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O lugar das emoções em Georges Didi-Huberman

20 Setembro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Retomámos a leitura orientada da pequena conferência de Georges Didi-Huberman, Que emoção! Que emoção?, a que acedêramos na primeira aula, para dela extrairmos o ponto de vista fundamentado do seu autor de que o estudo das emoções ao longo dos tempos foi sendo relegado para um lugar existente e prevalecente, embora obscuro e secundário, em benefício de um discurso argumentativo, estruturado, comprovativo de que, segundo Didi-Huberman, se privilegiara o logos sobre o pathos. 

O assunto da conferência, apresentado em 2013 e publicado dois anos depois, era por isso sobre emoções. O próprio título desse escrito - Que emoção! Que emoção? - anunciava-se já como um instrumento de trabalho curioso. Através da expressão Que emoção! consagrávamos a nossa capacidade de espanto, enquanto Que emoção? abria-nos o campo das perguntas. Esta sinalização torna-se portadora de um efeito directo sobre a nossa capacidade de nos interrogarmos sobre o que é difícil de responder enquanto nos emocionamos. Qualquer coisa de parecido acontece quando nos apaixonamos. Escrever sobre a paixão só se torna possível quando o nosso estado emocional deixou de nos fazer transbordar de nós mesmos.

E porque as emoções, ainda que estudadas e trabalhadas desde a Antiguidade Clássica, nunca foram o campo especulativo mais apetecível do pensamento ocidental até meados do séc. XVIII, e porque, como dizia Darwin, segundo Didi-Huberman, «a emoção é considerada um estado primitivo» (Didi-Huberman, 2015: 15), daí decorrendo talvez o fraco interesse por elas, não deixa de ser verdade que, por exemplo, as lágrimas propiciam um directo benefício a todos nós e que o seu primitivismo continua, e certamente continuará, a integrar-nos como seres individualizados e como espécie. Tal é o caso que vem na sequência de observação e análise da expressão emocional em animais e seres humanos, levado a cabo por Darwin, e que fizeram o biólogo e naturalista escrever: «a secreção de lágrimas serve para aliviar o sofrimento. E quanto mais forte e histérico for o pranto, maior é o alívio que proporciona – de acordo com aquele mesmo princípio que nos diz que a contorção do corpo, a emissão de gritos penetrantes e o ranger dos dentes são acções que produzem alívio quando se está sob o efeito de uma dor muito forte.» (Darwin, 2006: 161)

Aqui nos recordámos de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), dramaturgo e estudioso do Teatro, que na sua Dramaturgia de Hamburgo (1767-1769) defende um princípio que atribui ao efeito de catarse no espectador, uma condição de alívio fisiológico semelhante ao de uma purga. O corpo reage na sua manifestação de dor interior através da expressão de emoções que nos habitam (os fluidos lacrimais, os suspiros, a intensidade da voz, os movimentos corporais mais intensos e, por vezes, descontrolados) e que resultam em acto de libertação perante aquilo a que assiste. E é neste contexto que Lessing, a propósito da tragédia afirma o seguinte: «[…] Como os adversários de Aristóteles se não aperceberam de quais as paixões que ele pretendia ver purificadas em nós através da piedade e do temor na tragédia, erraram, naturalmente no que se refere a essa purificação.» (78ª Secção, 29 de Janeiro de 1768) O termo alemão usado neste caso é Reinigung que significa originalmente limpeza.

Verificamos assim que o carácter terapêutico das lágrimas não deixa por isso de manifestar uma outra componente comportamental associada a estados emocionais e a sentimentos. E é talvez por isso que a pequena conferência de Didi-Huberman nos pode interessar.

No final do seu livro aqui citado, Darwin diz o seguinte: «Vimos também que em si própria a expressão, ou a linguagem das emoções, como há quem lhe chame, é sem dúvida importante para o bem-estar da humanidade. Compreender, na medida do possível, a fonte ou origem das várias expressões que a todo o momento presenciamos no rosto dos homens que nos rodeiam, ou até nos animais domésticos, há-de ter necessariamente grande interesse para nós. Por todas estas razões, podemos concluir que a filosofia desta questão merece toda a atenção que lhe tem sido dedicada por alguns excelentes observadores, e que o seu estudo merece ser aprofundado, especialmente por algum fisiólogo competente.» Darwin escreveu estas frases em 1872, no fim de um belíssimo livro, com uma segunda edição em 1889. Talvez hoje o lugar do fisiólogo, a que Darwin se referia, seja ocupado pelos neurocientistas e antes deles pelos psicólogos, psicanalistas e outros estudiosos do comportamento humano.

Mas não sendo nós neurocientistas nem desempenhando quaisquer outras profissões que se ocupam do estudo do cérebro, não estamos tolhidos da capacidade de observar, muito distinta da capacidade de olhar e de ver.

De certo modo o que Didi-Huberman procura demonstrar na sua pequena palestra é justamente qualquer coisa de que talvez não nos apercebêssemos assim com tanta facilidade: nos pratos da balança da reflexão europeia e ocidental, as emoções não têm, até ao final do séc. XIX, um peso muito expressivo. Poderemos invocar a pujança de um Século das Luzes que se ocupou em defender o pensamento ordenado e sistemático que tinha por princípio autonomizar o ser humano na sua dimensão prática, política e espiritual. Estamos de acordo em termos gerais com esta perspectiva de criar condições e incentivar a saída do ser humano «de um estado de menoridade», como dizia Kant. Mas entendemos que a saída desse «estado de menoridade e servilismo» só se alcança na plenitude das capacidades de cada um. É por isso que dar particular atenção à expressão das emoções, e cada vez mais neste nosso século, deveria ser uma prioridade, tal como preconizava Darwin, a propósito do insuspeito bem-estar para o qual a linguagem das emoções» poderia contribuir.

As emoções, os estados emocionais vários que nos habitam, na sua condição simples ou mais complexa, são o fundamento primeiro das artes, da ciência, da filosofia.

E é por isso que Didi-Huberman escolhe exemplos das artes plásticas, da fotografia e do cinema para demonstrar a sua presença em objectos que ele nos ajuda a descobrir. Tal exercício poderá ser sempre feito por nós em relação às Artes Performativas, área em que talvez sejamos mais experientes do que o próprio historiador de arte francês.

Esta conferência destina-se a abrir-nos horizontes sobre a história geral do conceito emoção e sobre a capacidade de observarmos o mundo sensível e de o interpretarmos. Naturalmente que o próprio estado observacional pressupõe que façamos juízos de valor enquanto apreciamos o que nos é dado observar.

Uma possível forma de nos aproximarmos de Que emoção! Que emoção? será acompanharmos o percurso histórico do entendimento de pathos, como ele vai sendo desdobrado e configurado como produtor de emoção, e que se manifesta, por exemplo, no pensamento de Aby Warburg (1866-1929), historiador de arte e um homem multifacetado nos seus interesses investigativos, que desenvolveu um princípio que fundamenta a existência de uma história da humanidade ancorada em imagens que referenciam o gesto e o movimento dos corpos no seu primitivismo emocional e que são ao mesmo tempo factor de compreensão e transformação de imagens posteriores. A este processo chamou Warburg «fórmulas de pathos», não com a intenção de estabelecer um único parâmetro de aferição, mas partindo das próprias imagens e indo ao encontro de aspectos que as identificavam na sua individualidade e, ao mesmo tempo, as projectavam para posteriores leituras captáveis em objectos e imagens posteriores.

Como afirma Didi-Huberman, a propósito do Atlas de Imagens Mnémosine, criado por Aby Warburg nos últimos anos da sua vida: «É uma história cheia de surpresas, uma história em que se descobre que as imagens ao mesmo tempo transmitem e transformam os mais imemoriais gestos emotivos.» (Didi-Huberman, 2015: 36)

Em jeito de remate gostaria ainda de salientar o facto de que esta palestra de Didi-Huberman integrou um ciclo a que então se chamou Luzes para Crianças, inspirado em obra do autor alemão Walter Benjamin, dedicada às crianças do seu tempo e do futuro, e que foi transmitida entre 1929 e 1933, pela rádio de Colónia. Este público infanto-juvenil das histórias de Benjamin talvez pudesse ser comparado ao público para quem Didi-Huberman falou em 2013. Em ambos os casos a escuta e a visualização tinham como objectivo emocionar, mesmo que se tratasse de pensadores para adultos. A atenção das crianças pedia treino, exercício intelectual, mas sobretudo criação de interesse. Talvez os ouvintes e espectadores de Didi-Huberman se distraíssem de vez em quando. E é provável que muitas das referências enunciadas por Didi-Huberman pouco ou nada dissessem ao auditório infanto-juvenil que o acompanhou. Apesar disso, na expressão Luzes para Crianças encontramos um princípio que pode ser esclarecedor no que diz respeito ao acto de tornar claro, abrir novos horizontes, de iluminar, como foi, aliás, apanágio de uma corrente do pensamento europeu no séc. XVIII, designada de Iluminismo.

Curiosamente nesta conferência o acto de iluminar centra-se na explícita valorização das emoções, questão que não só teve difícil entendimento da parte de muitos ideólogos deste movimento europeu (Ex: Kant, pp. 22-23), como também terá tido justificação explícita na tradição aristotélica e platónica (p.p. 20-13), que parece ter fundamentado o facto de a dimensão emocional do comportamento humano não se equiparar ao potente horizonte que foi sendo traçado ao longo de séculos para a razão.

Esta dicotomia, em termos filosóficos, só veio a diluir-se no pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche (sé. XIX), mas também no pensamento literário de um Lenz, ou de um Goethe juvenil e de alguns estudiosos da fisiologia dos humores ou da observação aturada da expressão do rosto e gestualidade, como aconteceu com o teólogo, poeta, filósofo e fisionomista suíço, Johann Caspar Lavater (1741-1801), preciosa fonte informativa para Charles Darwin, sendo este abundantemente referido por Didi-Huberman na sua conferência.

A nossa aproximação a Didi-Huberman, discutindo as suas proposições e dando atenção ainda ao capítulo de perguntas e respostas com que termina o livro vem dar razão a quem defende a não menorização dos mais novos. As perguntas a Didi-Huberman são das crianças e dos seus acompanhantes. O filósofo e historiador de arte procura com as suas respostas a luz que as crianças merecem.

 

 

Prosseguiremos o estudo das emoções num registo próprio da neurociência, através de obra de António Damásio e também de Giovanni Frazzetto. O campo investigativo prático será alcançado com algumas possíveis saídas de campo que iremos organizar na medida das nossas possibilidades, e que nos ajudarão a captar o que possa acontecer em espaço cénico.

 

Leituras recomendadas:

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.


Conversas cruzadas em torno da espectação

18 Setembro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

SOCIOLOGIA DAS ARTES DO ESPECTÁCULO

 

Calendarização lectiva – VERSÃO sempre em actualização

 

Horário: 4ªs e 6ªs das 16:00 às 18:00

Sala – 7.1

Recepção de alunos – 4ª feira das 15:00 às 16:00 (marcação prévia) na sala 2.2. ou em lugar a combinar.

 

SETEMBRO                         4ª FEIRA                              1ª Aula

 

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Apresentação do programa e seus objectivos no âmbito de uma cadeira que procura estabelecer laços de observação sistemática e orientada entre o espectador e o espectáculo artístico. Referência sumária a estratégias e metodologias de trabalho. Comentário ao tipo de bibliografia proposta e ao modo como a iremos integrar nas questões suscitadas pelas áreas de estudo em desenvolvimento. Breve e justificada exposição sobre o processo de avaliação. Envio aos alunos de documento detalhado sobre o assunto.

Diálogo com os alunos a partir de experiências próprias de espectação artística e de como essas práticas se podem ou não transformar em processos de aprendizagem geral e específica. Tendo em conta o assunto principal do programa – a observação/espectação de obra artística vária – assumimos também a possibilidade de nos podermos concentrar num único e singular objecto e de lhe atribuirmos valor em função do exercício da repetitividade observacional. Dessa perspectiva poderemos considerar esta modalidade como estudo laboratorial. De uma forma ou de outra, o alcance da espectação decorre sempre do facto de a nossa atenção ser solicitada por um alto grau de consciencialização por sermos espectadores privilegiados (por natureza e formação). E é justamente desse privilégio que esperamos seja possível alcançar uma melhor percepção da realidade artística e um mais profundo conhecimento de nós próprios. A proposta programática condensa-se numa frase: Quem o mundo e nele a arte especta, especta-se a si mesmo.

 

·         Data de realização do 1º teste de avaliação: dia 6 de Novembro de 2019  na sala (?). Duração da prova com consulta: duas horas. O resultado e a correcção desta prova serão apresentados no dia 27 de Novembro de 2019, salvo se houver qualquer imponderável.

·         Data de realização do 2º teste de avaliação: dia 18 de Dezembro de 2019 na sala (?). Duração da prova com consulta: duas horas.

·         Os resultados do 2º teste, sua correcção e toda a avaliação final de cada aluno serão apresentados e discutidos no dia 8 de Janeiro de 2020, em horário de aula.

 

Leitura recomendada:

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.