Sumários

Teste 1

26 Novembro 2020, 09:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

I

 

Leia atentamente as seguintes questões e responda em moldes suficientes, claros e bem estruturados, recorrendo a exemplos se e quando necessário, a apenas DUAS delas:

 

1. Em que medida os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves (cª 1470), se podem considerar uma obra não só marcante no contexto da pintura europeia no dealbar da Idade Moderna mas, também, já integrada num contexto proto-renascentista ?

2. O testemunho do poeta Garcia de Resende, na sua famosa Miscellanea, de que «Pintores, luminadores, agora no cume estam», mostra que no tempo de D. João III era uma realidade o ascenso social dos artistas e o estatuto de privilégio que muitos auferiam (Gregório Lopes, Vasco Fernandes, Nicolau Chanterene, João de Ruão, António de Holanda, etc), fruto de uma consciencialização que paulatinamente se impusera. Comente.

3. Em que medida a viagem a Roma empreendida por vários artistas portugueses no reinado de D. João III abriu a nossa arte à influência da Bella Maniera italiana e abriu as consciências de artistas e mecenas no sentido de uma maior liberdade artística ?

4. Entre os novos ‘géneros literários’ que nascem com o Renascimento no panorama das artes, que se deve entender por Parangona e qual a razão do seu sucesso ? Dê um exemplo de Diálogo parangonal.

5. Em que consistem as teses de bondade inata das artes defendidas pelo humanista Benito Arias Montano (poesia A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, com gravura de Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccaro, editado em Roma, 1578) e qual a influência dessas ideias em Portugal ?

6. O conceito de Micro-História da Arte aplica-se bem a uma situação artística como a arte portuguesa do «largo tempo do Renascimento», justamente por nela coabitarem, em registos distintos, peças de vanguarda all’antico e outras de resistência, perduração ou mesmo de epigonismo. Qual a importância deste ‘olhar’ crítico-comparativo aplicado à arte portuguesa do século XVI ?

 

 

II

 

Desenvolva e comente, com a maior clareza e objectividade, num discurso estruturado e fluente, e recorrendo a factos e exemplos adequados sempre que necessário, UM dos três seguintes temas:

 

1. Comente, à luz dos seus conhecimentos sobre a arte do Grotesco romano (de origem clássica e «arqueológica») e sobre a arte do Brutesco (decoração com sentido mais «decoroso») as duas imagens de arte portuguesa que se seguem.

 

Fresco da igreja de Santa Leocádia (Chaves), c. 1509-1511, e tecto de caixotões da igreja da Misericórdia de Torres Novas, 1678.

 

2. A defesa da LIBERALIDADE e a reivindicação de um novo estatuto social moveram os artistas do século XVI no sentido de uma nova consciência social e laboral: a consciência artística. Essa consciência decorre da grande inovação trazida para a Teoria das Artes por Francisco de Holanda (1518-1584), a nível internacional, ao defender o primado da ideia criadora (fruto da scintilla divina, como afirmara Léon Battista Alberti, mas agora com uma raíz neoplatónica) como essência da obra artística, e ao definir «o disegno ou debuxo, raiz de todas as sciencias». Comente, nesse sentido, o seguinte texto do tratado Da Pintura Antigua (1548), quando põe na boca de Miguel Ângelo as seguintes palavras:

«Eu estou seguro, que se no vosso Portugal, Messer Francisco, vissem a fremosura da pintura que está por algumas casas desta Itália, que não poderiam ser tão desmúsicos (incultos, ignorantes) lá, que a não estimassem em muito e a desejassem de alcançar; mas não é muito não conhecerem nem prezarem o que nunca viram, e o que não têm» (Diálogos de Roma). 

 

 


Teste 2

26 Novembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

TESTE DE ARTE DO RENASCIMENTO E DO MANEIRISMO EM PORTUGAL / ARTE MODERNA EM PORTUGAL

Licenciatura de História da Arte – 26 de Novembro de 2020, 9h30/11h -- Prof. Vitor Serrão

 

I

Leia atentamente as seguintes questões e responda em moldes suficientes, claros e bem estruturados, recorrendo a exemplos se e quando necessário, a apenas DUAS delas:

 

1. Em que medida a chegada a Portugal dos franceses Nicolau Chanterene e João de Ruão influiu na viragem estética da Escultura (sacra e profana), à luz do generalizado debate entre antigo e moderno ?

2. O testemunho do poeta Garcia de Resende, na famosa Miscellanea, de que «Pintores, luminadores, agora no cume estam», mostra que no tempo de D. João III era uma realidade o ascenso social dos artistas e o estatuto de privilégio que auferiam Gregório Lopes, Vasco Fernandes, Nicolau Chanterene, António de Holanda, etc, fruto de uma consciencialização que paulatinamente se impusera. Comente.

3. O moderno estatuto de artista nasceu nas especiais circunstâncias especiais – do século XV, com o Renascimento e o Humanismo. Comente a carta que Diogo Teixeira envia a D. Sebastião em 1577 e o modo como defende a liberalidade criadora: «Diz dioguo Teixeira, caualeiro da casa do Sor D. Antonio, que elRei vosso avô, não sendo a arte da Pintura então da calidade em que ora está (…) anexou individamente os pintores à Bamdeyra de Sam Jorge (…) como se fossem mecaniquos, quando he uma arte iminente asi dos antíguos, e com numeada antre as liberais em todos os tempos, e celebrada por reis (…), e assim, havendo respeito ao sobredito, e por ser hum dos milhores oficiais de imaginarya de olio que há nestes Reynos, pede a S. M. o isente dos serviços a prestar à dita Bamdeira (…)».

4. Como se explicam as lendas e mitos – como o mito Grão Vasco e o mito do Manuelino – na historiografia da arte portuguesa anterior aso século XX ?

5. Que inovação Francisco de Holanda (1518-1584), a nível internacional, ao defender o primado da ideia criadora (fruto da scintilla divina, como afirmara Alberti, mas agora com uma raíz neoplatónica) como a essência da obra artística, e ao definir «o disegno ou debuxo, raiz de todas as sciencias» ?

6. Em que consistiram as teses de bondade inata das artes defendidas pelo humanista Benito Arias Montano (poesia A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, com gravura de Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccaro, editado em Roma, 1578) e qual a influência dessas ideias em Portugal ?

II

Desenvolva e comente, com a maior clareza e objectividade, num discurso estruturado e fluente, e recorrendo a factos e exemplos adequados sempre que necessário, UM dos dois seguintes temas:

 

1. Como situa o papel de JOÃO DE CASTILHO (c. 1470-1552) na evolução da arquitectura portuguesa entre o chamado estilo moderno («gótico-manuelino») e as experiências antigas de inspiração italiana, à luz da utopia edificatória ? Como avalia o seu percurso, longo e aparentemente contraditório, entre a magna obra do Mosteiro dos Jerónimos e as últimas campanhas no Convento de Cristo de Tomar ?  Caracterize, com exemplos adequados, esse seu singular percurso.

Igreja de Santa Maria de Belém, por João de Castilho, 15127-1521, e igreja da Conceição de Tomar (panteão de D. João III), por João de Castilho (?) ou Miguel de Arruda (?), 1547-1551.

 

2. Em que moldes a viagem a Roma de artistas portugueses foi relevante para implantação da Bella Maniera ? Face ao desenho de Daniele de Volterra (1509-1566), discípulo de Michelangelo, analise a pintura de Campelo (cª 1567) na capela do seu protector Cardeal Giovanni Ricci de Montepulciano (igreja de San Pietro in Montorio, em Roma), de c. 1550-1560.


A situação do Maneirismo.

24 Novembro 2020, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Os anos 1540-1570. A pintura maneirista em Portugal e os novos paradigmas do ‘ despejo’. A primeira geração pictórica: Diogo de Contreiras e os «seguidores de Gregório Lopes». O Maneirismo como novidade absoluta nos mercados nacionais e ultramarinos. Os «romanizados» e a influência italiana: Campelo, João Baptista, António Leitão, Gaspar Dias.  A escultura e talha maneiristas: Diogo de Çarça e Felipe de Bries. Novas tipologias de retábulos e de cadeirais. O arquitecto Jerónimo de Ruão e o ‘ flamenguismo’: sondagem de novas cenografias do espaço (a igreja da Luz de Carnide e a capela-mor dos Jerónimos). A reivindicação de um estatuto social de  liberalidade: da corporação gremial à  inventio. A carta de Diogo Teixeira a D. Sebastião em 1577. Movimentos de emancipação anti-corporativa. A literatura artística ao serviço da liberdade dos artistas. Repercussão dos tratados de arte em Portugal: dos cânones do Proto-Renascimento aos valores anti-clássicos. A arquitectura de Nicolau de Frias e o Palácio Ducal de Vila Viçosa.


Sobre tratadimo de arte em Portugal entre o Renascimento e o Maneirismo.

19 Novembro 2020, 09:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 Defesa da liberalidade e assunção da ideia como verdadeira inteligência. 

     Dir-se-á que o debate em torno da dignitas, da liberatità, da virtù artística, que sabemos ter sido intenso e vivido de modo empolgado pelos protagonistas desse tempo, com olhos postos nos exemplos da Itália do Renascimento, se restringiu aos argumentos em defesa de um novo estatuto artístico, que ocupou os interesses maiores de pintores e dos seus mecenas durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século seguinte.

     O reconhecimento da liberalità, reivindicado com sucesso na célebre carta que em 1577 foi dirigida a D. Sebastião pelo pintor Diogo Teixeira, a que se seguiram outras petições mais ou menos moldadas nos argumentos daquela e igualmente vitoriosas, constituiu a essência dessa espécie de ‘literatura de protesto’, digamos assim, em que os artistas de maior consideração buscaram no tratadismo italiano e castelhano bons argumentos para sedimentar a sua luta junto das autoridades [1]… A busca de um estatuto de dignificação laboral consumiu os interesses da nova geração de artistas portugueses da segunda metade do século XVI, fascinados pelo exemplo romano, e abundam, por isso, os argumentos em prol da liberalidade em cartas, petições, contratos de trabalho e intervenções académicas, onde se destaca a antichità da Pintura, a sua origem divina, a sua utilização por príncipes e reis da Antiguidade (seguindo o anedotário de Plínio o Velho), e a sua qualidade de mimésis (ut pictura poesis) como imitação da natureza (seguindo, embora com conhecimento menos profundo, a doutrina dos tratados de Giorgio Vasari, as célebres Vite de 1550, reeditadas em 1568, de Federico Zuccaro, L'idea de' Pittori, Scultori, ed Architetti, de 1607, e de Giovan Paolo Lomazzo, Idea del tempio della pittura de 1590, por exemplo) [2].

     Rareiam entre nós, entretanto, reflexões mais profundas sobre a essência da criação artística (salvo na produção de filósofos como Frei Heitor Pinto no famoso livro Imagem da Vida Cristã, seguindo bases aristotélicas), que em palcos coetâneos como Itália e Castela conduzia, nos mesmos anos, à elaboração de teorias globalizantes sobre a ideia motriz das artes e sobre uma ordem estética e ordenadora do mundo [3]. Como sintetizava em 1577 o grande humanista Benito Arias Montano (1527-1598) num poema em louvor da Pintura que compôs em Roma (onde preparava a edição da Bíblia Poliglota buscando autorizações junto do Papado) para acompanhar um desenho de Federico Zuccaro passado à estampa por Cornelis Cort, a arte deveria ser avalizada como o «verdadeiro remédio para os males da humanidade» [4].  Nesse contributo de ideias e escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte (onde não é nunca de negligenciar a influência de Frei Luís de Léon), é a defesa da harmonia, do rigor doutrinário e, também, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica da criação, que se impõem como valência estética. Quando se admira essa estampa A verdadeira Inteligência inspira o Pintor (Staatlische Museum, Berlim), gravada por Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccarro, e o poema latino de Arias Montano que a acompanha, vemos um discurso sobre o papel da pedagogia, da emoção e da beleza ideal aliada à alegoria clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia motriz das Artes, a Fraga de Vulcano no ‘quadro dentro do quadro’, as Fúrias, a Inveja, e o Concílio dos Deuses num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. É toda uma síntese da estética do Humanismo cristão aplicada ao sentido profundo das artes.

     É de supor que Francisco de Holanda, no perdido poema Louvores eternos, de 1569, fizesse, também ele, o elogio das artes a partir de uma espécie de Anjo da Inspiração Divina, que alimenta o talento inato dos artistas numa dimensão de cosa mentale onde ele se mostra, aliás, precursor das posições teóricas de Arias Montano e do próprio Federico Zuccaro (que no mosteiro do Escurial pintaria, um pouco mais tarde, o quadro São Jerónimo no seu gabinete de trabalho, onde o santo é inspirado por um anjo da guarda etéreo e quase incorpóreo, em cuja representação sequencia a leitura dos conceito holandiano de ideia, defendido no tratado Da Pintura Antigua) [5]. Todavia, faltam-nos o conhecimento directo desse e de outros textos de Holanda (por alguma razão não publicados à época, fosse desinteresse de editor, falta de mecenas ou desinvestimento dos poderes), como é o caso do tratado Do Tirar Polo Natural, dedicado à arte do Retrato [6], e o mesmo sucede com o manuscrito de Francisco de Sólis com as biografias de vários artistas portugueses, bem como outros de que existe fugaz menção mas se encontram perdidos (ou inlocalizados em fundos de arquivo), facto que depaupera em extremo um trabalho de reconstituição da tratadística das artes em Portugal durante a Idade Moderna.

     Sob esse ponto de vista, a influência, quer do tratado de Francisco de Holanda nos círculos cortesãos de meados do século XVI, quer do de Félix da Costa Meesen ao empreender em tempo de D. Pedro II o sonho de criar em Lisboa uma Academia artística segundo o modelo da de Charles Le Brun em Paris, foi muito restrita. As iniciativas culturais destes dois artistas-escritores foram votadas ao fracasso, o que tem, aliás, expressão na nostalgia das suas próprias palavras: o primeiro, ao dizer ao dizer que teve a primazia no louvor da Antiguidade («fui… o primeiro que n’este Reyno louvei e apregoei ser prefeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar d’isso», mas ao regressar de Itália «não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dixesse que o antigo (a que eles chamão modo de Itália) que esse levava a tudo; e achei-os todos tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mi»), o segundo, espécie de Van Mander português e «estrangeirado» roído pela amargura por viver numa Lisboa em «tempo de mingoante da Pintura» e pelo desinteresse da corte em aceitar as suas ideias temperadas pelo conhecimento directo que trazia de Londres, Paris, Madrid e Roma. A Antiguidade da Arte da Pintura (manuscrito de 1696, na Universidade de Yale) não esconde a influência directa dos escritos de Vicente Carducho e de Gaspar Gutiérrez de los Ríos [7], senão também a de Giovanpietro Bellori, o tratadista do bel composto, mas regista menos um alinhamento com a cultura do Barroco internacional e mais uma admiração sincera pelos pintores do Maneirismo, de que destaca os portugueses Campelo, Gaspar Dias, Francisco Venegas e Diogo Teixeira. Escrito de seguida à longa crise em que as guerras da Restauração portuguesa contra Castela tinham mergulhado o país, o tratado de Meesen mostra uma admiração pela Bella Maniera oposta ao desprezo que nutria pelos pintores do seu tempo, o que certamente seria matéria polémica e de acesas inimizades nos círculos em que se movia…

     De facto, nem os dois referidos tratados tiveram recepção suficientemente calorosa por parte dos públicos nacionais para serem lidos fora de uma restritíssima teia de pessoas, nem merecerem ser publicados no seu tempo – e o facto é que o não foram, pese a tentativa, igualmente votada ao malogro, em que se envolveu Manuel Denis, pintor português ao serviço da Princesa D. Juana, mãe de D. Sebastião, ao traduzir para castelhano, em 1563, o manuscrito da obra Da Pintura Antigua, nele incluindo desenhos como o elogio da Prisca Pictura (Domus Picturae), num esforço vão para o lançar à estampa no mercado espanhol [8].

     O panorama da tratadística portuguesa dos séculos XVI e XVII sobre a Pintura e outros ramos artísticos foi, assim, muito minguado: salvo os casos excepcionais de Holanda e de Meesen, constata-se a falta de «uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária» [9].


    Pistas de trabalho e referenciais de investigação.

     … Mas sabemos algumas coisas mais sobre a produção literária portuguesa no campo da estética e da teoria das artes no pós-Renascimento. Trata-se de um campo de estudos que impõe uma atenção maior face ao aparente deserto de referências subsistentes. Por um lado, dispomos de textos como os do filósofo Léon Hebreu sobre a metafísica do amor inserida numa cosmologia neoplatónica  [10] e os do ieronimita Frei Heitor Pinto [11], já referidos, e de poetas como Jerónimo Corte-Real e Luís de Camões [12], em cujas obras os referenciais pictóricos abundam, com alusões plásticas subtis [13]; por outro, é certo que dos livros produzidos com um declarado empenho nos receituários perpassa também um esforço de conceptualização das artes.

     Uma obra como o tratado Arte Poética & da Pintura de Filipe Nunes (um pintor de Vila Real que integrou depois a ordem dominicana com o nome de Frei Filipe das Chagas), dada à estampa em 1615 e que recebeu algum sucesso de mercado [14], ou o quase coevo Breve Tractado de Iluminaçam, manuscrito de um anónimo frade da Ordem de Cristo, cerca de 1635, devem ser considerados mais como receituários, ou manuais práticos do exercício das várias modalidades da pintura, do que propriamente tratados de arte no seu sentido mais lato.

     Entretanto, importa atentar em escritos de outros autores dos séculos XVI e XVII, como o cronista e gramático João de Barros [15], o humanista Francisco de Monzón [16], o mal conhecido Giraldo Fernandes de Prado, pintor-fidalgo da Casa de Bragança [17], a figura obscura do escritor  Francisco de Sólis, autor no princípio do século XVII de uma Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos [18], ou a obra do arquitecto e iluminador Luís Nunes Tinoco Elogio da Arte da Pintura [19], para se concluir que afinal existiu mesmo interesse, em círculos intelectuais não forçosamente restritos, pela literatura sobre as artes em que em todos eles se moveram, e que se produziam opiniões sobre o papel que lhes cabia e sobre o estatuto social a tributar aos seus melhores praticantes.

     Em 1550, a realidade artística nacional alterara-se em substância e é nesse contexto que o debate sobre o sentido das artes inevitavelmente se centrava [20]. Nesse ano morreu Gregório Lopes, o célebre pintor régio de D. João III e cavaleiro da Ordem de Santiago, cuja influência na geração maneirista experimental foi duradoira, inspirando a arte de Diogo de Contreiras e de outros artistas. Com o fecho da feitoria de Antuérpia em 1548, o olhar dos nossos clientes mais cultos deixava de privilegiar as obras e modelos oriundos da Flandres e passava a sentir o frémito das novidades italianas pós-renascentistas. O conceito de «despejo», alvo das reflexões de Francisco de Holanda a partir dos seus intensíssimos diálogos em Roma com o grande Miguel Ângelo Buonarroti, que lhe recomendava o uso dos «spaços vazios e dilatados para darem despejo e clareza a sua obra, e para terem os olhos dos que a veem caminho e campos por onde caminharem» [21], é já um testemunho directo dessa nova realidade: «aprenda a fazer muito pouco e muito bem, e quando comprir fazer muito e muito compartimentadamente, o fogir do feo e sem graça, o buscar nos mores descuidos por que os outros passam levemente, escolhendo sempre o mais pouco, e melhor, entre o melhor, e o despejado e os espaços, fora dos entricamentos da confusão e do máo eleger». Os desenhos e pinturas maneiristas portuguesas, de Campelo a Salzedo e Venegas, seguiram esse procedimento miguelangesco, generalizado pela tratadística e pela prática da Bella Maniera italiana, sendo de crer que também os «debuxos» feitos pelo Holanda para as câmaras afrescadas no Paço Real de Xabregas (pintadas por Gaspar Dias) [22] seguissem esse ostensivo gosto maneirista, com figuras ciclópicas e escalas «despejadas».

     De facto, é importante não se perder esse ponto de vista, nesses anos fervilhantes de viragem chegavam obras, ideias, tratados, gravuras e, sobretudo, testemunhos directos de experiências, acentuadas pela passagem por Roma de artistas portugueses que lá iam aprender o disegno; mesmo os flamengos que vinham a Portugal, como o retratista Anthonis Moro em 1552, Joozis van der Streten e Simón Pereyns em 1556, e Francisco de Campos, se mostram senhores de uma cultura artística crescentemente romanizada. Antes mesmo do casamento de D. Maria de Portugal, filha do Infante D. Duarte, com o célebre Alessandro Farnèse, já as relações culturais entre Lisboa e a corte de Parma eram uma realidade (mal pressentida embora pelos estudiosos), em contactos que não deixaram de se acentuar após 1567 e até à morte da Infanta em 1577, o que explicará o peso dos modelos de, por exemplo, um Parmigianino na obra de Gaspar Dias... e não só modelos, mas também as estampas, e o conhecimento dos tratados, se impunham neste percurso de conhecimentos. Por Florença e Roma passa Lourenço de Salzedo, que se inspira em Girolamo Siciolante da Sermoneta [23], pela Cidade Papal estadeiam também Campelo, que colhe lição nos círculos de Daniele da Volterra, Francisco Venegas, cuja derivação de modelos de Perino del Vaga e também de Vasari é notória, e ainda João Baptista, António Leitão, e Simão Rodrigues, este último educado nas «receitas» do tempo de Sisto V, e até o secundário pintor de Penacova Álvaro Nogueira e, enfim, o lisboeta Amaro do Vale e o eborense Pedro Nunes, estes já no início do século XVII.

     Sabemos, assim, que a pintura portuguesa do tempo de Camões, ao longo da segunda metade do século XVI (antes e mesmo depois da instauração da Monarquia Dual), acompanhou de modo sui generis, com consciência das novidades e naturalmente também das ideias teorizadas prevalecentes, o Maneirismo dimanado dos centros italianos. O que antes era visto como deformação mal assimilada passou justamente a ser entendido, fruto do conhecimento de princípios que a tratadística difundia, como sinal de uma actualização artística raras vezes verificada na história da arte nacional com o mesmo sentido de mudança e consciência da novidade…


[1] Vitor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

[2] Cf. sobre estas fontes básicas da teoria da arte do Maneirismo o clássico ensaio de Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1940 (2ª ed., 1956).

[3] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[4] Cf. Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999; Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995; Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998, e Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

[5] Sylvie DESWARTE-ROSA, «Aprender a desenhar em Roma no século XVI», cat. da exp. Facciate Dipinte. Desenhos do Palácio Milesi, M.N.A.A., 2011, pp. 26- 47.

[6] Cf. sobre esse perdido tratado de Francisco de Holanda o livro de Pedro FLOR, Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, pp. 313 e segs., com referência ao elogio de «uma proporção e igualdade que muito satisfaz e contenta» (…) pois que «o tratar da Pintura é a cousa mais digníssima deste mundo, e o tirar ao natural aquilo que só Deus fez por tão investigabil sabedoria como Ele sabe»...

[7] Julián GÁLLEGO, El pintor de artesano a artista, Univ. Granada, 1976. 

[8] Sobre Manuel Denis, cf. Maria José REDONDO CANTERA e Vitor SERRÃO, «El pintor portugués Manuel Dionis o Dinis», Actas das XII Jornadas do CSIC El Arte Foráneo en España. Presencia y influencia, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, 2005, pp. 61-78. Do artista, existe um desenho assinado M.D. com grotescos maneiristas: A. AYRES DE CARVALHO, Catálogo da Colecção de Desenhos da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1977, nº 5, p. 206.

[9] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português, cit., p. 340.

[10] Léon HEBREU, Diálogos do Amor, ed. anotada de Giacinto MANUPELLA, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.

[11] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, op. cit., pp. 344-355.

[12] Cf., sobre o tempo cultural de Camões, Dagoberto L. MARKL, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, 1972; Jorge Borges de MACEDO, Os Lusíadas e a História, Verbo, Lisboa, 1979; Sylvie DESWARTE, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Imp.Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1987; e Vasco Graça MOURA e Vitor SERRÃO, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, IN/CM, Lisboa, 1989.

[13] Cf. Vasco GRAÇA MOURA, Luís de Camões: Alguns Desafios, Quetzal, Lisboa, 1980, e id., Camões e a Divina Proporção, Lisboa, 1985. Temos exemplos picturais em Os Lusíadas, com afinidades pressentidas entre o episódio do globo transparente no canto X (estâncias 77 e 79) e a Alegoria do Marquês de Avalos, de Ticiano, como Vasco Graça Moura observou. Na épica camoneana, aliás, multiplicam-se referências pictóricas e alusões à ‘ideia’ neoplatónica da criação artística, como a descrição de um painel do Pentecostes (canto II, estância 11), de outro com Tritão pintado aos modos de Arcimboldo (canto VI, ests. 17-18), a descrição da entrada de Paulo da Gama no Catual, ou dos heróis pintados nas bandeiras de navio (canto VII, est. 74-78, e canto VIII).

[14] Cf. Leontina VENTURA (intr. e notas), Arte Poetica, e da Pintvra, e Symetria, com Principios da PerfpectiuaComposta por Philippe Nunes natural de Villa Real (1ª ed., of. Pedro Craesbeeck, Lisboa,1615), ed. Paisagem, Porto, 1982. Este tratado que é simultaneamente receituário teve uma 2ª edição em 1767 (Lisboa, Of. João Baptista Álvares). Conhece-se uma trad. de Zahira VELIZ  (ed.), Artists' Techniques in Golden Age Spain. Six treatises in translation, Cambridge, Cambridge University Press, 1986. Cf., ainda, António João CRUZ, “Pigmentos e corantes das obras de arte em Portugal, no início do século XVII, segundo o tratado de pintura de Filipe Nunes”, Conservar Património, nº 6, 2007, pp. 39-51.

[15] Cf. Joaquim Oliveira CAETANO, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996.

[16] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[17] Vitor SERRÃO, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008, cap. .

[18] O desaparecido manuscrito do tratado Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos de Francisco de Sólis é vagamente referenciado na Collecção de Memorias de Cyrillo Volkmar Machado, de 1823,

[19] Cf. Luís de Moura SOBRAL, Elogio da Pintura de Luís Nunes Tinoco, I.P.P.C., Lisboa, 1991; e Poesia e Pintura na Época Barroca, Lisboa, Ed. Estampa, 1994.

[20] Cf. José Sebastião da SILVA DIAS, A política cultural da época de D. João III, tomo II, Coimbra, 1969, pp. 701-715.

[21] Da Pintura Antigua, ed. de Ángel González GARCÍA, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1984, refª Livro I, p. 26.

[22] Cf. textos do catálogo da exposição Casa Excelentíssima -- 500 Anos do Mosteiro da Madre de Deus, coord. de Alexandra CURVELO e Alexandre PAIS, Lisboa, Instituto dos Museus e Conservação, 2009, pp. 107-123.

[23] Cf. Vítor SERRÃO, «Lourenço de Salzedo en Roma. Influencias del Manierismo romano en la obra de la Reina Catarina de Portugal», Archivo Español de Arte, LXXVI, nº 303, 2003, pp. 249-265.


Sobre tratadismo de arte em Portugal entre o Renascimento e o Maneirismo.

19 Novembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 Defesa da liberalidade e assunção da ideia como verdadeira inteligência. 

     Dir-se-á que o debate em torno da dignitas, da liberatità, da virtù artística, que sabemos ter sido intenso e vivido de modo empolgado pelos protagonistas desse tempo, com olhos postos nos exemplos da Itália do Renascimento, se restringiu aos argumentos em defesa de um novo estatuto artístico, que ocupou os interesses maiores de pintores e dos seus mecenas durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século seguinte.

     O reconhecimento da liberalità, reivindicado com sucesso na célebre carta que em 1577 foi dirigida a D. Sebastião pelo pintor Diogo Teixeira, a que se seguiram outras petições mais ou menos moldadas nos argumentos daquela e igualmente vitoriosas, constituiu a essência dessa espécie de ‘literatura de protesto’, digamos assim, em que os artistas de maior consideração buscaram no tratadismo italiano e castelhano bons argumentos para sedimentar a sua luta junto das autoridades [1]… A busca de um estatuto de dignificação laboral consumiu os interesses da nova geração de artistas portugueses da segunda metade do século XVI, fascinados pelo exemplo romano, e abundam, por isso, os argumentos em prol da liberalidade em cartas, petições, contratos de trabalho e intervenções académicas, onde se destaca a antichità da Pintura, a sua origem divina, a sua utilização por príncipes e reis da Antiguidade (seguindo o anedotário de Plínio o Velho), e a sua qualidade de mimésis (ut pictura poesis) como imitação da natureza (seguindo, embora com conhecimento menos profundo, a doutrina dos tratados de Giorgio Vasari, as célebres Vite de 1550, reeditadas em 1568, de Federico Zuccaro, L'idea de' Pittori, Scultori, ed Architetti, de 1607, e de Giovan Paolo Lomazzo, Idea del tempio della pittura de 1590, por exemplo) [2].

     Rareiam entre nós, entretanto, reflexões mais profundas sobre a essência da criação artística (salvo na produção de filósofos como Frei Heitor Pinto no famoso livro Imagem da Vida Cristã, seguindo bases aristotélicas), que em palcos coetâneos como Itália e Castela conduzia, nos mesmos anos, à elaboração de teorias globalizantes sobre a ideia motriz das artes e sobre uma ordem estética e ordenadora do mundo [3]. Como sintetizava em 1577 o grande humanista Benito Arias Montano (1527-1598) num poema em louvor da Pintura que compôs em Roma (onde preparava a edição da Bíblia Poliglota buscando autorizações junto do Papado) para acompanhar um desenho de Federico Zuccaro passado à estampa por Cornelis Cort, a arte deveria ser avalizada como o «verdadeiro remédio para os males da humanidade» [4].  Nesse contributo de ideias e escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte (onde não é nunca de negligenciar a influência de Frei Luís de Léon), é a defesa da harmonia, do rigor doutrinário e, também, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica da criação, que se impõem como valência estética. Quando se admira essa estampa A verdadeira Inteligência inspira o Pintor (Staatlische Museum, Berlim), gravada por Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccarro, e o poema latino de Arias Montano que a acompanha, vemos um discurso sobre o papel da pedagogia, da emoção e da beleza ideal aliada à alegoria clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia motriz das Artes, a Fraga de Vulcano no ‘quadro dentro do quadro’, as Fúrias, a Inveja, e o Concílio dos Deuses num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. É toda uma síntese da estética do Humanismo cristão aplicada ao sentido profundo das artes.

     É de supor que Francisco de Holanda, no perdido poema Louvores eternos, de 1569, fizesse, também ele, o elogio das artes a partir de uma espécie de Anjo da Inspiração Divina, que alimenta o talento inato dos artistas numa dimensão de cosa mentale onde ele se mostra, aliás, precursor das posições teóricas de Arias Montano e do próprio Federico Zuccaro (que no mosteiro do Escurial pintaria, um pouco mais tarde, o quadro São Jerónimo no seu gabinete de trabalho, onde o santo é inspirado por um anjo da guarda etéreo e quase incorpóreo, em cuja representação sequencia a leitura dos conceito holandiano de ideia, defendido no tratado Da Pintura Antigua) [5]. Todavia, faltam-nos o conhecimento directo desse e de outros textos de Holanda (por alguma razão não publicados à época, fosse desinteresse de editor, falta de mecenas ou desinvestimento dos poderes), como é o caso do tratado Do Tirar Polo Natural, dedicado à arte do Retrato [6], e o mesmo sucede com o manuscrito de Francisco de Sólis com as biografias de vários artistas portugueses, bem como outros de que existe fugaz menção mas se encontram perdidos (ou inlocalizados em fundos de arquivo), facto que depaupera em extremo um trabalho de reconstituição da tratadística das artes em Portugal durante a Idade Moderna.

     Sob esse ponto de vista, a influência, quer do tratado de Francisco de Holanda nos círculos cortesãos de meados do século XVI, quer do de Félix da Costa Meesen ao empreender em tempo de D. Pedro II o sonho de criar em Lisboa uma Academia artística segundo o modelo da de Charles Le Brun em Paris, foi muito restrita. As iniciativas culturais destes dois artistas-escritores foram votadas ao fracasso, o que tem, aliás, expressão na nostalgia das suas próprias palavras: o primeiro, ao dizer ao dizer que teve a primazia no louvor da Antiguidade («fui… o primeiro que n’este Reyno louvei e apregoei ser prefeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar d’isso», mas ao regressar de Itália «não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dixesse que o antigo (a que eles chamão modo de Itália) que esse levava a tudo; e achei-os todos tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mi»), o segundo, espécie de Van Mander português e «estrangeirado» roído pela amargura por viver numa Lisboa em «tempo de mingoante da Pintura» e pelo desinteresse da corte em aceitar as suas ideias temperadas pelo conhecimento directo que trazia de Londres, Paris, Madrid e Roma. A Antiguidade da Arte da Pintura (manuscrito de 1696, na Universidade de Yale) não esconde a influência directa dos escritos de Vicente Carducho e de Gaspar Gutiérrez de los Ríos [7], senão também a de Giovanpietro Bellori, o tratadista do bel composto, mas regista menos um alinhamento com a cultura do Barroco internacional e mais uma admiração sincera pelos pintores do Maneirismo, de que destaca os portugueses Campelo, Gaspar Dias, Francisco Venegas e Diogo Teixeira. Escrito de seguida à longa crise em que as guerras da Restauração portuguesa contra Castela tinham mergulhado o país, o tratado de Meesen mostra uma admiração pela Bella Maniera oposta ao desprezo que nutria pelos pintores do seu tempo, o que certamente seria matéria polémica e de acesas inimizades nos círculos em que se movia…

     De facto, nem os dois referidos tratados tiveram recepção suficientemente calorosa por parte dos públicos nacionais para serem lidos fora de uma restritíssima teia de pessoas, nem merecerem ser publicados no seu tempo – e o facto é que o não foram, pese a tentativa, igualmente votada ao malogro, em que se envolveu Manuel Denis, pintor português ao serviço da Princesa D. Juana, mãe de D. Sebastião, ao traduzir para castelhano, em 1563, o manuscrito da obra Da Pintura Antigua, nele incluindo desenhos como o elogio da Prisca Pictura (Domus Picturae), num esforço vão para o lançar à estampa no mercado espanhol [8].

     O panorama da tratadística portuguesa dos séculos XVI e XVII sobre a Pintura e outros ramos artísticos foi, assim, muito minguado: salvo os casos excepcionais de Holanda e de Meesen, constata-se a falta de «uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária» [9].


    Pistas de trabalho e referenciais de investigação.

     … Mas sabemos algumas coisas mais sobre a produção literária portuguesa no campo da estética e da teoria das artes no pós-Renascimento. Trata-se de um campo de estudos que impõe uma atenção maior face ao aparente deserto de referências subsistentes. Por um lado, dispomos de textos como os do filósofo Léon Hebreu sobre a metafísica do amor inserida numa cosmologia neoplatónica  [10] e os do ieronimita Frei Heitor Pinto [11], já referidos, e de poetas como Jerónimo Corte-Real e Luís de Camões [12], em cujas obras os referenciais pictóricos abundam, com alusões plásticas subtis [13]; por outro, é certo que dos livros produzidos com um declarado empenho nos receituários perpassa também um esforço de conceptualização das artes.

     Uma obra como o tratado Arte Poética & da Pintura de Filipe Nunes (um pintor de Vila Real que integrou depois a ordem dominicana com o nome de Frei Filipe das Chagas), dada à estampa em 1615 e que recebeu algum sucesso de mercado [14], ou o quase coevo Breve Tractado de Iluminaçam, manuscrito de um anónimo frade da Ordem de Cristo, cerca de 1635, devem ser considerados mais como receituários, ou manuais práticos do exercício das várias modalidades da pintura, do que propriamente tratados de arte no seu sentido mais lato.

     Entretanto, importa atentar em escritos de outros autores dos séculos XVI e XVII, como o cronista e gramático João de Barros [15], o humanista Francisco de Monzón [16], o mal conhecido Giraldo Fernandes de Prado, pintor-fidalgo da Casa de Bragança [17], a figura obscura do escritor  Francisco de Sólis, autor no princípio do século XVII de uma Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos [18], ou a obra do arquitecto e iluminador Luís Nunes Tinoco Elogio da Arte da Pintura [19], para se concluir que afinal existiu mesmo interesse, em círculos intelectuais não forçosamente restritos, pela literatura sobre as artes em que em todos eles se moveram, e que se produziam opiniões sobre o papel que lhes cabia e sobre o estatuto social a tributar aos seus melhores praticantes.

     Em 1550, a realidade artística nacional alterara-se em substância e é nesse contexto que o debate sobre o sentido das artes inevitavelmente se centrava [20]. Nesse ano morreu Gregório Lopes, o célebre pintor régio de D. João III e cavaleiro da Ordem de Santiago, cuja influência na geração maneirista experimental foi duradoira, inspirando a arte de Diogo de Contreiras e de outros artistas. Com o fecho da feitoria de Antuérpia em 1548, o olhar dos nossos clientes mais cultos deixava de privilegiar as obras e modelos oriundos da Flandres e passava a sentir o frémito das novidades italianas pós-renascentistas. O conceito de «despejo», alvo das reflexões de Francisco de Holanda a partir dos seus intensíssimos diálogos em Roma com o grande Miguel Ângelo Buonarroti, que lhe recomendava o uso dos «spaços vazios e dilatados para darem despejo e clareza a sua obra, e para terem os olhos dos que a veem caminho e campos por onde caminharem» [21], é já um testemunho directo dessa nova realidade: «aprenda a fazer muito pouco e muito bem, e quando comprir fazer muito e muito compartimentadamente, o fogir do feo e sem graça, o buscar nos mores descuidos por que os outros passam levemente, escolhendo sempre o mais pouco, e melhor, entre o melhor, e o despejado e os espaços, fora dos entricamentos da confusão e do máo eleger». Os desenhos e pinturas maneiristas portuguesas, de Campelo a Salzedo e Venegas, seguiram esse procedimento miguelangesco, generalizado pela tratadística e pela prática da Bella Maniera italiana, sendo de crer que também os «debuxos» feitos pelo Holanda para as câmaras afrescadas no Paço Real de Xabregas (pintadas por Gaspar Dias) [22] seguissem esse ostensivo gosto maneirista, com figuras ciclópicas e escalas «despejadas».

     De facto, é importante não se perder esse ponto de vista, nesses anos fervilhantes de viragem chegavam obras, ideias, tratados, gravuras e, sobretudo, testemunhos directos de experiências, acentuadas pela passagem por Roma de artistas portugueses que lá iam aprender o disegno; mesmo os flamengos que vinham a Portugal, como o retratista Anthonis Moro em 1552, Joozis van der Streten e Simón Pereyns em 1556, e Francisco de Campos, se mostram senhores de uma cultura artística crescentemente romanizada. Antes mesmo do casamento de D. Maria de Portugal, filha do Infante D. Duarte, com o célebre Alessandro Farnèse, já as relações culturais entre Lisboa e a corte de Parma eram uma realidade (mal pressentida embora pelos estudiosos), em contactos que não deixaram de se acentuar após 1567 e até à morte da Infanta em 1577, o que explicará o peso dos modelos de, por exemplo, um Parmigianino na obra de Gaspar Dias... e não só modelos, mas também as estampas, e o conhecimento dos tratados, se impunham neste percurso de conhecimentos. Por Florença e Roma passa Lourenço de Salzedo, que se inspira em Girolamo Siciolante da Sermoneta [23], pela Cidade Papal estadeiam também Campelo, que colhe lição nos círculos de Daniele da Volterra, Francisco Venegas, cuja derivação de modelos de Perino del Vaga e também de Vasari é notória, e ainda João Baptista, António Leitão, e Simão Rodrigues, este último educado nas «receitas» do tempo de Sisto V, e até o secundário pintor de Penacova Álvaro Nogueira e, enfim, o lisboeta Amaro do Vale e o eborense Pedro Nunes, estes já no início do século XVII.

     Sabemos, assim, que a pintura portuguesa do tempo de Camões, ao longo da segunda metade do século XVI (antes e mesmo depois da instauração da Monarquia Dual), acompanhou de modo sui generis, com consciência das novidades e naturalmente também das ideias teorizadas prevalecentes, o Maneirismo dimanado dos centros italianos. O que antes era visto como deformação mal assimilada passou justamente a ser entendido, fruto do conhecimento de princípios que a tratadística difundia, como sinal de uma actualização artística raras vezes verificada na história da arte nacional com o mesmo sentido de mudança e consciência da novidade…


[1] Vitor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

[2] Cf. sobre estas fontes básicas da teoria da arte do Maneirismo o clássico ensaio de Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1940 (2ª ed., 1956).

[3] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[4] Cf. Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999; Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995; Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998, e Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

[5] Sylvie DESWARTE-ROSA, «Aprender a desenhar em Roma no século XVI», cat. da exp. Facciate Dipinte. Desenhos do Palácio Milesi, M.N.A.A., 2011, pp. 26- 47.

[6] Cf. sobre esse perdido tratado de Francisco de Holanda o livro de Pedro FLOR, Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, pp. 313 e segs., com referência ao elogio de «uma proporção e igualdade que muito satisfaz e contenta» (…) pois que «o tratar da Pintura é a cousa mais digníssima deste mundo, e o tirar ao natural aquilo que só Deus fez por tão investigabil sabedoria como Ele sabe»...

[7] Julián GÁLLEGO, El pintor de artesano a artista, Univ. Granada, 1976. 

[8] Sobre Manuel Denis, cf. Maria José REDONDO CANTERA e Vitor SERRÃO, «El pintor portugués Manuel Dionis o Dinis», Actas das XII Jornadas do CSIC El Arte Foráneo en España. Presencia y influencia, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, 2005, pp. 61-78. Do artista, existe um desenho assinado M.D. com grotescos maneiristas: A. AYRES DE CARVALHO, Catálogo da Colecção de Desenhos da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1977, nº 5, p. 206.

[9] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português, cit., p. 340.

[10] Léon HEBREU, Diálogos do Amor, ed. anotada de Giacinto MANUPELLA, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.

[11] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, op. cit., pp. 344-355.

[12] Cf., sobre o tempo cultural de Camões, Dagoberto L. MARKL, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, 1972; Jorge Borges de MACEDO, Os Lusíadas e a História, Verbo, Lisboa, 1979; Sylvie DESWARTE, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Imp.Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1987; e Vasco Graça MOURA e Vitor SERRÃO, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, IN/CM, Lisboa, 1989.

[13] Cf. Vasco GRAÇA MOURA, Luís de Camões: Alguns Desafios, Quetzal, Lisboa, 1980, e id., Camões e a Divina Proporção, Lisboa, 1985. Temos exemplos picturais em Os Lusíadas, com afinidades pressentidas entre o episódio do globo transparente no canto X (estâncias 77 e 79) e a Alegoria do Marquês de Avalos, de Ticiano, como Vasco Graça Moura observou. Na épica camoneana, aliás, multiplicam-se referências pictóricas e alusões à ‘ideia’ neoplatónica da criação artística, como a descrição de um painel do Pentecostes (canto II, estância 11), de outro com Tritão pintado aos modos de Arcimboldo (canto VI, ests. 17-18), a descrição da entrada de Paulo da Gama no Catual, ou dos heróis pintados nas bandeiras de navio (canto VII, est. 74-78, e canto VIII).

[14] Cf. Leontina VENTURA (intr. e notas), Arte Poetica, e da Pintvra, e Symetria, com Principios da PerfpectiuaComposta por Philippe Nunes natural de Villa Real (1ª ed., of. Pedro Craesbeeck, Lisboa,1615), ed. Paisagem, Porto, 1982. Este tratado que é simultaneamente receituário teve uma 2ª edição em 1767 (Lisboa, Of. João Baptista Álvares). Conhece-se uma trad. de Zahira VELIZ  (ed.), Artists' Techniques in Golden Age Spain. Six treatises in translation, Cambridge, Cambridge University Press, 1986. Cf., ainda, António João CRUZ, “Pigmentos e corantes das obras de arte em Portugal, no início do século XVII, segundo o tratado de pintura de Filipe Nunes”, Conservar Património, nº 6, 2007, pp. 39-51.

[15] Cf. Joaquim Oliveira CAETANO, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996.

[16] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[17] Vitor SERRÃO, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008, cap. .

[18] O desaparecido manuscrito do tratado Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos de Francisco de Sólis é vagamente referenciado na Collecção de Memorias de Cyrillo Volkmar Machado, de 1823,

[19] Cf. Luís de Moura SOBRAL, Elogio da Pintura de Luís Nunes Tinoco, I.P.P.C., Lisboa, 1991; e Poesia e Pintura na Época Barroca, Lisboa, Ed. Estampa, 1994.

[20] Cf. José Sebastião da SILVA DIAS, A política cultural da época de D. João III, tomo II, Coimbra, 1969, pp. 701-715.

[21] Da Pintura Antigua, ed. de Ángel González GARCÍA, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1984, refª Livro I, p. 26.

[22] Cf. textos do catálogo da exposição Casa Excelentíssima -- 500 Anos do Mosteiro da Madre de Deus, coord. de Alexandra CURVELO e Alexandre PAIS, Lisboa, Instituto dos Museus e Conservação, 2009, pp. 107-123.

[23] Cf. Vítor SERRÃO, «Lourenço de Salzedo en Roma. Influencias del Manierismo romano en la obra de la Reina Catarina de Portugal», Archivo Español de Arte, LXXVI, nº 303, 2003, pp. 249-265.