Sumários
Aby Warburg: actualidade de um pensamento
24 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Aby Warburg: actualidade de um pensamento
Aby Warburg nasceu em 1866 em Hamburgo no seio de uma antiga família de ricos banqueiros judeus, e teve a existência assegurada pela fortuna familiar, o que mostra, “pelo exemplo pessoal – disse-o em carta ao irmão Max Warburg de 30 de Junho de 1900 – que o capitalismo pode também levar a cabo um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance”. A tese que apresentou em 1891 em Estrasburgo sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, inicia um trabalho de investigação de décadas com objecto no Renascimento e na sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Logo aí começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” centro nevrálgico da sua investigação, tentou compreender o modo como ela é dotada de enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e inserida num processo de transmissão de culturas, facto esse pleno de implicações na própria arte viva. Tratou de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Walter Benjamin, “escova a história a contra-pêlo”...), em que estas, não se reduzindo a simples documento da História, são dotadas de vida póstuma e mostram que é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar completamente diferentes. No estudo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, onde pela primeira vez refere o método iconológico, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época moderna. A História da Arte não se define no sentido cronológico ou evolutivo da análise estilístico-formal, mas sim através do estudo do sentido da involução morfológica que afecta de ana- cronismo todos os modos históricos e estilos. Urge estabelecer um espaço de reflexão e de investigação – Denkraun – que permita o projecto de uma psicologia histórica da expressão humana a partir do estudo das imagens. Esse teatro será a Biblioteca, construída a partir de 1926 em Hamburgo para albergar a Kultgurwissenschstliche Bibliothek Warburg.
Ainda Belting
22 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Na sua obra
mais recente, Hans Belting desenvolve um confronto entre as atitudes perante a
imagem nos séculos XV e XVI entre Bagdad, capital otomana, e o Renascimento
cristão, e não se contenta em explicar a atitude crítica do Islão face às
imagens em nome do interdito religioso e do combate à idolatria,
mas fazendo intervir as especificidades estéticas, sociais e científicas dessa
cultura, em oposição à cultura do Ocidente, através de uma fascinante
interpretação, que abre portas aos estudos integrados de História da Arte.
No limiar da Idade Moderrna, a imagem oriunda do Ocidente cristão vai contituir-se através de uma intensa troca com a ciência e a cultura árabes. Mas o olhar perspéctico, uma das invenções do Renascimento, estará na origem de uma ruptura sem précédentes. O olhar que a arte islâmica exprime é em absoluto diferente: não está ligado a um espectactador nem ao lugar que este ocupa no mundo, mas visa, sim, aproximar-se do irrepresentável, o inominável, ou seja, aquilo que existe de mais profundo e intenso. Diz Anthony Pagden (Mundos em guerra: 2500 anos de conflito entre o Ocidente e o Oriente, Ed. 70) que com a queda de Contantinopla em 1453 pelo Sultão Mehmed II se torna clara do outro lado dos Dardanelos “a percepção de que a Cristandade na parte oriental desaparecera de vez.No seu lugar, encontrava-se a potência mais imponente a ameaçar as liberdades dos povos da Europa desde Xerxes”. Mehmet II (1432-1481) intitula-se Kaiser-i-Rumi , o César dos Romanos”, e em 1480 fez questão de ser retratado por um pintor europeu, o veneziano Gentile Bellini, enviado a Constantinopla, a capital otomana, pelo governo da República do Adriático. O quadro tem uma atmosfera de consagração e apoteose: Imperator Orbis. Mehmet sonhou abrir a corte à arte ocidental, em tentativa frustrada o conceito de retrato à europeia e com perspectiva foi, a curto trecho, rejeitado… Nota Belting que Mehmed II promoveu a tolerância religiosa, tentou uma abertura à cultura do Ocidente, e quis-se retratar à europeia (chmando Bellini), ainda que o gosto pelo arabesco otomano não tivesse igual acolhimento na Europa. Alimentou o sonho de uma coexistência pacífica e criou círculos cortesãos de latim, literatura e arte na corte de Constantinopla. A arte do retrato europeu exigia a mirada frontal, rejeitada na tradição otomana, o que levou Bellini a tentar um compromisso. O quadrinho (Nat. Gallery9 tem legenda em árabe: «É obra de Ibn Muazzin, que foi um dos célebres mestres dos francos». Para o monoteísmo islâmico, a palavra é increada, não é uma personagem visível, represerntável. Para o Islõ, Jesus era só um enviado, recorda Belting. Por isso, a arte do arabesco, tal como a iluminura e a carpintaria lavrada, constituem a grande força da sua arte.
Belting e a Antropologia das Imagens.
17 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A “antropologia das imagens” de Hans Belting (1935-) constitui outro dos títulos mais marcantes da sua obra. O livro chama-se, na edição primeva, Bild-Anthropologie : Entwürfe für eine Bildwissenschaft (Munique, ed. W. Fink, 2001; ed. portuguesa Antropologia da Imagem, KKYM, 2014). O historiador considera imagens quer da história da arte quer da era digital, e tanto do mundo ocidental como de outras culturas, seja em suportes clássicos – como a pintura, escultura, fotografia e cinema – e ainda outras imagens, como a tatuagem facial, a sombra ou o sonho. A História da Arte tal como nos era contada aparece como um equívoco ocidental que trata o desenvolvimento de algumas correntes da produção visual de uma determinada cultura como sendo a narrativa única e universal. O autor propõe uma revisão de tais concepções da pesquisa num novo modo de encarar os fenómenos artísticos, depois de os nomear. Dentro desta perspectiva, Belting oferece-nos um amplo panorama da produção artística e problematiza algumas peculiaridades da arte contemporânea, tentando entender as peculiaridades dos museus de ontem e hoje, ao sugerir uma nova e mais abrangente história da imagem. O livro inclui um conjunto de imagens que não aparentam encadeamento linear e constituem, de per si, um discurso icononímico coerente, que acaba por ser percebido no íntimo diálogo que estabelece com os textos. A imagem propriamente dita decorre, segundo Hans Belting, do encontro entre os meios e o corpo, o lugar vital das imagens. Se Belting se recusa a reduzir as imagens a um mero plano de incorporação material, também reconhece a importância dos meios e processos através dos quais elas se manifestam, em que inclui o próprio corpo.
O livro procede ao estudo de temas tão diversos como a teoria da sombra em Dante e a cultura pós-fotográfica digital, o brasão de armas e a pintura do retrato, a realidade virtual, a imaging science, e os rituais funerários, onde valoriza o uso primevo da máscara, através do qual o defunto prolonga uma presença ‘viva’ no seio da comunidade. A via fotográfica é uma das operações onde melhor ocorre a reencarnação do ausente e se reitera a estranha materialidade do meio, reminiscente do corpo (lugar que, àparte os actuais meios tecnológicos de armazenamento, retém de modo anacrónico a memória das imagens). A sobrevivência das imagens, a transmissão cultural e o processo de transformação de significado próprios da imagem, são tratados com uma visão penetrante (o encontro entre o Ocidente e as culturas nativas das Américas, onde se descreve a experiência de Aby Warburg aquando da sua famosa viagem em território índio. Também fala de Lévi-Strauss (a «máscara» dos Caduvéo), de Macho (os «crânios de Jericó»), de Leroi-Gourhan (relação entre linguagem e imagem), de Augé (os «Não-Lugares»), de Foucault (as «heterotopias»), e ainda de Stiegler, Alliez, Deleuze, McLuhan, e muitos outros igualmente convocados.
Introdução à Iconologia pós-Warburg: o pensamento de Erwin Panofsky e Rudolf Wittkower
15 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
No livro Through the
Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de
Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se
reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente
atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à
imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era
entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do
imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que
Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade...
Através do espelho... Através
da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta
dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais puras raízes, o seu inflamado desejo de
flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o
seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o
tempo’vasariano’ das biografias e o
tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade,
aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial,
sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada
de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras
de arte.
Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da
História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar
sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem
aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de
símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou,
ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X
Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg
(1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo
Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente
descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá
materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a
História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore,
etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a
transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe
grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer e Erwin Panofsky, entre outros...
Erwin Panofsky (Hannover,
1892-Princeton, EUA, 1968) foi discípulo de Warburg. Graduou-se em 1914
na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht
Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com
Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas
grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história
da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do
Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde
havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram
o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde
havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto
para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), mas também
trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968). Para Panofsky a
História da Arte é uma ciência em que se definem três momentos inseparáveis do
ato interpretivo das obras em sua globalidade: a leitura no sentido fenoménico
da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de
seu conteúdo essencial como expressão de valores. A arte medieval e do
Renascimento (que estudou profundamente), estão definidos no livro Renascimentos
e Renascimentos na Arte Ocidental. Foi amigo de Wolfgang Pauli, um dos
criadores da física quântica.
Panofsky fez a distinção entre ICONOGRAFIA
e ICONOLOGIA em Estudos em Iconologia (1939) dando exemplos sobre as
diferenças. Definiu iconografia como
o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele
exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é
um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona
que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo
medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas
intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos
para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, em Estudos em
Iconologia, Panofsky detalha as suas ideias sobre os três níveis da
compreensão da história da arte:
Primário, aparente ou
natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção
da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia.
Se nos ativermos ao 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma
pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o
entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.
Secundário ou
convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e
conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia
que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a Última Ceia.
Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola com um leão poderia
ser interpretado como o retrato de São Jerónimo.
Significado Intrínseco ou conteúdo
(Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural
para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um
produto de um ambiente histórico. Trabalhando com estas camadas, o historiador
de arte coloca-se questões como "por que é que São Jerónimo foi um santo
importante para o patrono desta obra?" Essencialmente, esta última camada
é uma síntese; é o historiador da arte se perguntando: "o que é que isto
significa"?
Para Panofsky, era importante considerar
os três estratos como ele examinou a arte renascentista. Irving Lavin diz que
"era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos
locais onde ninguém suspeitava que havia - que levou Panofsky a entender a
arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um
empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes
liberais".
Quanto a Rudolf Wittkower (n. Berlim, 1901- fal. Nova York, 1971), foi um grande historiador de
arte alemão, profundo conhecedor da arte italiana do Renascimento e do Barroco; orientou os seus estudos
segundo a iconologia de Aby Warburg e de Panofsky e as formas simbólicas de
Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras
de arte. Estudou um ano Arquitectura em
Berlim, para estudar depois História de Arte em Munique com Heinrich Wölfflin e
em Berlim com Adolph Goldschmidt. Perito em arte renascentista italiana,
recebeu a influência da Iconologia e demarcou-se do Formalismo de Wölfflin. No
libro Born Under Saturn. The Character
and Conduct of Artists: a Documented History from Antiquity to the French
Revolution (de
1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a evolução da condição social
do artista, assim como o seu carácter e a sua conducta social. Cumpriu o seu
trabalho no Instituto Warburg de Hamburgo e em Londres. Entre outras
publicações suas, cabe destacar:Principios arquitectónicos na época do
Humanismo(de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de
1958), e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).
Segundo o grande iconólogo
Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed.
Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de
arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas
experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com
quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no
Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração»
permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor
entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes:
1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the
East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial
Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch
Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a
Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations
of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured
by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a
Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14.
Interpretation of Visual Symbols.
Cabe de facto
à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das
perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre
Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das
permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos --
mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no
espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais
explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das
vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo
greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança
contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu
discurso simbólico.
Quando uma obra de arte nos
toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho, a História tendeu a denominá-la muitas vezes
como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos,
em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e
códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um
ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico,
político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal
eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas que assumem
fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se
História de Arte sem recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às
ditas «obras-primas» ? A questão tem a maior pertinência: a História da Arte
tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer
as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso
estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na
realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos
particulares da produção artística se
poderá fazer História de Arte consequente. Mas será mesmo assim ? Lembrando Aby
Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de
l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel
l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica
e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa
entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e
regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e
também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em
qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em
cadeia de que todas e cada uma são a parte activa. A noção de ‘obra-prima’ –
quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito
redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de
classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível,
consciente da necessidade de o preservar.
Na prática, a ICONOLOGIA
dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas:
todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O
modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma,
sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos
iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de
Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melancolia I de Durer), e tem
negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como
sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus
faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores,
tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a
crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que
às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que
alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua
busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes
determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer
prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus
códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia
presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar
expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas
críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte
redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia
suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de
Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside,
segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a
Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas
de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também ter-se em conta a necessária «abertura»
inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.
Segundo o que já dizia Aby
Warburg, o que importava à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias
matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções
como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de
saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades. O caminho escolhido por Erwin Panofsky
busca a compreensão de como sob determinadas condições históricas objetos e
eventos diversos são expressos por formas diversas; temas ou conceitos são
expressos por objetos e eventos vários; tendências essenciais da mente humana
são expressas por temas e conceitos específicos. A História da Arte para
Panofsky é uma ciência que necessita da junção desses três exercícios de
compreensão para se concretizar: a leitura do mundo dos motivos artísticos, do
mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos. Foi sob esta
óptica que ele empreendeu seus estudos sobre a arte renascentista, buscando na
literatura, nas representações artísticas que comumente eram encontradas, nas
leituras alegóricas ou simbólicas que a arte trazia os percursos seguidos pelos
artistas da renascença para executarem suas obras. A leitura do mundo dos
motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores
simbólicos no entanto, prescinde das escolhas que porventura o artista possa
fazer, assim como pode ser feita sem que o ambiente de vida do artista tenha
que ser necessariamente explorado pelo historiador da arte. A busca das
ressonâncias perceptíveis nas obras de arte envolvendo os motivos artísticos
preferencialmente trabalhados, as imagens e alegorias conhecidas e eleitas nas
representações e os valores simbólicos atribuídos às imagens representadas
seriam capazes de permitir a leitura historiográfica da obra de arte. Talvez o
que falte seja o que Aby Warburg considerava a presença divina, o peculiar, o
‘deus’ criador dentro de cada um que se manifesta no detalhe, no singular. A
presença do indivíduo tão apregoada por Jacob Burckhardt em seu ensaio sobre a
cultura do Renascimento na Itália é o elemento fundador daquela civilização que
gerou as obras de arte perseguidas, esquadrinhadas e analisadas minuciosamente
por aqueles estudiosos que, tal como Erwin Panofsky e Rudolf Wittkower,
buscaram entender a arte da Renascença italiana.
OBRAS DE
ERWIN PANOFSKY: Dürers
Kunsttheorie, 1915; Dürers
"Melencholia I", 1923 (com Fritz Saxl); Deutsche Plastik des elften
bis dreizehnten Jahrhunderts, 1924; A Late-Antique Religious Symbol in Works by Holbein and Titian, 1926 (com
F. Saxl, Burlington Magazine); Über die Reihenfolge der vier Meister von Reims, 1927
(Jahrbuch für Kunstwissenschaft, II); Das erste Blatt aus dem 'Libro' Giorgio Vasaris, 1930
(Städel-Jahrbuch, VI);
Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren
Kunst, 1930 (Studien der Bibliotek Warburg, XVIII); Classical Mythology in
Mediaeval Art, 1933 (com F. Saxl, Metropolitan Museum Studies, IV); Codex Huygens and Leonardo da
Vinci's Art Theory, 1940; Albrecht Dürer, 1943 - The
Life and Art of Albrecht Dürer (4th ed. 1955); Abbot Suger on the Abbey
Church of St. Denis and Its Art Treasures, 1946; Postlogium Sugerianum, 1947 (Art Bulletin, XXIX); Style and Medium in the Motion
Pictures, 1947 (Critique, Vol. 1 No 3); Gothic Architecture and Scholasticism, 1951; Early Netherlandish Painting:
Its Origins and Character, 1953; Meaning in the Visual Arts, 1955; The Life and Art of Albrecht Dürer, 1955; Gothic Architecture and
Scholasticism, 1957; Renaissance
and Renascences in Western Art, 1960; The Iconography of Correggio's Camera di San Paolo, 1961; Studies in Iconology, 1962 (2ª ed.); Tomb Sculpture, 1964 (ed.
H.W. Janson); Problems in
Titian, Mostly Iconographic, 1964; Dr. Panofsky and Mr. Tarkington, 1974 (ed. Richard M.
Ludwig); Perspective as Symbolic Form, 1991 (1927); Three Essays on Style, 1995.
OBRAS DE
RUDOLF WITTKOWER:
Architectural
Principles in the Age of Humanism (1949); Bernini:
The Sculptor of the Roman Baroque (1955); The
Arts in Western Europe: Italy in New
Cambridge Modern History, vol. 1 (1957), pp. 127–53; Art and Architecture in Italy,
1600–1750 (1958,
reed.); Born Under Saturn: The
Character and Conduct of Artists (1963, com Margot Wittkower); The Divine Michelangelo (1964, com Margot
Wittkower); Gothic vs. Classic,
Architectural Projects in Seventeenth-Century Italy (1974); Sculpture: Processes and
Principles (1977,
com Margot Wittkower).
Hans Belting e a Iconologia.
10 Fevereiro 2022, 11:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Hans Belting nasceu a 7 de Julho de 1935 (Andernach) e é reconhecido especialista em arte medieval e renascentista, no tempo das Reformas católica e protestante, e sobre Teoria da Imagem e da Arte Contemporânea. Leccionou nas Universidades de Munich, Heidelberg e Hamburgo. É Prof. Jubilado pela Hochschule für Gestaltung de Karlsruhe, onde criou o projecto de investigação interdisciplinar Antropologia da imagem: meio-imagem-corpo. Tendo iniciado os estudos no campo da arte bizantina e medieval, cedo se abriu à arte moderna e contemporânea, das artes não-Ocidentais e das imagens da era digital. É autor de ensaios e livros essenciais, como Das Ende der Kunstgeschichte ? (O Fim da História da Arte ?, 1983-1995), Bild und Kult. Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter der Kunst (Imagem e Culto. História das imagens antes da época da arte, 1990), A Imagem Verdadeira (trad., Dafne, 2011), Florenz und Bagdag (2008) e co-editor de The Global Contemporary, and the rise of new art worlds (2013).
O que é uma verdadeira imagem ? Neste ensaio, em que prossegue as suas pesquisas sobre o sentido das imagens na cultura ocidental, Hans Belting interroga-se (e interroga-nos) sobre a nossa necessidade fundamental de conviver com imagens verdadeiras -- imagens autênticas -- aptas a testemunhar e reproduzir a realidade tal como ela é ou julgamos que possa ser. Belting demonstra, assim, que a nossa percepção das imagens está marcada ainda hoje por uma sobrevivência de noções religiosas derivadas da fé cristã, que teve no Ocidente um papel formador de identidade e de consciência que cimentou uma determinada definição de imagem. Assim, em lugar de seguir uma história linear, opta por meio de sondagens, dando ênfase a dois momentos-chave da cultura europeia: o fim da Antiguidade, em que a questão da imagem se colocou em debates filosóficos em torno da dupla natureza de Cristo; e a época da Reforma, em que a tradução da Bíblia em língua vulgar e a sua difusão pela imprensa conduzem a uma certa desvalorização ontológica da imagem, mais ligada doravante ao mundo da arte e das teorias estéticas. A tradição sacra e espiritual das imagens, destinadas sobretudo à conversão pela fé, é pois muito mais que um prelúdio naif da sua complexidade moderna. Neste ensaio, Belting analisa o arco secular que une a Antiguidade à nossa época, tratando a História, a Religião, as Imagens e as Ideias como um todo.
Hans Belting começou como especialista em pintura medieval e bizantina, e
toda a sua obra trata de questões relacionadas com a imagem. Este enfoque
levou-o a avançar pelo Renascimento e o Barroco, desenvolvendo uma reflexão
própria sobre a teoria da imagem e a teoria da arte,
com os seus prolongamentos na própria arte contemporânea. Estudou
História da Arte, Arqueologia e História nas Universidades de Roma e Mainz,
onde se doutorou em 1959. É hoje Professor jubilado de História da Arte e
Teoria dos Media, Hochschule für Gestaltung, Karlsruhe, que ele próprio
fundou. Escreveu mais de 30
livros.