Sumários

O que aprendemos com Jordi Savall e os seus colaboradores-artistas

25 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

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Hoje voltámo-nos a encontrar com Jordi Savall e os seus intérpretes, numa assistência ao concerto que temos em mãos e que nos levou por regiões longínquas do mundo, nomeadamente pelas Américas Central e do Sul, pela África subsariana e naturalmente pela velha Europa. O assunto que domina esta obra e que já é de todos conhecido, atravessa-se em milhares de anos de vivência da espécie humana como uma instituição criada pelo próprio homem a fim de aprisionar e usar muitos em benefício de uns poucos. Sabendo nós, aliás, que o ano de 1888, que criara como oficialização o fim da escravatura no Brasil, e sabendo nós também que ainda em 2007 a Mauritânia entendera oficialmente pôr fim à escravização de seres humanos, não é fácil prever o que está para além da legalidade em cada país, pois a traficância, a manutenção em cativeiro e o aproveitamento económico destas pessoas representa cada vez mais uma trágica realidade que nos assombra e não tem fim à vista.

Esta é a questão central de Rotas da Escravatura que artisticamente procura dar relevo através do canto, da dança, dos ritmos musicais, de uma encenação feliz e libertadora, de uma movimentação em cena organizada mas também aberta à natural irreverência, com que a representação em memória dos milhões de escravos se desencadeia como espectáculo criador daquilo que terá sido o único espaço expressivo e de liberdade interior de cada escravo. A exteriorização de uma limitada alegria transformava a vida destas pessoas naquilo que ninguém podia impedir. Celebrar esta evidência nos nossos tempos faz com que seja no domínio do exercício artístico que se projecta o fenómeno da liberdade individual e colectiva. Inúmeros são os relatos de época que invocam a História da Escravatura. O espectáculo cria uma estrutura narrativa, atribuída a um actor, que vai acompanhando e abrindo cada conjunto de canções e sua execução instrumental e de movimento. É nesta estrutura que podemos ancorar a informação mais detalhada que ajuda a enquadrar cada período, século após século, e que nos oferece uma visão alargada dos acontecimentos no contexto do espectáculo. É demasiado óbvio que o narrador seja negro mas também só assim poderia ser. Ele carregou na voz a tragicidade dos acontecimentos. Na versão portuguesa do espectáculo, em 2016, apresentada na Gulbenkian, foi o actor moçambicano e português, Alberto Magassela, que desempenhou esse papel.

Rotas da Escravatura procura cobrir o fenómeno esclavagista apenas nas regiões do globo que mais directamente estão associadas ao mundo ocidental. Outras paragens não são aqui consideradas, apesar de haver referência actualizada no livro de acompanhamento ao espectáculo (pp. 174-179, versão inglesa) sobre esta questão. Com os seus colaboradores originários de diferentes países e culturas, Savall intuiu a necessidade de fazer despertar consciências a partir da arte instrumental, vocal e de movimento. Acresce dizer, a título de exemplificação, que estar em cena neste espectáculo significava também escolher o que vestir, sabendo que esses trajes não pretendiam criar uniformidade.

Perante nós tocaram-se vários instrumentos europeus e não-europeus, cantou-se em várias línguas, vestiram-se trajes tradicionais de vários países e, no caso de europeus, usou-se o negro tradicionalmente escolhido para palco, nomeadamente para homens neste tipo de espectáculos. Dançou-se com alegria e espontaneidade. Os ritmos contagiantes operaram milagres. Quatro séculos da história da escravatura foram sendo narrados criando a integração necessária para uma ampla apropriação do assunto.

Leitura recomendada

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Pesquisa orientada a partir de índice de conceitos no final da obra. O conceito em estudo é homeostasia. A referência no volume em papel é a p. 374.

 

Obra em visionamento através de DVD:

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.

Espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’


Na rota do desmando humano

23 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

                                   4ª FEIRA                                          11ª Aula

 

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Demos início à segunda parte do programa criando duas distintas zonas de trabalho: estudo sistemático de um conceito em António Damásio – o de homeostasia – e progressiva aproximação a um povo – os Bijagós – com características próprias que poderão ser interpretadas à luz deste conceito de que nos iremos apropriar.

A proposta de estudo requer organização e tempo diferenciados. O paralelismo das acções pressupõe que em aula possamos desenvolver actividades de observação de materiais visuais e outros que comentaremos sempre em função da conjugação dos objectivos expostos e associados. Ao mesmo tempo os alunos vão desenvolvendo em casa a investigação sobre o conceito proposto. A calendarização das actividades será apresentada progressivamente e à medida das nossas realizações, considerando-se a sugestão de outras leituras relacionadas com o estudo de caso.

 

Abrimos então a nossa aula com o visionamento de um espectáculo dedicado à história da escravatura ao longo de mais de quatrocentos anos.

Esta proposta artística que engloba música, canto e dança apresenta-se-nos como um acto festivo paradoxalmente dedicado a um assunto que despromove a relação entre povos: a escravização do ser humano, seu horror e sofrimento.

Seremos nós espectadores sado-masoquistas quando nos aventuramos por caminhos que nos narram e perante nós exibem Rotas da Escravatura 1444-1888 como espectáculo pluri-racial, pluri-religioso, pluri-cultural, pluri-artístico perante tudo aquilo que se objectiva em tortura, humilhação e desprezo em nome da essência e valores éticos humanos? Serão insolúveis os conflitos entre seres da mesma espécie e que se relacionam com este assunto, nomeadamente como formas de exercício de poder em que o espírito democrático se esboroa perante interesses de natureza económica, social, religiosa e política há tantos séculos? Onde situar verdadeiramente um pós-colonialismo que em muito se dilui em formas de colonialismo que persistem ainda e sempre fazendo de uns escravos e de outros senhores?

A algumas destas perguntas tentaremos responder com Damásio e outros.

Mas Jordi Savall é o eleito para já e com um invulgar espectáculo artístico e colectivo de qualidade suprema.

Seguindo o seu rumo, fomos ao encontro do músico catalão e activista dos direitos humanos, conceituado gambista e estudioso de música antiga de várias paragens do mundo, que entendeu dedicar obra ao assunto da escravatura. Este atravessa os tempos da História desde há milhares de anos e sabemos nós hoje também que o ano de 1888, que criou como oficialização o fim da escravatura, não passou infelizmente de uma espécie de acto politicamente correcto.

Com os seus colaboradores de diversas regiões do globo, Savall intuiu a necessidade de fazer despertar consciências a partir da arte instrumental e vocal, da dança que genuinamente provém de corpos inspirados por raízes matriciais de diversas culturas.

Estamos assim a assistir a um espectáculo em diferido, realizado ao vivo e pela primeira vez, em 2015, na abadia de Fontfroide em Narbonne, França. O lugar escolhido para exibir Rotas da Escravatura ganhou aliás uma conotação simbólica, isto se pensarmos, por exemplo, no processo de cristianização em África e na América do Sul onde algumas ordens religiosas foram colaboracionistas dos regimes coloniais europeus de manutenção de pessoas em situação de escravos.

Leitura recomendada

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Pesquisa orientada a partir de índice de conceitos no final da obra. O conceito em estudo é homeostasia. A referência no volume em papel é a p. 374.

 

Obra em visionamento através de DVD:

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.

Espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’


Aprender a aprender

18 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                     6ª FEIRA                                          10ª Aula

 

 

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Saída de Campo

 

Espectáculo de Teatro KIKI VAN BEETHOVEN de Eric-Emmanuel Schmitt, encenação de Natália Luiza, interpretação de Teresa Faria. Teatro Meridional, 11.10.2019. 90 minutos. 21:30 -23:00.

 

Desde quando ser estudante na Faculdade de Letras se torna causa de abrandamento de alegria, de crescente sentimento geral de incapacidade em gerir prioridades relacionadas com o estudo?

Admito que o perfil dos actuais estudantes traz acrescidas responsabilidades num quadro que em muitos casos demonstra ser de difícil resolução a contento dos mesmos. Um número razoável destes estudantes trabalha, vive longe, e terá vidas privadas complexas. Quem as não tem?

Também eu fui estudante da Faculdade de Letras entre 1968-71. Para chegar às aulas da manhã (a começarem às 8:00) apanhava cinco transportes (camioneta, comboio, autocarro, metro e eléctrico. O último troço, a Alameda da Universidade, era feito a pé. Saía de casa às 6:00. À tarde, e com almoço reduzido, trabalhava como tarefeira no Arquivo de Identificação de Lisboa. Seguia-se o trajecto inverso até chegar de novo a casa, onde jantava. Só conseguia estudar aos fins-de-semana quando conseguia. Não deixei nunca de me divertir e muito, tinha actividade cívica estudantil (Pró-associação) e amigos não me faltavam. Nessa época, ir assistir a espectáculos em sala própria não fazia parte das actividades que os programas leccionados propunham, quanto mais não fosse por razões culturais. Se me perguntarem se fui feliz durante o curso universitário, direi que aprendi a esforçar-me pela vida, a distinguir sobre o que queria mesmo fazer e a relativizar o que podia deixar cair sem problemas de consciência.

Nessa altura, não havia saídas de campo a não ser para os estudantes de Arqueologia, que eram obrigatórias, sobretudo no Verão com as escavações. Os estudantes de História e História de Arte faziam uma saída ou outra, muito raramente. Pouco se trabalhava em museus. Os nossos professores, com honrosas excepções (lembro-me de dois), quando olhavam para nós, nem sabiam em que turma estávamos inscritos. Eram cordiais mas não tiravam dúvidas. Isso era tarefa dos assistentes quando os houvesse. O meu curso não tinha assistentes ao serviço de catedráticos. Quem nos dava as aulas era um só professor por disciplina. Eram cumpridores e exigentes mas sem grande proximidade. Formei-me em Germânicas. A minha ligação às Artes Cénicas nasceu por ter querido ser actriz amadora, e fui-o por poucos anos. Depois experimentei tudo o que as Artes Cénicas permitiam desde a tradução, à crítica teatral, à dramaturgia, à assistência de encenação, à encenação, à operação técnica com meios não sofisticados, à concepção de figurinos, à escrita de programas-livro para espectáculos, à escrita de peças, ao ensaio, ao ensino, à arguição de teses, à participação em júris internacionais de premiação e, recentemente, como membro do júri do concurso para o biénio de 2020-2021 para companhias profissionais da dgARTES. Aprendi a observar o trabalho de outros em quem muito confiava e que elegi como meus Mestres. A experiência ficou para a vida.

Em abono da verdade pergunto-me agora se aos actuais estudantes da Faculdade de Letras, e aos de Artes do Espectáculo em particular, basta que directores de curso e outros professores tudo façam para que nada lhes falte, celebrem protocolos com casas de espectáculos, proporcionem entradas gratuitas ou bilhetes de baixo custo, organizem workshops e tantas outras actividades? Por tudo isto a Faculdade de Letras merece reconhecimento porque nela trabalham pessoas que se interessam verdadeiramente pelos seus alunos. Mas quando o cenário não é de facto apenas este e se espera que da parte dos alunos haja contrapartida face às realizações e às propostas de participação apresentadas, confrontamo-nos com um role de dificuldades que chegam a pôr em risco um programa.

As saídas de campo de Sociologia das Artes do Espectáculo, anunciadas como iniciativa geral, desde o primeiro dia de aulas, decorrem de uma programação que não implica apenas a ida a um espectáculo ou a vários, mas que tem como princípio a integração e compreensão de comportamentos individuais à luz de uma ideia – Quem a arte especta, especta-se a si mesmo. Foi, por exemplo, isto que aconteceu quando cinco das vossas seis colegas falaram livremente sobre o espectáculo Kiki van Beethoven. A peça de Eric-Emmanuel Schmitt que vimos em conjunto e em pequeno grupo permitiu que nos manifestássemos sobre a qualidade e tipo de texto (monólogo), sobre a criação da actriz em palco, sobre a encenação, cenografia, desenho de luz, partitura sonora e sobre as nossas emoções e sentimentos. Não nos obrigámos a nenhuma grelha de trabalho (o diário de bordo deveria funcionar como um instrumento de trabalho individual que orientasse a discussão no colectivo). Verificámos que após a discussão, poderíamos vir a incorporar o que tinhamos vindo a aprender sobre Didi-Huberman, Damásio, Frazzetto e tantos outros autores previstos que pudessem corroborar a ideia central de programa.

As saídas de campo são factor de alargamento de um trabalho escolar feito em aula e fora dela e contribuem para que a sua intersecção na realidade e experiência de vida de cada um (a individualização do exercício de espectação, por exemplo), possa permitir diálogo, defesa de pontos de vista próprios e fundamentados, aprendizagem. Conseguirmos conferir como somos biologicamente próximos uns dos outros e ao mesmo tempo nos apresentamos como construtores de uma cultura (por vezes subculturas) que se orienta por gradações, cujas respostas nos inquietam e nem sempre nos satisfazem, é, a meu ver, um modo democrático, ainda que exigente, de crescimento interior.

Até ao final do semestre e a par de propostas de carácter mais teórico, veremos em aula vídeos e outros materiais sempre que se justificar. As saídas de campo terminaram.

 

Breve reflexão sobre a peça O Horácio de Heiner Müller

 

Eramos seis. Dois depois. Nenhum ficou. Quantos mais haverá?

“Ah, nós

Nós os que queríamos preparar o terreno para a amizade

Não fomos sequer capazes de ser amáveis.

 

Mas quando tudo tiver ido longe bastante

Que leve o homem a ajudar outro homem

Pensem em nós

Com tolerância.”

Bertolt Brecht, Aos que hão-de vir

 

1.

Houve em tempos dois exércitos em contenda, porque um monarca ambicionava expandir o seu reino através da força das armas. No seio dessas hostes combatiam de cada lado dois trios de trigémeos. Por Roma lutavam os três filhos de Horácio, por Alba Longa, a cidade que gerara Roma, pelejavam os irmãos Curiácios. Túlio Hostílio, o terceiro rei de Roma, mostrava-se inflexível aos apelos dos seus conselheiros para que se pusesse fim a uma tal guerra fratricida. Até que a voz sentida e inconformada de Meto Fufécio se fez ouvir no meio dos pelejadores: “Qual o sentido desta desgraça tão sangrenta e ruinosa para os nossos povos? Não continuamos a ser próximos? Não existem entre nós interesses que nos irmanam? Será que queremos ser gáudio dos nossos inimigos comuns?”

O sábio Meto Fufécio aplacou a sede do conquistador Túlio Hostílio e obteve assim o consenso de ambas as partes. Foi então decidido que os três Horácios e os três Curiácios, geminados entre si pela diferença de comum sangue, se batessem em armas por um único vencedor. O acordo ficou abençoado por um sacerdote e houve celebrações com o sacrifício de animais, à vista de todos.

Alimentada por feroz e mútua coragem retomou-se a contenda, reduzida agora a seis combatentes. Caiu o primeiro Horácio e a seguir o segundo. Os Curiácios resistiam cobertos de golpes e os Albanos rejubilavam com o quase-triunfo dos seus lutadores. Já dilacerado pela derrota iminente e sofrendo na carne as feridas suas e as de seus irmãos perdidos, o último Horácio pôs-se em fuga. No seu encalce foram de imediato os três Curiácios, tão céleres quanto os seus fracos corpos o permitiam. Mas o Horácio quisera apenas pôr os seus adversários à prova, ao fazer uso de uma velha táctica romana de dissimulação. Sobre os três Curiácios caiu então o último Horácio e, implacável, um a um os três gémeos por terra deitou, despojando-os do sangue que os unira. A vitória dos romanos sobre os albanos festejou-se com júbilo triunfante e o derradeiro Horácio foi aplaudido por romanos e albanos. Túlio Hostílio tornou-se monarca de dois povos, unidos agora por uma mesma voz.

Mas a irmã do Horácio que se tornara herói irrompe subitamente no lugar onde os festejos decorriam. Dentro dela confunde-se o anseio de louvar o vencedor com o receio de funesto pressentir. Os seus olhos fixam-se na túnica ao ombro do vitoriado Horácio, aquela que suas mãos haviam tecido e que ofertara em paixão a um dos jazentes Curiácios. O nome do querido ser foi então gritado pela irmã de Horácio, enquanto seus próprios cabelos soltava e arrancava, despedaçando-se em dor pungente pela irreparável perda. E sobre o seu coração ferido de amor desceu a mortífera e gloriosa espada de Horácio que, em fúria, sua irmã invectivou: “Banida sejas por esse amor funesto! Esqueceste os irmãos mortos e a mim que estou vivo! Esqueceste a pátria! Que a morte caia sobre ti e sobre todas as romanas que ousarem chorar o inimigo!”

2.

Sob o desígnio de claros relatos fabulares, escritos por Tito Lívio e Plutarco, se construiu o percurso-memória da História de Roma Antiga, de que faz parte o episódio Os Horácios e os Curiácios. Constituindo-se como ínfima parcela configuradora do itinerário de um país em busca da sua identidade, esta narrativa expõe, na articulação dialéctica interna, a impossibilidade de conciliar o genuíno princípio de fidelidade e amor pela Pátria com o princípio, tão genuíno quanto o primeiro, de preservar os laços afectivos da consanguinidade.

A força dramática deste assunto histórico-mitológico pré-anunciou, desde logo, o reconhecimento e a perscrutação das suas inúmeras potencialidades para se transformar em matéria de representação teatral. Foi na Itália renascentista, desejosa de recuperar as referências e as raízes da Cultura Clássica, que se escreveu e produziu o primeiro drama horaciano. Pietro Aretino fez subir à cena, perante um dos seus mecenas mais dilectos, o papa Clemente VII, a sua tragédia L’ Orazia (1546). Cerca de um século depois, seria a vez de Lope de Vega criar para o almoxarife de Sevilha, Juan Munoz de Escobar, uma “tragicomédia famosa”, El honrado hermano (1623), texto de elaborada linguagem, novas façanhas e um rol de peripécias, que já não fazia jus à austera saga romana, apesar de satisfazer plenamente o gosto barroquizante do público do seu tempo.

O original discurso narrativo, inspirado em acontecimentos, a um tempo públicos e privados, e que eram expressão de uma incompatível e simultânea lealdade à cidade-Estado e à vital força dos afectos, foi sendo contaminado por sucessivas concepções estético-ideológicas que rescreveram, neste caso como em muitos outros, um processo de apropriação e de recriação de uma clássica herança comum à Europa.

A ideia de definição e fixação de uma matriz escrita, produzida a partir de uma reduzida sucessão de acontecimentos num certo tempo e lugar, adquire o valor de memória e de exemplo. É por isso que a velha história de Os Horácios e Curiácios está há muito diluída em cada um e em todo o recriar que a partir dela existe ou venha a existir. Tal facto não impede, porém, que a sua natureza matricial possa sempre ser identificada e dessa forma perdure como representação singular.

3.

A proposta de tratamento dramático criada por Heiner Müller para O Horácio (1968) recupera o essencial da narrativa de Tito Lívio. A sobriedade da construção dramática da peça mülleriana faz justiça a um processo de sintetização da fábula e dos respectivos intervenientes que nela agem. Para o dramaturgo alemão a história inicia-se com dois opositores: um horácio e um curiácio. O episódio romano fundamenta a acção, absorvendo ao mesmo tempo outros conturbados cenários de exercício político despótico na História da Europa do século XX, contemporâneos ou um pouco anteriores à escrita da peça. O exemplo mais evidente retirado dessa realidade terá sido a malograda revolta de Praga na Primavera de 1968.

Acontece, porém, que O Horácio de Heiner Müller não se esgota no historicismo da sua época, nem pretende apenas responder, de forma artística, a questões relacionadas com a prática ideológica marxista-leninista, associada ao socialismo real que vigorou durante décadas nos países de Leste.

Mais amplo terá, sem dúvida, de ser o nosso entendimento deste curto texto dramático. Se, por um lado, ele é concebido como uma peça didáctica, e nessa qualidade escrito para exercício de actores, hipoteticamente de todos os actores de todos os tempos que hão-de vir e de todos os lugares, por outro lado, O Horácio transporta em si um sentido de captura e simultânea devolução, presente na sua própria génese (o texto claramente matriciado em outros textos), que antecipa e projecta em direcção ao futuro um conjunto de questões de natureza universal e que, exactamente por isso, a todos nós dizem respeito.

Mais importante do que salientar a embora necessária filiação de O Horácio à obra que dramaturgicamente o antecedeu, Os Horácios e os Curiácios (1935) de Bertolt Brecht, faz sentido que se refira o espírito distinto com que cada uma das obras foi escrita. Assim sendo, vale a pena assinalar que a relação de parentesco criada entre os dois textos nasce de uma estratégia de desafio, sob a forma de resposta-comentário, à qual Heiner Müller devia corresponder, tendo a peça anterior como fonte inspiradora. Os dois dramaturgos partiam de Tito Lívio, donde a matéria ficcional e o aproveitamento da especificidade dramática serem similares. E, no entanto, à visão politicamente eufórica de Bertolt Brecht, sobrepunha-se o olhar crepuscular do então jovem dramaturgo Heiner Müller.

A concepção da “peça didáctica sobre dialéctica para jovens” que Bertolt Brecht discute com Walter Benjamin e que é por este considerada a melhor “peça escolar” do amigo, foi escrita sob uma óptica luminosa de legitimação da arte face à extrema racionalidade que abafava o pensamento marxista. Brecht tem uma encomenda do Exército Vermelho, e não só as escolas moscovitas deviam assistir à representação de Os Horácios e Os Curiácios, como também se tornava premente que outros públicos escolares de formação progressista em Inglaterra, França e nos Estados Unidos tivessem idêntica possibilidade.

4.

Heiner Müller escreve contra o seu tempo e contra uma Europa dividida. Ele escreve sobre a cegueira e a obsessão de todos aqueles que num determinado momento, o momento crucial, transformam em pedra o coração para darem corpo e voz a mais um martírio, e outro e outro, e mais outro ainda, a todos aqueles que já não eram necessários. E são esses que sempre fazem a diferença. Afinal quantos são necessários? Quem pode responder? As lições da História deixaram de poder ser apreendidas nos bancos de escola, porque as crianças conhecem as mais terríveis realidades que os livros não contêm. Quem é ainda capaz de convictamente as fazer acreditar que o mundo pode tornar-se num lugar sublime?

Apesar de nos termos de debater com estas verdades controversas mas incontestáveis, pior seria se delas não falássemos ou não pudéssemos falar. Aquilo que o horácio não foi capaz de perceber e por isso foi punido, deve suscitar em nós uma séria e ampla reflexão. Seremos ainda capazes de o fazer? É exactamente esse o ponto de vista que Heiner Müller defende e é em nome desse ponto de vista que a sua linguagem se radicaliza, se depura e as suas personagens se entregam, colectiva e individualmente, a sangrentos rituais de sacrifício da humana natureza. Faz sentido continuarmos a ser tão brutais e selvagens como o eram os povos antigos? Que nos trouxeram séculos de cultura e de civilização?

Em nome de uma justiça compreensivelmente recta mas bárbara, crua e insensível, pretende-se repor uma ordem que não tem mais razão de ser. A exemplaridade daquilo que acontece ao protagonista mülleriano - ser vencedor e simultaneamente assassino – é uma dupla verdade num só homem e, ao mesmo tempo, uma meia-verdade. Em que medida se pode pedir a um assassino autorizado de outros homens que use o discernimento naquele segundo em que a espada (ou qualquer outro artefacto bélico) está pronta para o golpe seguinte? Será que a automatização do gesto executa um movimento ao mesmo ritmo de um coração que pulsa?

Heiner Müller espera que nos sentemos no tribunal da História e assistamos ao julgamento e partilhemos com os actores a consumação do veredicto. O palco-tribunal, antiga proposta do dramaturgo Friedrich Schiller, renasce na peça de Heiner Müller para que nada, ou quase nada, fique esquecido. E nem o apelo do último horácio, o pai, a quem a Pátria deixa sem descendência, é suficientemente forte para demover o povo justiceiro.

Corneille, no seu Horace (1640), poupa o filho, embora sem esquecer que tal decisão é pela harmonia da governação inquestionável de Roma, em que França se deve espelhar. Tal exemplaridade de procedimento oferece ao monarca a razão conciliadora que salva do sacrifício o vencedor-assassino e supera todas as hesitações de um pai dividido entre pugnar pela honra do seu bom nome, através da justiça, e defender o último dos seus quatro descendentes.

Esta opção nunca poderia ser a de Heiner Müller. As vozes da sua peça são comandadas pelo cérebro, são argumentativas, endurecem como pedras, esgrimem-se num cego combate em defesa da própria contradição de vitoriar e condenar, num mesmo homem, a duplicidade da sua natureza. Os gestos e os movimentos dos actores estilizam-se e depuram-se até que se faça silêncio nos seus corpos.

Anabela Mendes

13.11.2003

TNDMII

17.3.2012

SAE

20.10.2019

 

 

Leituras recomendadas

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 57-97.

MÜLLER, Heiner 1982, A Missão e outras peças, tradução e posfácio de Anabela Mendes, Ilustrações e capa de José Castanheira, Lisboa: apáginastantas, pp. 9-20. Os alunos receberam versão posterior revista, usada no espectáculo homónimo, Coimbra: Escola da Noite, 2003. 


Sentimentos e emoções: pássaros-cantores, nós e os culpados por um acaso

16 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

OUTUBRO                                     4ª FEIRA                                          9ª Aula

 

 

16

 

Concluímos em modo provisório o trabalho realizado sobre pensamento de Damásio. A ele voltaremos ainda, a propósito da homeostasia básica e da homeostasia cultural, quando nos concentrarmos num pequeno estudo dedicado à etnia Bijagó que habita o Arquipélago com o mesmo nome e que integra o território da Guiné-Bissau. As suas formas de vida, usos e costumes, bem como crenças e celebrações religiosas e artísticas conferem a este povo um estatuto, talvez único no planeta, e que se configura a partir de uma relação de equilíbrio entre ancestralidade e contemporaneidade, sem que o específico padrão entre colaboração e conflituação, que a todos nos caracteriza, seja posto em causa.

Mas este será um tempo a chegar e ainda não faz parte dos nossos actuais trabalhos. Foi por isso que entendi que fecharíamos simbolicamente esta parte do nosso programa com a leitura de um pequeno texto, incluído no catálogo da exposição mais vasto que o céu – Cérebro, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Março-Junho deste ano e que nos permitiria tomar conhecimento do comportamento vocal e de sociabilização de alguns pássaros. Essa particular característica que algumas aves possuem de usarem a voz para comunicarem entre si socialmente, estende-se ainda a outras situações que dão conta, por exemplo, da presença de predadores que devem ser afastados, mas também o canto pode contribuir para a demarcação de território. A actividade vocal existe ainda e sobretudo para estabelecer relação de «amor» entre machos e fêmeas genericamente. Se nos casos anteriores estes animais elegem a voz e o canto como formas de interacção social, o acasalamento tem particular interesse por invocar experiência emocional e de sentimento associada à procriação. A atracção física e afectiva entre dois seres destas espécies e subespécies protagoniza qualquer coisa que a nós, humanos, também diz respeito. Em todo e qualquer destes casos entendemos que se trata primordialmente de instinto de sobrevivência, como aliás acontece connosco. No entanto, o acasalamento pressupõe a continuidade da espécie e nessa medida ganha uma distinção própria no contexto do uso da voz e das canções.

Este fenómeno observável entre as aves pressupõe que haja vários tipos de canções e pressupõe ainda que o entendimento entre os pássaros se faça por aprendizagem das canções de outros pássaros de quem se avizinhem, o que significa que existe um sentimento de sociabilização e partilha usado por todos os que têm estas capacidades. O pequeno texto que vos li vai ainda mais longe admitindo que há pássaros, como o periquito Tuim-santo, que assinam o seu repertório de canções de forma individualizada, permitindo que certos pássaros aprendam a cantar uns com os outros, uma vez mais dando origem a uma relação de sociabilização notável. Afirma-se na Parte 3 deste catálogo (Oliveira, 2019: 87) que a individualização do canto corresponde à atribuição entre os humanos de um nome próprio, aquele que recebemos por baptismo e registo notarial. Entre os pássaros quem tem essa tarefa é quem passa testemunho de geração em geração. Amorosamente falando, a distinção através da voz e do canto estabelece a individualização de cada pássaro-infante. Este aprenderá a autonomia, treinando o vôo, a procura de alimento e a identidade através de um processo empático a que se acrescenta, nestes pássaros-cantores, a criação de musicalidade com nome.

Assim dito, penso que nos reconhecemos em alguns traços característicos de certos destes pássaros. Como acontece com todas as espécies, incluindo mamíferos e primatas, a sobrevivência de cada espécie terá traçado o seu destino como defendeu Charles Darwin.

Em modo de aproximação a Damásio e ao capítulo 7 – Os afectos - do seu livro A estranha ordem das coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, verificámos que a probabilidade de referenciar uma vida afectiva entre os pássaros não só é real como constitui aprendizagem para os seres humanos. Também os pássaros se abrem ao processo de regulação que sobre eles impende como forma de criar constância num viver equilibrado. Falo da homeostasia. Terão eles disso consciência? Não sabemos. Em princípio não. Mas quem sabe se daqui a um tempo mais ou menos dilatado viremos a mudar de opinião.

Certo, certo é que neste caso, determinados pássaros mas também outros animais, que vocês tão bem conhecem, demonstram possuir um mundo emocional e artístico invejável.

Para todos os casos em geral e igualmente entre os humanos existe a consistente vontade de pugnar pelo equilíbrio entre a expressão do nosso sentimento pessoal (adiante falaremos de sentimentos) que é extensível à família que integramos, aos amigos que temos e à sociedade de que fazemos parte, podendo esta ser alargada a outros agregados humanos pelo mundo fora. Este processo de entrecruzamento é teoricamente compreensível mas de difícil execução. Todos sabemos como os conflitos entre humanos estão sempre a recrudescer. E se em termos lógicos esta realidade preceptiva de reconhecimento afectivo evolui do mais pequeno e mais próximo para o mais distante e desconhecido, embora em casos específicos e excepcionais - guerras, fenómenos de extermínio que determinam movimentos migratórios com desestabilização familiar e de proximidade -, este modelo deixa de ter aplicação por excepção. A verdade é que o nosso percurso afectivo se orienta desde a pré-natalidade, natalidade e infância, em famílias estruturadas, um pouco à semelhança dos pássaros, dos chimpanzés, dos golfinhos, entre outros.

Aquilo que pudémos apurar acerca do cap. 7 mas também do cap. 8 do livro em estudo resulta de reflexão de Damásio sobre emoções e sentimentos. Ele próprio tem a convicção de que estas manifestações na mente e no nosso corpo não são confundíveis mas são sequenciais. Apesar disso, ambos derivam das relações entre o interior e o exterior de cada organismo que determinam o estado de individuação de cada um.

As relações estabelecidas nestes dois circuitos afectivos agem através de imagens em função do presente de cada indivíduo mas também a partir dos fragmentos de memória individual e colectiva.

Refere Damásio que é no «mundo paralelo dos afectos», a especificação de funcionamento da nossa mente em relação directa com o nosso corpo, que se encontram os sentimentos de cuja presença estamos alheados por condição.

Operam em consonância ou alternância na nossa mente:

a) Sentimentos espontâneos ou homeostáticos, aqueles que são reguladores da nossa vida básica e que influenciam o nosso comportamento. Igualmente são de considerar b) Sentimentos provocados, aqueles que resultam de experiências de emoções decorrentes de múltiplas situações, e recordaria aqui uma longa lista: alegria, tristeza, medo, fúria, inveja, ciúme, desprezo, compaixão, admiração (nomeação de Damásio, 2017: 146), a que acrescentaria a culpa, a ansiedade, o luto, a empatia, o amor (segundo Frazzetto, 2014).

 

Escolhemos para leitura em voz alta e discussão em aula a peça de teatro de Heiner Müller, O Horácio (1968), ainda uma peça didáctica segundo a teoria e a prática brechtianas, com o objectivo de salientarmos nela a complexidade da presença do sentimento de culpa e das suas variantes que são criadas por uma dialéctica entre o que é um vencedor e ao mesmo tempo um vencido. Esta dicotomia percorre toda a peça e determina a simultaneidade da compreensão (ou incompreensão) de como uma só espada pode honrar um vencedor e fazer dele um assassino.

Prosseguiremos a análise desta peça considerando posteriormente o que Giovanni Frazzetto defende no capítulo sobre a culpa, do seu livro Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções

 

 

Leituras recomendadas

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 57-97.

MÜLLER, Heiner 1982, A Missão e outras peças, tradução e posfácio de Anabela Mendes, Ilustrações e capa de José Castanheira, Lisboa: apáginastantas, pp. 9-20. Os alunos receberam versão posterior revista, usada no espectáculo homónimo, Coimbra: Escola da Noite, 2003.

OLIVEIRA, Rui (curador da exposição) 2019. Mais vasto que o céu – Cérebro, Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian, p. 87. Indicação para efeito de menção.


Nós, alguns animais e os sentimentos

11 Outubro 2019, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Saída de Campo

Assistência ao espectáculo Kiki van Beethoven do dramaturgo belga francês Eric-Emmanuel Schmitt, com encenação de Natália Luisa e representado por Teresa Faria. Teatro Meridional, 21:30-23:00.

 

Tal como previsto dedicámos algum do nosso tempo à leitura das páginas finais do livro de António Damásio (pp. 322-332) que merecera particular atenção no que aos capítulos 7 e 8 dissera respeito.

O intuito desta incursão procurou desvendar quais os pontos essenciais que haviam desencadeado investigação e escrita no âmbito da compreensão de vida humana afectiva e intelectual. Tratando-se de melhor enquadrar o justo equilíbrio entre um passado demasiado longínquo - 100 milhões de anos são uma infinita e inalcançável distância - e o comportamento e acção dos seres humanos actuais, e considerando que essa relação é comprovável, Damásio defende que esse inimaginável percurso estabelece associação entre «algumas espécies de insectos» pré-préjurássicas e os seres humanos, atribuindo por isso vida cultural a ambos os pólos (certos insectos e humanos), se bem que nos primeiros não exista a consciência desses factos. Porém, quando nos recordamos do comportamento de espécies de insectos sociais como as formigas e as abelhas verificamos que para além da capacidade de viver em grupo e de forma hierárquica constituindo sociedades próprias, estes animais revelam comportamentos que informam, por exemplo, sobre destreza arquitectónica e criação de bem-estar. A valorização cultural destes animais, sobretudo em grupo, surpreende-nos sempre. A formiga africana constrói ninhos ao ar livre, autênticas esculturas, com mais de dois e três metros de altura. Olhar para este objecto faz-nos pensar numa escultura feita de terra vermelha por esforço colectivo.

Claramente Damásio entenderia a força deste exemplo e explicaria que não tendo a formiga africana mente e consciência, ela integraria e integra o fluxo primordial do grande empreendimento de culturas a que como seres humanos estamos agregados. E responderia de forma positiva, para o bem e para o mal, ao contributo dos sentimentos para esta «estranha ordem das coisas».

É sobre este diálogo vivo subtil e subreptício, a perder de vista e sem remate que se possa considerar, que Damásio defende que os sentimentos engendram a vida e o nosso modo de a partir dela criarmos conhecimento e cultura. Não nos é fácil o alcance que se orienta entre acção e reacção, entre estímulo, sensação, emoção e sentimento. O tempo de passagem de um grau para os seguintes, escapa-nos por vezes e a articulação entre eles não ocorre sempre da mesma maneira. Talvez seja mais fácil observar nos comportamentos dos outros aquilo que escapa em nós mesmos. As artes performativas podem auxiliar-nos nesta exaustiva demanda.

A peça que fomos ver ao Teatro Meridional, e também por ser um solo, congregou o esforço artístico, as emoções e os sentimentos de Teresa Faria na transferência para Kiki van Beethoven e vice-versa.

Damásio, sem ter ido ver a peça que nós espectámos, refere com um exemplo engraçado como funciona o processo de cooperação: «Todavia, as estratégias cooperativas não esperaram pelo aparecimento de mentes sábias e sensatas. Tais estratégias, que são provavelmente tão antigas como a própria vida, nunca se manifestaram de forma mais brilhante do que no conveniente tratado celebrado entre duas bactérias: uma bactéria arrivista e atrevida que quis dominar uma bactéria maior e já estabelecida. O resultado da batalha foi um empate e a bactéria atrevida tornou-se um satélite cooperativo da bem estabelecida.» (Damásio, 2017: 320)

Verificamos então que os sentimentos criam sinalização permanente nas nossas vidas e colaboram directamente na criação e afirmação da nossa personalidade bem como na construção intelectual (por exemplo: a capacidade de uso da linguagem) que orienta as nossas motivações e realizações. A diversidade tipológica entre os seres humanos sempre resguarda o geral e o particular.

Para Damásio este processo desencadeia-se e prossegue através dos sentimentos e da sua ligação à cultura, às diferentes culturas.

Verificamos que os sentimentos como representação do estado da nossa vida nos permitem receber informação sobre aspectos, funções, momentos específicos que nos esclarecem sobre como está o nosso organismo num determinado momento. Tal acontece porque somos possuidores de mente e consciência. Bactérias, formigas, abelhas, amibas, lulas e chocos, por exemplo, são apenas metabolismo.

Gostaria de arriscar e com toda a humildade que talvez os sentimentos estejam associados ao princípio da consciência sem, no entanto, a ela se sobreporem. Quando pensamos nas bactérias, uma mais «atrevida» do que a outra, o que não impede que tenham finalmente encontrado um equilíbrio entre elas, não estamos sequer a pensar nem em sentimentos nem em consciência. Neste caso funcionou o metabolismo. Relativamente aos seres humanos na cadeia evolutiva este exemplo pode ter, e terá tido, repercussão. No entanto não se tornou o único modelo a considerar. Muito gostariamos (e também com Damásio) que o gesto cooperativo fosse sempre o dominante. Como estamos ainda em evolução, quem sabe se gerações futuras o irão alcançar.

 

Leituras recomendadas:

A obra de Damásio em estudo foi disponibilizada através de E-book. Poderá não coincidir a paginação com o volume em papel.

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. Leitura orientada em função das sugestões feitas por Didi-Huberman.

DAMÁSIO, António 2017. A Estranha Ordem das Coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, Lisboa: Temas e Debates | Círculo de Leitores. Capítulos 7 e 8, pp. 143-199.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.