística religiosa como sucedeu nos séculos da Contra-Reforma, a imagem pintada e esculpida atingiu um tão elaborado sentido de utilidade didascálica. As virtudes da imagética destinada ao culto extravasavam então a própria consciência da sua qualidade formal, sempre recomendada, para abarcar também, e sobretudo, intrincadas complexidades doutrinárias e propagandísticas, aptas a clarificar os códigos de representação e a torná-los úteis na sua relação com as comunidades do seu tempo e do futuro. O conceito de arte senza tempo que se entretece no pensamento, na palavra e na pena dos teólogos católicos dos primeiros anos da Contra-Reforma, e que mereceu a Federico Zeri brilhantes reflexões reunidas num ensaio incontornável, desenvolve-se na segunda metade do século XVI privilegiando uma linguagem artística virtuosa, clara, eficaz, apta a exaltar os sentimentos religiosos e, por isso, contrária tanto aos desvios paganizados do Renascimento como aos excessos e ousadias formais do Maneirismo. É certo que a consciência de uma nova era de Catolicismo triunfante e eterno, sob signo da Roma Felix de Sisto V, se desenvolveu apoiada na vontade esclarecida de renovar as fórmulas artísticas, tanto na sua função como na sua qualidade, em nome de um crescente naturalismo que a pintura do fim do século XVI e do pleno século XVII viria a adoptar de modo generalizado, a partir de Florença e de Roma, como modelo preferencial depois seguido em todos os espaços da cristandade, dentro e fora da Europa. Todavia, se a verificação do comportamento oficial da Igreja face às imagens de culto é fácil de entrever – em nome da renovação, da clarificação e da exaltação --, torna-se hoje mais difícil de reconstituir o verdadeiro sentido dessa absoluta reforma operada no campo artístico do mundo cristão, quando entretanto se foi perdendo o uso social da linguagem simbólica que dava corpo a tais produções e quando é essa própria linguagem simbólica que viu diluído o seu significado original pela des-memória das intenções patentes no acto de criação. O trabalho a fazer cabe, portanto, a equipas interdisciplinares, envolvendo os historiadores de arte, através dos levantamentos de campo e das análises de obras à luz da Iconologia, e os investigadores da História da Igreja, através de estudos de caracterização das correntes de espiritualidade e de piedade popular e dos mecanismos de propaganda. A perda do uso simbólico das imagens religiosas os séculos XVI e XVII, na sua dimensão sígnica, sintáctica, ideológica e conceptual, impõe hoje o aprofundamento de estudos de reconstituição, passíveis justamente de ser cumpridos através do enfoque iconológico.

     A compreensão – por exemplo – das razões de práticas iconoclásticas dentro e fora da Igreja, da hierarquização dos níveis de propaganda e de esclarecimento, das estratégias de empolamento de certos acontecimentos e «histórias sagradas», das lógicas de exaltação ou de condenação deste ou daquele temário, obrigam a estudar em profundidade as complexidades e as transcendências dos códigos de representação de um tempo determinado, à luz da sua ideologia. A dificuldade maior está precisamente no facto de se ter verificado a perda de uma consciência social que nos torna impotentes face ao que certas representações artísticas da Contra-Reforma nos comunicam, como se os seus símbolos tivessem deixado de funcionar, assim como os arquétipos psicológicos e morais que elas veiculavam. Essa a dificuldade maior dos estudos de História da Arte, independentemente da época histórica em apreço, pois do que se trata de analisar sempre através das formas estéticas é a linguagem visual de símbolos que muitas vezes já perdeu sentido. Não obstante, a sobrevivência cíclica das dimensões simbólicas nas formas de representação, intuída por Aby Warburg ao definir o conceito de Nachleben como memória inconsciente das formas transmigradas, permite pôr a tónica dos estudos artísticos no terreno da Iconologia e apurar, a essa luz, quais os significados ocultos e os códigos de representação das obras de arte que nos chegaram sob o manto de espesso mistério.

     Por isso as obras de arte sofrem, alteradas, ofendidas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção. Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela disciplina. As medidas de censura foram uma constante no processo criativo dos artistas, ao longo dos séculos, com ênfase da Idade Moderna (mas também nos nossos dias…). No século XVI, atingiu níveis inimagináveis, por efeitos da Reforma protestante, na Europa, e das conquistas dos novos Impérios, no Oriente e nas Américas. Com a Contra-Reforma católica, valores com o decorum e a fidelidade aos cânones de Trento acentuam no mercado das artes esse aspecto de contrôle, de censura e de combate a todos os desvios que pudessem ser vistos como heterodoxos. A pintura, a escultura, o azulejo e outras artes dos séculos XVI, XVII e XVIII dão bom yestemunho desse tónus esconjuratório e de estremada vigilância de costumes da parte de quem comprava e consumia obras de arte (sobretudo sacras).

     Assim, as manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso (nas colónias, do Brasil à Índia) e na redobrada vigilância do modo como agiam os artistas e os detentores de «imagens sagradas», ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentuava em nome do combate ao paganismo e à idolatria, contra manifestações religiosas autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa)…

     Existiu sempre da parte dos homens – e continua a existir – uma deriva iconoclástica que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos:

Um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador

um iconoclasma destruidor do «outro»

um iconoclasma correctivo por razões morais

um iconoclasma correctivo por razões políticas

um iconoclasma correctivo por razões estéticas

um iconoclasma de intuito propiciatório

um iconoclasma de esconjuração do medo

um iconoclasma de apagamento da memória do «outro»

um iconoclasma de exegese

um iconoclasma de afirmação de «cultura superior»

um iconoclasma de afirmação utópica

     Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias, para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquêsdestas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem ! Le Spirituel dans l’art de Kandinsky (1910) é exemplo da reflexão sobre forma e imagem segundo concepção filosófico-religiosa que pensa o código imagético como testemunho de memórias ancestrais e como testemunho de pontos de vista proféticos, rituais ou mágicos. Os regimes religiosos são quase sempre favoráveis (mesmo que de modo não declarado) ao uso da imagem, à sua sublimação do real e ao seu poder de sedução e/ou de intervenção. A dimensão do ‘sagrado’ percorre sempre, de modo mais ou menos inconsciente, o território da representação artística.

     Os estudos de iconografia de arte religiosa da Idade Média têm sido levados a cabo com incidência, desde os ensaios fundamentais de Émile Mâle, quer em torno da narratividade dos  programas hagiológicos tratados, quer na verificação da sua distribuição e estatística, quer na definição de códigos e atributos simbólicos, ou através da verificação mais ou menos fiel de estampas (em geral ítalo-flamengas), quer ainda em termos da especificidade de artistas e de «escolas». Tais abordagens são essenciais e abrem pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, de definição de gostos dominantes, etc, que vigoram na paisagem artística das épocas em apreço. Mas falta, também, saber analisar – com recorrência maior à Iconologia – as obras de arte (neste caso as da Contra-Reforma portuguesa) atentando num conjunto de aspectos e de procedimentos que, a ser cumprido com exaustividade, virá com toda a certeza iluminar-nos sobre um tema tão caro como é o das estratégias da representação imagética e das suas implicações sociais segundo o figurino dominante. Para quem entende a História da Arte como uma área científica dotada da mais vasta interdisciplinariedade, vocacionada para a prescrutação tanto quanto possível integral das obras de arte particulares, vistas como discursos estéticos fascinantes e inesgotáveis e marcadas por lógicas de programa interno e interdependências eu inevitavelmente mantêm com contextos ideológicos determinantes, esse será sempre o caminho de pesquisa a percorrer.

     Assim, cabe à História da Arte saber analisar, em perspectivas alargadas e pluridisciplinares, temas e questões como estas que aqui se abordaram.

 

 

BIBLIOGRAFIA

Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L’arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, ed. Einaudi, Turim, 1957.

Flávio Gonçalves, «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, 6ª série, ano II, Porto, 1962.

Flávio Gonçalves, «A Inquisição portuguesa e a arte condenada pela Contra-Reforma», Colóquio, nº 26, 1963, pp. 27-30.

Eveline Pinto ao livro Aby Warburg – Essais Florentins, ed. Klinksieck, Paris, 1990.

Olivier Christin, Une révolution symbolique. L’iconoclasme protestant et la reconstruction catholique, Paris, 1991.

Alain Besançon, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994.

David Freedberg, The Power of Images, The University of Chicago Press, 1989 (trad. espanhola: El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid).

Catáogo da exposição Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, ciom coordenação de Cécile Dupreux, Peter Jezler e Jean Wirth, 2001.

Vitor Serrão, A trans-memória das imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa, ed. Cosmos, Lisboa, 2007.

 

Aula Teórico-Prático      20-09-2018 08:00 - 53 alunos assistiram à aula. - Docente:            Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão - Data da Última Modificação:     25-09-2018 11:19