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História da escrita latina II

14 Novembro 2017, 16:00 Susana Tavares Pedro

 UNCIAL

            O afastamento da escrita usual latina em relação à  escrita canonizada (maiúscula cursiva) era demasiado grande para que não surgisse o impulso de formar uma nova escrita que a substituisse mesmo nos libros de maior prestígio editorial, ou seja, uma nova canonização.

            A nova canonização dá-se no ambiente de algumas escolas escribais na vanguarda da vida cultural latina e latino-cristã (em África, segundo Traube). séculos IV-V dC

Terá sido motivada pela

• permanência do gosto pelo sistema bilinear maiúsculo

• influência de modelos alfabéticos consagrados por uso secular

=> nasce uma escrita que incorpora algumas caracteríscticas da nova usual mas reduz-lhe as hastes e alguns olhais e se reintegra no esquema bilinear

As letras características da uncial são: a, d, e, m, mais o g, h, l, q e u.

Têm em comum um traçado arredondado, com formas mais largas, espaçadas e pesadas que as da capital, e Cencetti vê nesta característica um reflexo do gosto estético e não o produto de uma mudança técnica (mudança do suporte do papiro para o pergaminho) uma vez que se encontra em escritos sobre papiro.

É a segunda canonização da idade romana, e manteve-se em uso durante o século VIII e mesmo até ao s. XI nas rubricas dos capítulos (mais do que a capital)

MINÚSCULA PRIMITIVA

            Sendo um compromisso entre o velho e o novo, mesmo depois de canonizada, em muitas escolas escribais contiuam a tendência para extrair da “usual” uma outra escrita livresca minúscula, mais fluida e desinvolta que a uncial e, ao mesmo tempo, típica e caligráfica.

=> entre finais V e princ. VI os mesmos elementos que foram usados na canonização da uncial são adaptados a uma nova caligrafização, a que se dá o nome de minúscula primitiva (tb minúscula antiga ou semiuncial — este menos adequado porque não deriva da uncial, como o nome sugere).

            Mantém alguns elementos formais como o arredondamento das formas mas respeita plenamente os modelos alfabéticos livrescos usuais.

            Embora seja considerada por alguns autores como o 3.º tipo de escrita romana, Cencetti duvida que tivesse sido um “tipo”, i.e., “una forma scrittoria com regole fisse e determinate”. [70]

Cencetti : a minúscula antiga é uma escrita na qual o processo de canonização foi interrompido em consequência da ruptura da unidade cultural e gráfica latina provocada pelas invasões bárbaras.

            No seu cânone de formação estariam:

            • a completa aceitação dos modelos alfabéticos minúsculos da escrita usual

            • o arredondamento do traçado das letras com contraste vertical e oblíquo

Os olhais pesados e espaçados e as hastes pouco aumentadas davam-lhe um aspecto geral não muito diferente das maiúsculas e da uncial em particular. Usada esparsamente nos séculos VI e VII, quase desaparece no s. VIII e não resiste à nova minúscula do s. IX.
 minúscula cursiva

Além destas transformações da escrita usual latina, a partir da maiúscula cursiva, numa nova canonização livresca (uncial) e numa via tendencialmente canonizável também livresca (a minúscula antiga ou semiuncial ou minúscula primitiva), há outra vertente que opera no âmbito da expressão cursiva da escrita usual.

            (Battelli 2002: 75) Um elemento que aparece primeiro como tendência na maiúscula cursiva e se acentua até a transformar num outro género de escrita é o elemento minuscolizante, notável desde fins II dC.

            O testemunho mais antigo data de 287-304 ou 287-293 e não se pode imputar apenas à escrita da maiúscula cursiva sobre papiro.

1. traçada com cálamo aparado em ponta aguda -> não há contraste

2. rapidez do traçado reflecte-se na feitura das letras individuais

3. reflecte o «tratteggio invisibile» das letras, i.e. o percurso que a mão deve realizar com o cálamo erguido entre o fim de um signo e o princípio do seguinte, as formas alfabéticas transformam-se "espontaneamente" para  para o tornar o mais curto, ágil e escorreito possível. No traçado cursivo o cálamo sucede ficar pousado no suporte e dá-se a formação de ligaduras

4. as ligaduras, "efeito espontâneo da dinâmica de escrita", tornam-se elemento essencial da escrita cursiva e constrangem o modelo fundamental das letras individuais, obrigando a modificações, das quais a mais frequente é a abertura de olhais normalmente fechados.

            No séc. V a minúscula cursiva perde as formas arredondadas características e a verticalidade do século anterior, inclina-se para a direita, fica mais cerrada e mais alongada, mais regular e aumenta a tendência para formar ligaduras.

Com o desmembramento do Império (476)não cessa de imediato a unidade gráfica que dura até à segunda metade do século VI. As escritas canonizadas, com regras fixas, mantém-se em uso, tal como a minúscula cursiva, em uso quotidiano. É um comunhão fundada na tradição que deixa gradualmente de ser nutrida por trocas contínuas. Tem em si o germe da diferenciação, ou melhor, de um desenvolvimento ramificado geograficamente em cada um dos novos reinos europeus.


História da escrita latina; periodização

7 Novembro 2017, 16:00 Susana Tavares Pedro

PERIODIZAÇÃO

A - (Battelli 2002: 53)

Três grande períodos:

1.º        escrita nos centros de cultura romana e tardo-antiga (s. I-VIII)

2.º        escrita nos centros de cultura medieval

            a)  séc. VII-XII, predomina a produção librária monástica

            b) séc XIII-XIV, predomina a produção librária universitária e da sociedade laica e eclesiástica

3.º        escrita na idade moderna (desde o s. XV) 

B - (Cencetti 1997: 56)

Quatro períodos:

1.º        unidade da escrita romana (as mesmas escritas usadas em todos os países de cultura latina. Termina com a formação dos reinos bárbaros: França e Espanha no s. V, Itália, finais VI)

2.º        escritas nacionais = particularismo gráfico: formação de diversas escritas, canonizadas e não-canonizadas, nos vários países e reinos em que se desmembrou o Império Romano do Ocidente

3.º        carolino-gótico: reconstituição da unidade de escrita do Ocidente com a adopção de uma nova escrita latina única; França, Alemanha e Itália do Norte no séc. IX, Espanha final XI, Portugal séc. XII, Ilhas Britânicas, XII, Itália do Sul entre XII e XIII

4.º        humanístico-moderno: recuperação das formas da época carolíngia pelos humanistas italianos (s. XV) e ulterior adopção nos países europeus (XVI e XVII) com excepção da Alemanha; Portugal fins XVI-XVII


HISTÓRIA DA ESCRITA LATINA I

O alfabeto latino original deriva do etrusco mais antigo e compõe-se de 21 letras às quais se juntam 3 signos para numerais.Entre os séculos VII e IV aC adapta-se à fonética latina (C -> G; F) Forma-se a base de uma escrita usual

1. Na epigrafia (únicos testemunhos conhecidos) sofre influência estética e regulariza-se, inscreve-se no sistema bilinear, dá-se uniformização dos ângulos e geometrização das formas É o que Cencetti chama de estádio da “normalização” Entre I aC e I dC dá-se a primeira canonização desta escrita usual:

• geometrização rigorosa segundo ângulos rectos e arcos elípticos próximos do círculo

• contraste entre traços finos e grossos por influência das incisões de secção triangular

• alargamento propositado das extremidades das hastes verticais

2. Paralelamente desenvolve-se uma caligráfica livresca que provoca uma modificação do cânone

• exagero no contraste • encurvamento dos ângulos

• alargamento das extremidades das hastes substituído por traços grossos complementares (aquilo a que Mallon chamou elementos acessórios).

Afastamento do cânone original em direcção ao cursivo “na escrita latina do período arcaico além da instância caligráfica da qual nasce a capital, aparece também uma forte instância cursiva”. Estas tendências estão atestadas desde pelo menos o séc. III aC e duram até finais do séc. II dC "O filão cursivo da escrita latina deriva da escrita arcaica mas, parte viva como é da ‘usual’, não aceita cristalizações, evolui continuamente e aplica a sua obra de redução mesmo a formas alfabéticas talvez canonizadas". A Maiúscula cursiva (men bene Capital cursiva) é uma das multíplices expressões da «usual», que se encontra em graffiti, tabuinhas enceradas e papiros (quer em versão documental quer livresca) mas os testemunhos são pouquíssimos. É uma transformação que ocorre nos 3 primeiros séculos da era cristã.


Mallon [52] - A inclinação da escrita para a direita, que decorre entre os séculos I e II dC na «écriture commune», não se pode explicar senão por

1) uma inclinação da folha para a esquerda, ou

2) a folha permanece direita mas o instrumento, antes seguro entre os indicador e o médio, passa a ser empunhado entre o polegar e o indicador.

De Bellis Macedonicis f. I dC/in. II dC - pela presença dos nomes Filipe e Antíoco - códice em pergaminho

Epitome Livii III dC - rolo de papiro com uma epítome das Histórias de Tito Lívio

Escritas de módulo pequeno (3mm), mesma entrelinha, mesmo peso (contraste).

Diferem no ângulo de escrita. “É pela mudança das posições respectivas da folha e do instrumentos que se explicam as alterações da escrita do De Bellis na Epitome, que afectam as formas de certas letras”. à a localização dos cheios; a tendência à verticalização dos traços oblíquos; a deslocação para a direita do ataque dos traços

o D o H e o Q mostram os efeitos do tratamento cursivo da escrita clássica romana.


Elementos da análise paleográfica

31 Outubro 2017, 16:00 Susana Tavares Pedro

Forma - o aspecto exterior das letras que o escriba executou.

Ângulo de escrita - posição em que se encontrava colocado o instrumento do escriba em relação à direcção da linha (BN sugere melhor: ângulo da pena)

Ductus - ordem de sucessão segundo a qual o escriba executou os traços (que devem ser numerados) e o sentido em que fez cada um deles (indicado por setas)

            O ângulo da escrita pode condicionar o ductus.

Módulo - dimensões das formas: a largura (que varia de letra para letra no mesmo alfabeto  mas pode ser comparada entre exemplos diferentes da mesma letra) e, sobretudo, a altura. A altura é calculada segundo a altura média do corpo das letras na linha (não pelas hastes)

            O módulo é uma relação de grandeza.

Peso - depende do instrumento. Diz-se pesada ou leve. Uma escrita pesada é executada com um instrumento flexível que causa grande contraste entre traços finos e grossos; uma escrita leve é executada com um instrumento duro que não causa diferenças significativas entre traços finos e cheios.

ductus e “tracejamento” (tratteggio) – “il modo in cui i segni alfabetici sono scritti”

            ductus – define a rapidez de traçado, que pode ser

                        a) cursivo – quando o traçado é rápido

                        b) pousado ou direito – quando os traços, mais do que escritos, são (quase) desenhados

                        c) semicursivo – série de gradações intermédias

O ductus rápido (cursivo) conduz facilmente à incorrecção e irregularidade na execução dos signos de escrita

O ductus pousado ou direito traduz precisão e regularidade

ligaduras e nexos

             ligaduras – ligações espontâneas e naturais de duas ou mais letras entre si, determinadas por motivos puramente gráficos e muito frequentes nas escritas cursivas. Nas escritas mais antigas a ligações entre letras altera as respectivas formas fundamentais. As ligações acontecem entre traços orgânicos dos signos alfabéticos e muitas vezes a “afinidade” gráfica (i.e. a tendência para serem feitos de um só traço) entre dois "segni" sucessivos pertencentes a letras diferentes era de tal forma grande que induzia a quebra da figura dos signos, unindo traços de letras diferentes e separando os traços (internos) das letras individuais.

            nexos – fusões de signos alfabéticos não espontâneas (não ditadas pela afinidade gráfica) mas pensados e e feitos de forma voluntária antes da escrita, nas quais um ou mais traços de uma letra servem também para a outra.


Escrita livresca, escritas canonizadas, escritas tipificadas

24 Outubro 2017, 16:00 Susana Tavares Pedro

7. Escrita de chancelaria
 Em documentos que manifestam a vontade do soberano ou de outra autoridade temporal ou esptiritual, a exigência de serem distintivos e de transmitirem autenticidade e solenidade reflecte-se na elaboração voluntária de escritas especiais, com características que favorecem a identificação com a chancelaria de origem e que por vezes sacrificam outros critérios como a legibilidade ou a estética. São mudanças rápidas porque pensadas e propositadas. Têm como resultado formas artificiosas, convencionais, sempre mais ou menos diferentes das usuais, frequentemente com traços acessórios supérfluos introduzidos não tanto com finalidade estética mas sim com o objectivo de assegurarem a caracterização e como garantia de autenticidade.
8. Escrita livresca (Cencetti)
A regra que se estabelece na escrita de livros é em direcção à clareza. As alterações são mais lentas e graduais que as que se dão no âmbito das chancelarias; as exigências estéticas têm grande influência porque o público exige escritas claras mas também belas: este género tende para o espaçamento das letras, a armonia das dimensões e das proporções, a regularidade do alinhamento, a exactidão do traçado, e a simplicidade dos signos. Estre processo desenvolve-se na maior parte dos casos em oficinas de escrita, entre copistas profissionais.
9. Escritas canonizadas
ambos os processos assentam numa tendência predominante (clareza ou solenidade). quando a escrita resultante se torna de uso geral nos géneros de escritos aos quais se aplica, as formas resultantes mantêm-se estáveis e as regras de escrita elaboradas fixam-se em cânones seguidos obrigatoriamente. Temos então escritas canonizadas, que se distinguem das usuais (normais) (mutáveis e sempre em desenvolvimento). Estas escritas conservam-se fixas durante mais tempo porque a canonização das suas regras não admite inovações substanciais, acabando por se tornar cada vez mais antiquadas e inadequadas às novas exigências. Em certos momentos o distanciamento torna-se intolerável e 1) as chancelarias abandonam as suas escritas peculiares e 2) as livrescas são ou abandonadas pelas escolas escribais ou se "abrem" relaxando o cânone e admitindo novas formas que acabam por se sobrepôr às antigas. Em ambos os casos normalmente começa um novo processo de canonização, com base nas escritas usuais que entretanto se continuam a modificar e a evoluir.
10. Escritas tipificadas
 O que foi descrito é um paradigma, uma abstracção dos processos individuais concretos e históricos. Algumas tipificações dão tentativas de elaboração de uma escrita livresca que se prendem com a formação de regras gráficas mas não com a sua fixação em cânones e que, portanto, desaparecem rapidamente, ou formas intermediárias entre as cancellerescas e as usuais que surgem em determinados lugares em tempos específicos (por exemplo em documentos notariais).
11. Escrita documental (Derolez)
(A. Cruz: epistolaris) (2003: 4) A separação entre livros e documentos remove a base para compreender a evolução e diversificação das escritas. Em traços gerais, a relação entre escritas livrescas e escritas documentais pode ser esboçada assim: as escritas livrescas implicam um grau mínimo de formalidade enquanto as escritas de documentos tendem a ser informais. Nestas, as formas das letras alteram-se e tornam-se cursivas para conseguir maior rapidez de escrita.. Podem apresentar características como arredondamento, alargamento, reduzido número de traços por via de laçadas e ligaduras, fragmentação, etc. Com o tempo, as novas formas tornam-se a norma e podem ser estilizadas e executadas de modo caligráfico através do aumento do número de traços e diminuição das ligaduras, criando assim uma nova escrita livresca canonizada. A diversificação de escritas documentais ao longo de linhas regionais e nacionais foi sempre maior do que a das escritas livrescas.


Escrita normal, Escrita elementar de base, de chancelaria

17 Outubro 2017, 16:00 Susana Tavares Pedro

4. Escrita normal

Alessandro Pratesi (1961) Paleografia, in Enciclopedia italiana, Terza Appendice, III, M-Z, Roma, 352-355

“um esquema abstracto, não documentado nas manifestações práticas de escrita e todavia real como letras-tipo dos abecedários coevos, caracterizado por uma relação precisa do número, sucessão, direcção e desenvolvimento dos traços de cada signo literal” outra definição de escrita «normal» em Alessandro Pratesi, Paleografia greca e paleografia latina o paleografia greco-latina?, in Studi in onore di Gabriele Pepe, Bari 1969: 167 («algo de comparável aos modelos alfabéticos apresentados nas páginas do abecedário da nossa infância, dos quais emanaram as transformações que conduziram à escrita individual de cada um de nós, tão diferentes uma da outra»)

5. Escrita elementar de base
Estes constituem, em cada sociedade de escreventes, um estrato homogéneo de modelos gráficos (logo, também uma «norma» a nível de abecedário, para usar um termo moderno), caracterizado praticamente em todas as circunstâncias pela identificação autónoma dos elementos individuais, pela consequente ausência de ligaduras cursivas ou de nexos entre eles, pelo parco ou nulo uso de abreviaturas, pela falta de elementos de enquadramento, separação e explicitação do discurso (uso de maiúsculas, pontuação, sinais diversos, etc.); tirando os quase sempre raros testemunhos didácticos directos (modelos dos mestres, exercícios escolares, etc.), apenas os testemunhos de escritas usuais de semialfabetizados podem fornecer exemplos mais ou menos directos da norma gráfica ensinada a nível elementar, porquanto reproduzem, embora frequentemente de maneira deformada pela imperícia pessoal e por influências externas, a suas características fundamentais.
6. escrita de chancelaria
Em documentos que manifestam a vontade do soberano ou de outra autoridade temporal ou esptiritual, a exigência de serem distintivos e de transmitirem autenticidade e solenidade reflecte-se na elaboração voluntária de escritas especiais, com características que favorecem a identificação com a chancelaria de origem e que por vezes sacrificam outros critérios como a legibilidade ou a estética. São mudanças rápidas porque pensadas e propositadas. Têm como resultado formas artificiosas, convencionais, sempre mais ou menos diferentes das usuais, frequentemente com traços acessórios supérfluos introduzidos não tanto com finalidade estética mas sim com o objectivo de assegurarem a caracterização e como garantia de autenticidade.