Sumários

Em busca de um cérebro consciente

6 Maio 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

MAIO                                    2ª FEIRA                                          13ª AULA

 

 

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Saída de campo – à Exposição Cérebro – mais vasto do que o céu, Fundação Calouste Gulbenkian, dia 3 de Maio, entre as 18:30 e as 20:00.

 

E de novo optámos por uma aula no exterior entre árvores de fruto e arbustos, rodeados por água marulhante. Trazíamos de trás experiência fecunda sobre as nossas conversações e quisemos dar-lhes continuação.

 

A componente de cognição, que foi transversal ao nosso programa, obteve através da exposição uma espécie de reforço por aquilo que não fomos capazes de realizar em tempo útil, mas também por aquilo que nos proporcionou ao criar um espaço de discussão sobre aquilo que sabemos e não sabemos.

Este encontro com Cérebro – mais vasto do que o céu tornou-se numa feliz coincidência, num amplo céu aberto e luminescente, a partir do qual pudemos inquirir as nossas dúvidas e perplexidades.

Esta exposição, entre outras coisas, permitiu a cada um de nós descobrir o que ainda não sabíamos, reforçar o conhecimento do que já antes havíamos adquirido como saber inextinguível, confrontarmo-nos com os avanços científicos e tecnológicos que polemizam a relação da inteligência artificial com a inteligência biológica.

Recordo aqui um momento que não comentámos na nossa aula de seminário mas que me deu que pensar. Tratou-se de O Cérebro Colectivo X: IA+ARTE conforme o colectivo brAIn.

O autor deste projecto dá pelo nome de ALAgrApHY, em versão mais sintética Al, e desenvolve um trabalho artístico baseado no uso de inteligência artificial com o objectivo de construir um vasto arquivo com imagens de rostos singulares de pessoas de todas as «diversidades, idades e géneros» (Catálogo da Exposição, 2019: 134) Parece-me desnecessário descrever o processo utilizado por Al, pois o que me interessa é dizer que tudo nasce com a fotografia, aos milhares, e que com ela e a partir dela o artista constrói uma de muitas possibilidades de agrupamento de rostos, mais ou menos belos, mais ou menos pregnantes; e a ser assim poderíamos pensar no Atlas Mnemosyne de Aby. M. Warburg, que tudo fez em modo manual e artesanal para configurar uma infinitude de possibilidades de articulação entre imagens. Warburg não se detinha apenas em rostos. O seu horizonte de pesquisa cruzava épocas, períodos da história de arte, tempos históricos do continente europeu e outros, acontecimentos seus contemporâneos, publicidade, desporto, política, arte e muito variada. Enfim, tudo o que nos diz respeito e a ele dizia particularmente respeito.

A fotografia estava também presente nas escolhas de Warburg, a dele e a de outros. Mas com Warburg não se punha a questão se a arte era do Homem ou da Máquina. Para Al a máquina, a técnica, a programação são absolutamente essenciais para a execução da sua obra.

O que importa salientar no caso de ambos os artistas (Warburg era um criativo nato) é o sentido de dimensão colectiva da obra de arte que não adquire um carácter fixo e imutável mas antes se projecta numa contínua e infinita transformação. Este processo encontra paralelo naquilo que podemos apurar em relação à funcionalidade cerebral e à capacidade de armazenamento proporcionada pelos sentidos, pela memória, e pela própria subjectividade. A interactividade e o dinamismo das propostas de Al, mas também em Warburg, espelha-se, por exemplo ainda, na obra que pudemos contemplar à entrada da exposição, intitulada Self reflected – Microgravura em ouro a 22 quilates sob luz branca, de Greg Dunn e Brian Edwards. 2014-2016. E aqui a velocidade da mudança colorida, associada a uma imagem que transborda de si mesma perante o nosso espanto, não encontra conforto naquela frase que legenda essa sucessão de imagens através da cor: «86 mil milhões de neurónios, 100 biliões (1014) de sinapses, um trilião (1018) de cálculos por segundo.» (Catálogo da Exposição, 2019: 12)

Confesso a minha incapacidade de ser capaz de operar com estes números. Talvez todos tenhamos idêntico problema, o que pode significar que ler ou ouvir a referência a estas quantidades astronómicas de neurónios, sinapses, pura actividade cerebral possa ser para nós paralisante. Mas não tem de ser assim se pensarmos não nos números mas naquilo que deles resulta: a nossa consciência, os nossos valores éticos e morais, as nossas emoções, os nossos sentimentos, a nossa subjectividade, a nossa capacidade de sobrevivência, a nossa vontade de contribuirmos para a regulação da nossa vida.

 Pudemos então, cada um à sua maneira e com tempo próprio, entregarmo-nos a descobertas, confirmações, leituras, fruições de uma ideia de cérebro que foi, prossegue em continuidade e que nos ultrapassará quando cá não estivermos. Encontrámos respostas sistematizadas e bem documentadas sobre a sua história e evolução no ser humano e em outros animais, sobre algumas das suas doenças, mas também fomos sensíveis á experiência emocional que pudemos aferir durante e depois da ida à exposição. Quantos de nós não desejaram estar sozinhos naquela escuridão mobilizadora?

Extra-exposição observámos hoje e comentámos um anúncio publicado na revista do Expresso do dia a seguir à ida à Gulbenkian. Consciencializámo-nos, por exemplo, de como uma recente campanha de marketing a um suplemento alimentar, alegadamente favorecedor das capacidades cognitivas, usava uma inócua imagem de um cérebro para promover o produto farmacológico. Há uns anos atrás esta imagem não teria o efeito agora alcançado: o discurso em torno do cérebro está na ordem do dia por todos os bons motivos que têm a ver com o nosso esclarecimento acerca de um órgão essencial na vida da espécie humana e em outros animais. É de louvar, portanto, que exista um interesse institucional que abra portas, a quem assim o desejar, a uma relação muito bem contextualizada de maior familiaridade e aprendizagem com aquela parte de nós que nunca alcançamos através dos sentidos e que nos é essencial para a vida.

O sentido de divulgar, de tornar mais acessível o que para nós continua a estar envolto em tanto mistério (o objectivo da exposição), convive ao mesmo tempo com as leis de mercado que banalizam a imagem do cérebro apenas com o intuito de vender um produto (o objectivo do anúncio). O primarismo da informação anunciada foi de bradar aos céus, o que não invalida o seu sucesso. Uma tecla com a inscrição de «on» ocupava uma zona central do cérebro, próximo da área de Wernicke, onde se produz o discurso e são accionadas as repetições de palavras. Mas quem sabe disto? A promessa de um cérebro em funcionamento optimizado em registo «yper» através do «yperton» fez-nos pensar como uma campanha publicitária desta natureza poderá ter um público-alvo que se reveja na expectativa anunciada. A utilização da imagem do cérebro pode querer significar a sua vulgarização para fins comerciais e esta será com certeza a razão da escolha do órgão pela empresa promotora do produto. É sem dúvida importante que conheçamos melhor o que somos e de que o cérebro é parte inteira, mas autonomizar esta parte de nós como se a sua regulação pudesse existir sem nós, sem o nosso corpo, sem a mente que a ele está ligada, empobrece-nos.

 Ocupámo-nos ainda de rever com os alunos o estado de avanço dos seus trabalhos finais. Persistem dúvidas que tentámos esclarecer. Existem já sólidas leituras que por certo terão continuação na escrita.

A chegada de O Livro da Consciência – A construção do cérebro consciente de António Damásio, pela mão do João Henriques, veio corroborar a saída de campo e a possibilidade de dar encaminhamento à componente cognitiva do nosso programa.

Algures entre emoção e sentimento (Damásio, 2010: 142-160) o aluno leu e comentou uma passagem que lhe permitiu falar da sua experiência como director vocal sobre a prestação de voz de actores e cantores. O andamento do seu ensaio final irá nesta direcção, considerando o papel da consciência de si mas essencialmente a função das emoções e sentimentos no desempenho do canto artístico. Esta intervenção alargou-se posteriormente à discussão sobre diversas possibilidades técnicas e artísticas, mesmo estéticas, que envolveram a construção e o trabalho de experimentação com a voz numa direcção mais realista ou mais simbolista e que levou à nomeação de encenadores e suas escolhas, como por exemplo, Eugenio Barba, Antonin Artaud, Constantin Stanislavski, Michael Chekhov pelo Prof. Alexandre Calado.

 

Mantemos ainda uma saída de campo a 2 de Junho, pelas 18:30, à Fundação Gulbenkian para escutarmos a conferência de António Damásio, O Cérebro, o Corpo, e a Naturalidade da Consciência.

 

Os ensaios finais serão entregues a todos os professores até ao dia 19 de Maio. A avaliação dos mesmos será feita em conjunto, independentemente dos particulares acompanhamentos que os alunos tenham solicitado.

Haverá uma breve sessão entre alunos e professores no dia 31 de Maio às 14 horas, no espaço ao ar livre, para aferição de todos os elementos avaliados.


Leituras aconselhadas:

António Damásio, 2010, O Livro da Consciência - A Construção do Cérebro Consciente, Lisboa: Temas e Debates ! Círculo de Leitores.

Rui Oliveira (Comissário da Exposição - Catálogo), 2019, Cérebro - mais vasto que o céu, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.


Sobre o nosso trabalho conjunto

29 Abril 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

ABRIL                                   2ª FEIRA                               12ª AULA

 

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Voltámos a escolher estar ao ar livre para a realização da nossa sessão de seminário. À volta de duas mesas juntas sentámo-nos para uma conversa sobre o desenvolvimento do nosso programa e o andamento dos trabalhos finais dos nossos alunos.

Apurámos que existem ainda zonas de penumbra de diversa natureza na moldagem dos ensaios finais e que é preciso que alguma bibliografia possa ser disponibilizada para acerto de leituras anteriores. Há quem tenha já estruturado o rumo que pretende seguir, há quem esteja equacionando suas dúvidas, há quem aguarde o momento certo que lhe ditará o arranque da escrita.

O nosso encontro teve a qualidade de um verdadeiro debate, na medida em que questionámos as fragilidades de cada um dos núcleos de trabalho e as suas reais potencialidades ao estabelecerem nexos entre si. Assegurados respectivamente pelos quatro professores através destes núcleos operámos nas áreas das artes plásticas, artes cénicas, artes fílmicas, filosofia, teoria e prática dramatúrgica em estudo de caso, acompanhamento de processo de encenação.

Tivemos cinco saídas de campo: ensaio de ópera, ensaio de teatro, conferência/mesa-redonda, estreia de espectáculo de teatro, espectáculo de teatro. Teremos ainda duas saídas à Fundação Calouste Gulbenkian em busca do cérebro e para dele ouvirmos falar na produção de consciência.

Verificámos que cada núcleo programático era demasiado exigente para o tempo que lhe foi atribuído. Fomos incautos na distribuição de calendário.

Verificaram os alunos que o título do nosso seminário – Espectáculo e Cognição – se diluiu nos nossos afazeres sem ter sido claramente explicitado. Talvez os alunos tenham razão por lhes termos omitido clareza conceptual. Não houve da nossa parte nenhuma estratégia oculta. Quisemos antes que fossem os alunos a fazerem esse percurso em função da diversidade de propostas e do modo como elas iam sendo apresentadas e trabalhadas.

Vejamos então.

A relação com a dimensão espectacular dos objectos que visionámos traduziu-se numa escolha disponível na cidade e arredores, numa proximidade a esses objectos por interposta mediação (interesse de programa, presença de aluno ou professor na equipa artística, paralelismo ideológico entre textos, integração conceptual entre áreas) e sobretudo no interesse de podermos fazer uso das nossas capacidades mentais e afectivas como a percepção, a atenção, o poder associativo, o jogo do imaginário, a criação de juízos de valor, o puro raciocínio, o recurso à memória, na perspectiva de sermos capazes de formular discurso (oral e escrito) sobre essas experiências.

Estivemos assim, em determinados períodos de tempo e em diversos espaços a processar informação que desejamos transformar em conhecimento. E mais do que isso, procurámos moldar-nos interiormente como seres.

A condição de espectadores destas produções deu aso a que a nossa capacidade de atenção ao observado fosse alvo das nossas próprias perguntas e que através delas tivessemos podido defender os nossos pontos de vista. Este exercício comum a muitos dos actos que realizamos quotidianamente teve nas saídas de campo a extensão possível que amparou o nosso programa. Apesar disso, o nosso estado de consciência durante a assistência aos espectáculos não terá sido alvo da nossa específica atenção. Também poderá ter sido, embora não nos tivessemos questionado sistematicamente acerca disso. É difícil a uma mente atenta ao que nos é exterior produzir controlo sobre o seu próprio funcionamento. Quer isto dizer que em espaço de seminário desdobrámos etapas anteriores e posteriores às expectações projectando-as em direcção a um futuro, primeiro limitado pelo fim do próprio semestre, depois como matéria a gerir em outros contextos.

Em espaço de seminário dedicámos o nosso tempo a assuntos directamente relacionados com as saídas, mas também a elas alheias e que nos conduziram noutras direcções. Este talvez tenha sido o enriquecimento do nosso trabalho conjunto e que não se mede por uma qualquer circunstância nem se afina por caminhos em voga.

Exercitámos assim a nossa mente através de uma variedade de imagens que os nossos cérebros foram processando independentemente ou não da nossa própria vontade. Estivemos e continuamos a estar, graças às nossas próprias capacidades cognitivas, em processo de conhecimento saudável que nos interpela a cada momento.

Em obra que não estudámos A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, António Damásio afirma:

«(…) os componentes individuais que contribuem para a perceção de um determinado momento no tempo podem ser experienciados enquanto um todo. A integração ocorre devido à ativação, em simultâneo e em sequência, de várias regiões [do cérebro] separadas. É quase como proceder à montagem de um filme selecionando imagens visuais e excertos de banda sonora, ordenando-os conforme necessário, mas sem nunca imprimir o resultado final. (…) Todas as imagens do mundo exterior são processadas de forma paralela às reações afetivas que produzem ao agir sobre outras partes do cérebro – sobre certos núcleos do tronco cerebral e sobre os córtices cerebrais que representam o estado do corpo, como por exemplo a região insular. Isso significa que o nosso cérebro se ocupa não só de mapear e integrar o que lhe chega de várias fontes sensoriais externas, mas também, simultaneamente, de mapear e integrar estados internos, um processo cujo resultado é, nada mais, nada menos, do que os sentimentos.» (Damásio, 2017: 129-130)

Falámos ainda na sessão ao ar livre de um conceito que é em si uma progressão e um continuum, um verdadeiro desafio para a humanidade, desde imemoriais tempos, através do qual se vislumbra equilíbrio e regulação da vida.

De novo com Damásio:

«O estado homeostático que «foi responsável pela emergência de estratégias e dispositivos comportamentais capazes de garantir a manutenção e o florescimento da vida (…) gerou os precursores do sentimento e da perspectiva subjectiva.» (Damásio, 2017: 232)

 

Por último, uma breve introdução ao filósofo Byung-Chul Han que vos falta conhecer.

 

Vídeo sobre e do autor Byung-Chul Han:

https://www.youtube.com/watch?v=cAiD2uyLcWM

 

Leitura aconselhada:

António Damásio, 2017, A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, Lisboa: Temas e Debates / Círculo de Leitores.

 

 

Aulas previstas em Abril – 4

Aulas dadas em Abril - 4

Saídas culturais - 2


Férias da Páscoa

22 Abril 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Férias da Páscoa


Relações de intermedialidade a propósito de "A Parede" de Elfriede Jelinek

15 Abril 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

ABRIL                                   2ª FEIRA                               11ª AULA

 

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Saída de Campo – Assistência ao espectáculo A Parede do ciclo A Morte e a Donzela (V) – Dramas de Princesas de Elfriede Jelinek (estreia). Encenação de Alexandre Pieroni Calado. Auditório-Estúdio António Assunção, Almada, pelas 21:30, em 12.4.2019. Duração do espectáculo 70 min.

 

Saída de campo – Assistência ao espectáculo Esplendor e Miséria inspirado na obra Esplendor e Miséria no Terceiro> Reich de Bertolt Brecht. Encenação de António Pires. Teatro do Bairro, pelas 21:30. Duração do espectáculo 120 min.

 

Sumário

Alexandre Pieroni Calado propôs uma exegese e a discussão do processo de criação do espectáculo A Parede (Teatro Estúdio António Assunção, 12 Abril 2019), no quadro de referência de um projecto de pesquisa prática em artes (NELSON, R.. 2013). Calado fez a contextualização da proposta de encenação numa genealogia de práticas que incluem as óperas intermedia The Cave (1993), de Steve Reich e Beryl Korot, Perfect Lives (1977-1983), de Robert Ashley, a série de vídeo-retratos voom Portraits (2004), de Robert Wilson, para além do espectáculo Dramas de Princesas (2015), do próprio Calado. Além disso, Calado iluminou a construção do espectáculo através da noção de «intermedialidade», mostrando-a capaz de contribuir para uma compreensão, não apenas do fenómeno teatral em geral, mas especialmente do espectáculo em estudo, tendo em vista o estreito diálogo que nele é estabelecido entre discurso audiovisual e a actuação ao vivo. Discutiram-se ainda aspectos específicos do processo de criação, tendo em conta a oportunidade que os discentes tiveram de estudar o texto homónimo de Elfriede Jelinek e de assistir a um ensaio, antes de ver a estreia do espectáculo.

Robin Nelson, 2013. Practice as Research in the Arts. Hampshire: Palgrave Macmillan.

Dick Higgins, 2007 [1984]. Horizons. ubu Editions. Disponível em:  <http://www.ubu.com/ubu/higgins_horizons.html>


As nossas paredes

8 Abril 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

ABRIL                                   2ª FEIRA                               10ª AULA

 

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Ficou em suspenso na nossa última aula  a referência à escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) e ao seu conto The Yellow Paper (1892) que serve de inspiração a Jelinek, na medida em que a protagonista da narrativa de Gilman «no final da história rasteja como uma coisa e despojada de humanidade entre o papel de parede e a parede.» (Britta Kalin, Amerikanisch-österreichische Intertextualitäten und schreibende Frauen in Jelineks ‘Der Tod und das Mädchen IV (Jackie) und ‘Der Tod und das Mädchen V (Die Wand) in:  Pia Janke & Konstanze Fladischer (Ed.) 2017. Jelinekjahrbuch, Elfriede Jelinek  Forschungszentrum 2016-2017, Wien: Praesens Verlag, 146)  O acto de se enfiar entre o papel e a parede é para a narradora e protagonista um alívio - «I’ve got out at last!» (Idem, ibidem: 146) Recorde-se que esta autora, tal como as referenciadas autoras da peça de Jelinek, sofria de depressão continuada sobretudo no pós-parto. O seu casamento com o médico Walter Stetson não foi feliz.

https://en.wikipedia.org/wiki/Charlotte_Perkins_Gilman

https://www.youtube.com/watch?v=PRpBqRd0OOY

Tivemos hoje a nossa primeira sessão de close reading de um texto programático e que corresponde à versão para palco da tradução por mim realizada da peça A Parede de Elfriede Jelinek.

Penalizo-me por não o ter feito com pelo menos uma Composição para Palco de Kandinsky.

Aproveitando o trabalho anteriormente feito por Alexandre Pieroni Calado, que se revelou francamente esclarecedor e muito circunstanciado relativamente às grandes questões colocadas pelo texto, pedi aos alunos que fizessem em casa um levantamento de todas as passagens em que a palavra parede, também muro (p. 7), rochedo (p. 29), surge na peça de Jelinek.

Verificámos que o objecto parede antes de existir na peça é configurável pela nossa experiência perceptiva como ideia, materialização e representação. De tal modo esta constatação adquire verosimelhança e incorporação, que nos confrontámos com o facto de que estávamos numa sala de aula, enclausurados por quatro paredes, e até esse momento não tinhamos sequer tomado consciência disso.

Mas a obra de Jelinek é muito mais complexa do que este mero exercício de recurso e que nos leva a pensar que todos sabemos o que é uma parede. Depois da leitura de Jelinek não sei se poderemos estar assim tão certos.

Constatámos que sendo as várias formas de representação de A Parede quase sempre as de um objecto tridimensional, verificámos também que a sua presença depende directamente da relação estabelecida com as personagens em cena. A parede nunca nos aparece por si e em função de si. No entanto, a sua presença pode ser invocada como transparente (p. 6), invisível (p. 5), espelhadora (p. 9), objectivável, não objectivável, alvo de disputa (p. 4) e pode mesmo tornar-se alvo de personificação (p. 5 e 6), ser autofágica (p. 5), propulsora de vampirismo (p. 5), ter sentimentos, ser insaciável (p. 6) e até antropofágica (p. 6). Eis alguns exemplos da nossa pesquisa conjunta.

De uma perspectiva tão multifacetada e tão singular esta instância, chamemos-lhe assim, torna-se no principal interesse do discurso e acção das vozes que atribuem à parede tudo o que de si nela projectam. A parede é finalmente apresentada como «parede do conhecimento» (p. 6). Talvez seja este o seu principal atributo, o que nos faz pensar que qualquer que seja a relação com a parede, ela é motor de aprendizagem, ou pelo menos de reconhecimento de que essa aprendizagem seria possível.

Sendo a variabilidade de caracterização da parede uma forma de nos despertar para a sua função gnoseológica e instrumental (a parede como revelação), pelo reconhecimento que dela fazemos e consequentemente que nos conduz a pensar-mo-la e a sobre ela podermos fazer juízos de valor, isso significa então que poderíamos considerar uma forma de desdobramento da parede, da parede do conhecimento, na figura de Marlen/Therese/ Tirésias. A ordem de enunciação não é de todo arbitrária.

Se considerarmos o romance de Marlen Haushofer como um dos pontos de partida para a escrita desta peça, a ordem é esta. Mas se, pelo contrário, entendermos que mais importante do que o romance da autora austríaca é a figura mitológica de Tirésias, saberemos respeitar uma outra ordenação. Associar A Parede à transformação interior, à busca de conhecimento, à escuta de um oráculo que nos procura encaminhar para o alcance da verdade parece melhor responder às muitas perguntas que a peça nos coloca.

Não parece que Sylvia e Inge, só porque alcançaram o cume do rochedo se tenham tornado em heroínas da demanda infinda. Permaneceram infantilizadas ou a essa condição retornaram (1ª didascália, p. 30), perderam o alimento, o sangue (2ª didascália, p. 30), aquele que proveio do esquartejamento do bode. O que terão aprendido com tudo isto? Nem a voz difusa de Tirésias /Therese/ Marlen lhes trouxe salvação. A pensar nas últimas duas narrativas da peça, nem a parede foi capaz de as resgatar.

 

Leitura complementar:

Para efeito de citação e por se tratar de um instrumento de trabalho anotado e que corresponde à versão de palco trabalhada com Alexandre Pieroni Calado (encenador) e Paula Garcia Actriz), recorro à minha tradução da peça em dactiloscrito e de ora avante sempre a ele.

 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela – Dramas de Princesas, tradução e nota introdutória – Onde começa e acaba uma princesa? - de Anabela Mendes, Lisboa: Artes & Engenhos (edição de 25 exemplares numerados), 2018.

 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela – Dramas de Princesas, tradução e nota introdutória Onde começam e acabam as princesas? de Anabela Mendes, Lisboa: teodolito/ edições afrontamento, 2019.