Sumários

Ainda o pensamento de Aby Warburg.

15 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Warburg rejeitou com clareza a tese de que a Renascença era um mero retorno ao Antigo (como impunham as teses formalistas de Winckelmann)  Para ele, «os estudos sobre as religiões da Antiguidade clássica ensinam sempre mais do que considerar essa mesma Antiguidade simbolizada por um Hermes bifronte de Apolo e Dionísio. O ethos apolíneo apagar-se-ia com o pathos dionisíaco, quase como uma dobra dupla de um mesmo tronco enraizado na profundeza misteriosa da terra grega... Ora o Quattrocento sabia apreciar essa dupla riqueza oriunda da Antiguidade pagã: os artistas do século XV veneravam a Antiguidade, tanto pela sua ordem e regularidade como pela destreza com que dava expressão ao temperamento patético. Podia-se recorrer aos superlativos da mímica até então banidos como processo de acordo com um tempo que defendia uma expressão mais livre, tanto no sentido real como no sentido figurado. Assim, a ICONOLOGIA CRÍTICA de Warburg nasceu com a consciência de que é antes de mais imperioso cumprir um «inquérito sobre as fontes da imagem». Na sua obra Arte Italiana e Astrologia Internacional, Warburg estuda as imagens pagãs «emigradas» nos países do Norte, e que de seguida ressurgem, por exemplo, nos frescos quatrocentistas do Palazzo Schifanoia em Ferrara (encomenda de Borso d’Este a Francesco del Cossa em 1470), com uma série de metamorfoses naturalmente integradas no discurso.

As trocas de experiência entre o Oriente e o Norte explicariam essa origem clássica de tais figuras.  Para Warburg, «o símbolo é sempre uma forma radical de sobrevivência, exclusivamente racional, simbolicamente omnipresente e omnicompreensível através da memória imagética colectiva».

O símbolo conduz ao espaço de pensamento (Denkraum) em que, através de ondas mnemónicas, estímulos e imagens de fenómenos ancestrais, se exprime o equilíbrio entre polos opostos, a emotividade e a racionalidade, equilíbrio esse que define como a «iconografia do intervalo».

Warburg rejeitou com clareza a tese de que a Renascença era um mero retorno ao Antigo (como impunham as teses formalistas de Winckelmann)  Para ele, «os estudos sobre as religiões da Antiguidade clássica ensinam sempre mais do que considerar essa mesma Antiguidade simbolizada por um Hermes bifronte de Apolo e Dionísio. O ethos apolíneo apagar-se-ia com o pathos dionisíaco, quase como uma dobra dupla de um mesmo tronco enraizado na profundeza misteriosa da terra grega... Ora o Quattrocento sabia apreciar essa dupla riqueza oriunda da Antiguidade pagã: os artistas do século XV veneravam a Antiguidade, tanto pela sua ordem e regularidade como pela destreza com que dava expressão ao temperamento patético. Podia-se recorrer aos superlativos da mímica até então banidos como processo de acordo com um tempo que defendia uma expressão mais livre, tanto no sentido real como no sentido figurado.


Sobre o pensamento de Aby warburg.

10 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Fala-se hoje de um renascimento das teorias de Aby Warburg  para designar o interesse crescente pela sua obra e reconhecer que terá chegado ao momento da sua legibilidade. Este renascimento não é motivado por interesse arqueológico, mas pela constatação de que todo o seu trabalho -- elaborações teóricas, investigações, a constituição da grande biblioteca que o ocupou a vida inteira -- são um contributo fundamental para pensar a História da Arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada – nos seus métodos, nos seus pressupostos – como a própria historicidade das obras de arte. E de modo mais alargado para pensar o vasto campo das ciências da cultura.   

É certo que contingências de vária ordem tornaram difícil a transmissão e recepção de um legado que nunca adquiriu uma forma fixa e acabada e nem sempre se materializou em «obra». 

Quando morreu, em 1929, com 63 anos, Warburg deixava a seguinte herança:

1) o exemplo pessoal de alguém destinado a gerir a os negócios da família de banqueiros judeus de Hamburgo, com enorme relevo na vida da cidade desde o século XVII, mas que opta por uma vida de Privatgelehrter (de erudito trabalhando em regime livre e privado), sustentada pela fortuna familiar, que o torna um representante notável e quase certamente último de «um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz», como o classificou Walter Benjamin no seu ensaio sobre Bachofen.

2) uma biblioteca erguida à custa de investimento privado (de acordo com o entendimento de que «o capitalismo pode também permitir a realização de um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance», prescindindo para um irmão das suas prerrogativas de herdeiro) e reflectindo, na sua complexa organização, os interesses, métodos e conhecimentos do seu criador, acabaria por se tornar em 1921 uma instituição parcialmente pública, desempenhando ao mesmo tempo as funções de instituto de investigação, cuja direcção foi assegurada por Fritz Saxl

3) um conjunto de estudos em grande parte consagrados aRenascimento, campo onde centra a sua investigação histórica e antropológica, apresentados sob a forma de conferências ou comunicações em congressos em parte nunca editados; um volume imenso de notas, apontamentos e escritos diarísticos que reflectem um processo de trabalho com dificuldade em se cumprir (a cada página escrita correspondem dezenas ou centenas de páginas de notas); 

4) um «Atlas» consistindo num conjunto de 63 painéis, onde agrupa mais de mil fotografias a que deu o nome grego colocado à entrada da biblioteca, Mnemosyne, através do qual queria mostrar a permanência de certos valores expressivos dotados de uma «força formadora de estilo» (stilbildende Macht), que sobrevivem como património sujeito a complexas leis de transmissão e recepção.

A administração de tal herança tem-se revelado difícil. Os dois volumes de escritos reunidos só são editados em 1932 por Gertrud Bing, fiel assistente de Warburg, e só vieram a ter continuidade quando em 1998 foram reimpressos, inaugurando uma edição dos Gesammelte Schriften que compreende seis secções. Até à data, para além desses dois volumes com o mesmo título da edição de 1932, Die Erneurung der heidnischen AntikeKulturwissenschaftliche Beiträge zur Geschichte der europäischen Renaissance, foram ainda publicados o Bilderatlas Mnemosyne (2000) e o Tagebuch der kulturwissenschaftlichen Bibliothek Warburg (2001), o que parece indicar que a tarefa editorial está finalmente em andamento.

É ainda uma parte do anunciado, mas já encontramos material que antes só se conhecia em segunda mão, através das referências de quem trabalhou no arquivo do Instituto Warburg, em Londres, especialmente através de E. H. Gombrich, seu director a partir de 1959 e autor de uma biografia intelectual de Aby Warburg saída em 1970. 


Uma discussão sobre o conceito e as práticas da Iconologia.

8 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Uma discussão sobre o conceito e as práticas da Iconologia, e o papel de uma História da arte problematizante no seu empenho em saber ler as obras de arte.


Warburg e Panofsky, ou as vias da Iconologia, hoje.

3 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Entre Aby Warburg e Erwin Panofasky: conceitos e práticas iconológicas com distinções. Um debate a propósito.


Sobre Iconologia

1 Março 2022, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

TRANS-MEMÓRIAS: UMA NOTA SOBRE ARTE E MAÇÃS.

Em 26 de Outubro de 1929 morria em Hamburgo Aby Warburg. O fundador da Iconologia (na realidade uma Antropologia das Imagens entendida como espécie de meta-psicologia das sobrevivências, as nachleben) anotou então um fenómeno singular: no jardim da casa, uma macieira de há muito seca começava a gerar botões de fruto ! Descreveu no diário uma nota sobre a velha árvore de frutos onde vida acabava de irromper... e morreu, deixando na mesa de trabalho mais essa lição: quando menos se espera, a arte da memória cria botões, isto é, renova rebentos frutíferos. Assim se passa com os artista, reinventores de tempos, aporias, fábulas crónicas e fragmentos memoriais perdidos. No ensaio Essayer Voir (2014), Georges Didi-Hubermann evocou as imagens da série 'Apple T', video-projecções do polaco Miroslaw Balka (n. 1958) cuja obra é percorrida pela memória traumática dos campos de extermínio de Treblinka e  Auschwitz. 

Essas imagens, fragmentos de sítio onde nascem maçãs por entre vegetação sem memória, são o fermento com que o artista pretende rasgar o sentido dos tempos (mais do que decifrar sinais históricos), assumindo a busca identitária através de uma criação feita nos limites do teórico e do poético. Mais uma vez as obras de arte (e a História da Arte que as estuda) provam que só fazem sentido se vistas numa dimensão afectiva, antropológica e trans-contextual. Como diz Didi-Huberman, «la raison, l'art, la poésia, ne nous aident sans doute pas à déchiffrer le lieu d' ils ont été bannis, mais ils nous démeurent nécessaires, et même vitaux, pour le déchirer». Belo elogio, sem dúvida, sobre esta nossa senda através de parcelas floridas de humanização -- que é a terra em que a arte reside. Tal como esta história de maçãs renascentes ajuda a lembrar...