Sumários

Da intersecção das artes

17 Fevereiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

FEVEREIRO                               2ªFEIRA                                       4ª AULA

 

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Recebemos hoje mais dois alunos no nosso seminário: a Andrèzza Alves e o Marcondes Lima, ambos do doutoramento em Artes (versão sucinta).

Anuncia-se mais um aluno assistente, o Paulo Martins.

De todos, alunos oficialmente inscritos e assistentes, esperamos que encontrem entre nós bom estímulo e receptividade para as propostas programáticas que já estamos a desenvolver.

Retomando o assunto principal da aula de hoje, a composição para palco Quadros de uma Exposição (1928) de Wassily Kandinsky, propus que acompanhássemos primeiro partes do texto-guião que dá forma a essa obra para palco, seguindo-se o visionamento de alguns quadros da sequência cénica reconstruídos.

Existem em arquivo no Centro Georges Pompidou em Paris todos os desenhos e aguarelas que deram origem à sequência em movimento que tivemos oportunidade de visionar.

http://bibliothequekandinsky.centrepompidou.fr/ClientBookLine/recherche/noticesDetaillees.asp?iNotice=0&INSTANCE=INCIPIO&PORTAL_ID=&STAXON=&LTAXON=&BACKU

À época Kandinsky solicitou a Felix Klee, filho de Paul Klee e aluno da Bauhaus, que o apoiasse na elaboração de alguns esboços para cena e na própria criação cénica, como foi o caso do Quadro XV – A cabana de Baba Yaga. Felix Klee foi assistente de Kandinsky na realização desta obra no Teatro de Dessau em 1928.

Verificámos então que Kandinsky escreveu uma partitura plástica intercalada com a informação retirada, compasso a compasso, da partitura musical de Mussorgsky. Esta informação é apresentada ao leitor nas primeiras linhas do documento, exprimindo-se desse modo a metodologia seguida pelo artista na escrita documental. A apropriação da partitura de Mussorgsky tem para além do mais a presença do conhecimento científico, dado que Kandinsky estudou música e tocava primorosamente piano e violoncelo.

Não é portanto surpreendente que o cruzamento entre a música e as suas especificidades (ritmo, cadência, velocidade, acentuação, repetição, crescendos e diminuendos, etc.) e a criação plástica cénica alcancem uma simbiose da qual poderiamos não estar à espera.

A ideia de profundidade/profundo, por exemplo, mencionada por Kandinsky algumas vezes, pressupõe o entendimento da relação parcelada da composição como preenchimento do espaço e com base na organização de todos os elementos que a constituem. A criação da tridimensionalidade na maior parte dos quadros só existe porque é trabalhada a  profundidade através dos jogos de luz e sua ausência. É assim que chegamos à sequenciação dos objectos em movimento e repouso na construção de cada quadro. Ao contrário do que acontece no âmbito da obra plástica e plástica-cénica, a representação da profundidade em música socorre-se normalmente de uma distinta linguagem (tons e tonalidades graves,  uso do temperamento, cadência e ritmo em diminuendo, por exemplo) que no presente caso adquire total clareza para o ouvinte sem que este tenha de ser sujeito a registos díspares e atónicos quer na música quer na representação cénica. Apesar disso, a recepção da primeira e única representação desta obra não animou o público presente.

Em breve nota relembro o capítulo Empatia da obra de Giovanni Frazzetto anteriormente recomendada.

Relembro também que Kandinsky defende que o que importa mesmo é o conteúdo da obra na sua integridade e integralidade. A diferenciação das formas pode até enriquecer o resultado final contribuindo na sua óptica para uma síntese das artes.

Consideremos que é este o caso. Mussorgsky já tinha morrido em 1891. Mas a sua música era conhecida e apreciada por toda a Europa. O gesto de homenagem de Kandinsky ao seu conterrâneo e igualmente a Viktor Harmann é alvo de uma iniciativa externa suplementar e decisiva – a obra cénica Quadros de uma Exposição é uma encomenda do Teatro de Dessau ao artista. Pela primeira vez o pintor russo tem a oportunidade de experimentar a relação directa com oa cena. Após ter escrito 14 Composições para Palco e nenhuma ter sido encenada/dirigida, a oportunidade que se avizinha tem de ser agarrada com ambas as mãos, em sentido literal, mas também como reconhecimento de dimensão artística até então publicamente desconhecida. Acresce dizer que na altura da estreia desta Composição para Palco,  esboços, desenhos e telas de preparação para Quadros de uma Exposição foram exibidos no foyer do teatro.

Apesar desta dimensão projectiva e de publicitação da sua obra, o trabalho de Kandinsky na criação de Quadros de uma Exposição pauta-se por um processo descritivo minucioso, por vezes parecendo que ele se está a dirigir a si próprio.

Ao olharmos para este objecto artístico (apesar de descritivo é um objecto artístico na forma básica!) teremos de reconhecer que as suas características o inserem na categoria de multimodal. Sem ser formalmente uma partitura musical, Quadros de uma Exposição (versão para palco) desenvolve um registo ao longo dos diferentes quadros com uma intencionalidade  próxima da escrita de uma partitura pictórica. Os desenhos existentes corroboram esse propósito. Dessa partitura emana a convergência do desenho e da pintura, estabelece-se a presença de um artesanal desenho de luz e da sua relação com a respectiva sombra/ausência, escolhem-se tecidos com qualidades adequadas, montam-se os quadros à vista do espectador mas também do leitor, tendo ambos acesso a todo o processo.

O acto composicional é essencialmente um gesto poiético, sempre pronto a criar uma dimensão poética visual, por vezes crítica, humorística também, em cada conjunto de imagens que traduzem a história fenomenológica de um processo artístico a seis mãos.

A russissidade desta experiência terá sido para Kandinsky um factor emocionalmente relevante. Em 1928 já o professor da Bauhaus obtivera a nacionalidade alemã. Em 1933 iria optar pela nacionalidade francesa. Oficialmente despedido de ser russo, o pintor nunca mais veria torrão natal.

Reenvio o documento da 14ª composição para palco com alguns sublinhados. Não vou entrar em explicações que a releitura do documento pode enunciar. Afinal os alunos são argutos.

Concluimos a nossa aula com a apresentação de uma série de exercícios cénicos concebidos por Oskar Schlemmer e recriados pela coreógrafa Margarete Hasting e seus bailarinos. Foi depois apresentada uma outra sequência em registo original de época.

 

DVD visionado

Bühne und Tanz | Stage and Dance – Oskar Schlemmer, Edition Bauhaus, 27 min.,  Objecto fílmico reconstruído por Margarete Hasting (1969). Língua alemã, língua inglesa na legendagem inicial de cada coreografia, 2014.

 

Endereços electrónicos sugeridos

https://www.bauhaus100.com/the-bauhaus/people/masters-and-teachers/oskar-schlemmer/

https://performatus.net/estudos/oskar-schlemmer/


Estruturar arte cénica abstracta

10 Fevereiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

FEVEREIRO                               2ªFEIRA                                       3ª AULA

 

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1. Grandes foram a inquirição e a inquietação suscitadas pelo ensaio Sobre a Questão da Forma que Kandinsky escreveu em 1912[1] e a que continuou a referir-se ao longo de toda a sua vida. O uso da tradução portuguesa não nos deverá impedir de analisar, folheando e parando aqui e acolá, a obra que recebeu o ensaio na altura da sua escrita. Refiro-me ao Almanaque Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) que Kandinsky editou com o pintor e amigo Franz Marc e onde a transversalidade imperou em muitos domínios do conhecimento especialmente no desenho, na pintura e na gravura, num cruzamento de tempos históricos e de geografias. Os géneros pictóricos apresentados ombrearam com os textos inclusos que iam do ensaio ao poema, da discussão teórica à partitura musical e que editava pela primeira vez a composição para palco O Som Amarelo da autoria de Kandinsky. A esta composição vinha agregado o ensaio Sobre Composição para Palco, no qual o artista defendia a ideia de que o conteúdo de uma obra de arte existe independentemente dos meios, das formas que lhe dão expressão. Defende ainda Kandinsky que a forma pode até estar correcta do ponto de vista exterior, o que não invalida que internamente ela não funcione e vice-versa. As premissas aqui sintetizadas permitem que se considere, na representação pictórica mas também na concepção cénica, que a unidade interior de uma obra pode perfeitamente derivar da dissimilitude exterior dos elementos que a constituem. A noção de obra de arte total ou a noção de síntese das artes vive exactamente da confluência de várias artes que agregam entre si um conteúdo ou conteúdos comuns tratados pelo que cada arte tem de específico.

2. Retomemos uma vez mais a obra Quadros de uma Exposição de Wassily Kandinsky, 1928 (a partir da obra musical homónima de Modest Mussorgsky, 1871)

A partir de uma iniciativa do então novo director do Friedrich-Theater de Dessau, Georg Hartmann (não confundir com o pintor Viktor Hartmann), Kandinsky é convidado a criar, em 1928, uma cenografia e figurinos para uma encenação muito especial e singular, cuja estreia ocorreu a 4 de Abril desse ano.

O projecto a que Kandinsky se dedicou propunha-se acompanhar, através de meios plásticos, uma das obras musicais mais populares do seu compatriota Modest Mussorgsky (1839-1881) que, em 1871, criara uma sequência de dez pequenas partituras para piano, dedicadas postumamente ao seu amigo e pintor Viktor Hartmann (1834-1873).

Com vista à realização deste primeiro e único trabalho para cena levado a cabo por Kandinsky e, contrariamente aos princípios teóricos sobre a síntese cénica abstracta enunciados em escritos anteriores, Kandinsky tinha de «compor» a partir de uma partitura préexistente que, reportando-se a um acontecimento – a visita a uma exposição – evitasse, segundo ele, os escolhos de uma mera composição programática, conseguindo antes encontrar „uma forma musical pura“[2] para as vivências suscitadas pela partitura de Mussorgsky.

A cenografia em 16 quadros concebida por Kandinsky operava como uma série de acontecimentos plásticos cénicos, criados através da ajuda de formas geométricas, cores, linhas e efeitos de luz, que no seu conjunto produziam movimento e integravam com um carácter meramente acessório a figura do „acteur“, sob a forma de uma marioneta humana ou uma figura do teatro de sombras.

Em cena, os 16 quadros constroem-se e desconstroem-se diante dos espectadores através da iluminação sucessiva das diferentes partes.  De acordo com testemunhas oculares este espectáculo foi apresentado com uma extraordinária diversidade (elementos mais atentos do público chegaram mesmo a referir a presença de pequenas intervenções pedidas de empréstimo a Oskar Schlemmer ou a Ludwig Hirschfeld-Mack, colegas de Kandinsky na Bauhaus).

O problema de Kandinsky não estava, porém, em conceber uma interacção de elementos originais, mas em fornecer um contraponto visual à composição de Mussorgsky, que não fosse uma ilustração („pintura sob programa“), nem um mero sublinhar da partitura, mas antes uma „sonoridade abstracta“ com capacidade para estabelecer interligações e ao mesmo tempo interagir na criação de modo autónomo, articulando-se com precisão no movimento musical.  Para alcançar este objectivo, o artista cénico propunha-se:

 

„1) criar as formas em si, elas mesmas portadoras de autonomia;

2)   Associar a seguir as cores sobre as formas;

3)   juntar a estas a cor de iluminação (Beleuchtungsfarbe) para criar pintura com profundidade;

4)   desenvolver o jogo autónomo da luz colorida;

5)    produzir construção articulada de cada quadro com a música e, se necessário, a sua desconstrução.“[3]

 

Fonte informativa investigada: Jessica Boissel (Hrsg.), Wassily Kandinsky – Über das Theater, Du Théâtre, O Teatpe, Kö«ln, Dumont, 1998, p. 291.


[1] KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, tradução de José Eduardo Rodil Lisboa: Edições 70, pp. 13-37.

[2] Wassily Kandinsky, in: Das Kunstblatt, XIV, 1930, S. 246.

[3] Ibid.


Apresentação de propostas dos professores convidados para o programa

3 Fevereiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

FEVEREIRO                                   2ªFEIRA                                           2ª AULA

 

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A aula de hoje esteve basicamente a cargo dos três professores convidados que integram este programa e que fizeram a apresentação das suas propostas de trabalho a desenvolver de modo sequenciado.

Alexandre Pieroni Calado deixou-nos a seguinte proposta: Apresentação geral do programa para o módulo intitulado O Pavor de Marionetas. Propomo-nos tomar como ponto de partida a tese avançada por Heinrich von Kleist em «Sobre o teatro de marionetas», onde este escreve que a graciosidade “surge em simultâneo e de modo mais puro naquela estrutura de um corpo humano que ou não possui consciência alguma, ou possui uma consciência infinita”. Propomo-nos mostrar como as ideias desenvolvidas neste texto singular exerceram um forte ascendente nas concepções do actor de Oscar Schlemmer e de Vsevolod Meyerhold, dando forma artística a uma rede de conhecimentos de ordem fisiológica e psicológica sobre aspectos como a relação corpo-mente, a psicologia da atenção e a noção de dupla consciência. Por fim, pretendemos abrir um espaço de reflexão em torno da hipótese de que certo optimismo face à tecno-ciência que atravessa o pensamento de Schlemmer e Meyerhold encontra hoje uma muito frágil sustentação; de sorte que se poderia falar de um contemporâneo pavor de marionetas.

 

Sérgio Mascarenhas enviou texto próprio para este sumário o que muito agradeço.

Fez-se uma breve apresentação das temáticas a tratar nas duas sessões dedicadas a ‘Jogo e performance’, partindo da observação de que o jogo é pervasivo nos mais diversos domínios da vida individual e social, e muito em especial no que diz respeito às artes performativas. Posto isto, propuseram-se como pistas de trabalho:

O repto de as alunas explorarem, desde já, o campo semântico associado à expressão ‘jogo’, nomeadamente contrastando a forma como a mesma se enuncia e desdobra nas várias línguas que dominam.

Indicaram-se as referências teóricas fundamentais (Huizinga, Caillois, Fink) enviadas por e-mail no âmbito dos mini-programas.

Recordaram-se os pontos essenciais a tratar, tal como enunciados no mini-programa: “As sessões dedicadas a Jogo e Performance abordam o tema de Teatro e Cognição a partir do entendimento de que o jogo, como atividade e como conceito, é fundamental para a compreensão das artes performativas. O nosso ponto de partida será, assim, a compreensão da própria expressão ‘jogo’ e do seu campo semântico, a que se seguirá uma tentativa de fixação das suas caraterísticas mais salientes. Prestaremos uma atenção particular ao espaço e ao tempo do jogo, cada um dos quais desdobrados, como veremos, em múltiplas camadas. Um segundo campo temático prende-se com a dialética liberdade / regra inerente ao próprio conceito de jogo. Exploraremos estes conceitos com referência à produção teórica e prática da Bauhaus no sentido de delimitarmos com maior precisão a dimensão jogo da performatividade em geral e da performatividade artística em particular.”

 

Pedro Florêncio alargou de forma expositiva e explicativa o modo como vai introduzir e desenvolver uma área que não teve na Bauhaus reconhecimento formal (não existiu nenhum atelier de cinema na Escola) mas muitos dos trabalhos experimentais aí realizados receberam directa inspiração do cinema, de um certo cinema, dessa época.

«Em duas aulas, teremos como objecto de estudo um conjunto de filmes relacionados e/ou relacionáveis com o legado estético da Bauhaus, através dos quais pensaremos o conceito de corpo cinemático. A partir do visionamento de filmes de Hans Richter e Laszlo Moholy-Nagy, e de excertos de Metropolis (1927, Fritz Lang) e Playtime (1967, Jacques Tati), procuraremos compreender como é que os jogos de encenação das formas cinematográficas nos podem fornecer, ainda hoje, importantes linhas de reflexão no campo das artes audiovisuais.

 

Bibliografia:

Moholy-Nagy, Laszlo (1925). Painting, Photography, Film. Disponível em: https://monoskop.org/images/c/cb/Moholy-Nagy_Laszlo_Painting_Photography_Film.pdf

 

Recupero aqui e-mail enviado a todos pelo Pedro e que alarga a informação já disponível em várias frentes.

 

Bom dia,

a propósito da aula de ontem, aqui seguem, para download, a obras de que falei (sendo a do Moholy-Nagy a que nos interessará discutir): https://we.tl/t-Ey1KjoQZqB

Aproveitei para juntar as Notas sobre o cinematógrafo do Robert Bresson, que acabei por mencionar no final a propósito do aforismo na página 55: "CINEMA, radio, television, magazines are a school of inatention: people look without seeing, listen in without hearing". Para quem não conhece, esse livro é uma espécie de bíblia de cabeceira para muitos cineastas, professores ou estudantes de cinema. 

O Doutoramento em rede de modelo transdisciplinar escandinavo de que falei é este: http://www.jar-online.net/ 

E podem encontrar resumos de artigos/trabalhos publicados aqui: https://www.researchcatalogue.net/

A propósito de processos cognitivos e empatia no contexto das artes, recomendo este livro, que foi a tese de doutoramento de um professor meu formado em psicologia e ex-director da Escola Superior de Teatro e Cinema. É denso e muito centrado no caso cinematográfico, mas vale a pena nem que seja por causa da quantidade de bibliografia que cita ou sugere relacionada com o assunto (que me pareceu interessar-vos):

https://www.sistemasolar.pt/pt/produto/112/pt/empatia-e-alteridade-a-figuracao-cinematografica-como-jogo/?c=39

Até breve,

Pedro Florêncio

Uma última nota sobre bibliografia e filmografia:

 

 

1. Preciso de saber se estão dispostos a adquirir o livro na FNAC (13,50 € com desconto de aderente). Já manifestei a minha surpresa tecnológica para agir com plataformas como We Transfer e outras. Pela primeira vez não as consegui usar.

O mesmo se passa com o filme que vimos em aula. Tenho-o aqui em arquivo e não consigo enviá-lo. Posso disponibilizar livro e filme


Bauhaus - um século depois

27 Janeiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

ESPECTÁCULO E COGNIÇÃO

 

Ano lectivo de 2019-2020

 

2º SEMESTRE

 

Anabela Mendes

lendário Escol

 

 

Calendarização das aulas

Versão em actualização

 

Horário:

2ª Feira - das 14:00 às 17:00

Sala de Vídeo

Recepção de alunos: 2ªª feira das 13:00 às 14:00 na sala 2.2 ou em espaço aberto, sempre a combinar.

 

JANEIRO                             2ª FEIRA                               1ª AULA

 

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Primeiras impressões de como iremos realizar a concretização do nosso programa no seminário de Espectáculo e Cognição. 

 

1. Encontrámo-nos pela primeira vez. Três alunas e três professores. De cada lado havia uma ausência justificada. Faremos em breve a integração dessas pessoas.

Quisemos saber um pouco de cada um num gesto agregador quer das alunas participantes quer dos professores com quem elas irão trabalhar.

2. O assunto que nos junta neste semestre é o estudo de algumas possibilidades artísticas, com efectiva realização contemporânea, sob a modalidade de reconstrução, de obras que tiveram lugar durante a vigência da Escola Bauhaus entre 1919 e 1933 em Weimar, Dessau e Berlim.

A escolha da Bauhaus como modelo de Escola de Artes tem a vantagem de se nos apresentar como um lugar de estudo e experimentação que privilegiava a efectiva interdisciplinaridade entre conteúdos e sua aplicação prática, criando ao mesmo tempo um espaço relacional e de funcionalidade com a comunidade exterior à Escola e para a qual ela deveria trabalhar. O projecto científico-pedagógico era também um projecto social e político. Em última instância a Bauhaus deixou para a posteridade uma marca estética e operativa inconfundível sobretudo a partir da disciplina agregadora de arquitectura.

O carácter único desta Escola marcou para sempre o espírito de construção e organização do espaço habitacional ao longo do século XX e em várias partes do mundo, onde a inspiração bauhausiana continua a dar frutos visíveis não só nos edifícios erigidos

https://www.archdaily.com.br/br/929563/guia-de-arquitetura-bauhaus-100

mas igualmente em termos metodológicos, na escolha e no uso de materiais, na sensibilização ao espaço, na organização funcional de interiores, na captação de fontes de luz natural, na proporcionalidade da altura dos edifícios, sempre com o desígnio de criar bem-estar e harmonia para as pessoas.

A arquitectura não é nosso tema neste seminário mas dela decorrem princípios gerais (relação da corporalidade com o espaço, tratamento de luz, sua ausência, e sombra, selecção e uso de materiais) que poderemos encontrar expostos, por exemplo, na concepção de obra cénica e que derivam do diálogo profícuo entre várias disciplinas como o desenho, a pintura, a dança, a criação de movimento a partir de objectos inanimados, a competência de tecidos e outros materiais para a criação de plasticidade funcional.

As várias modalidades de estruturação inerentes às disciplinas oferecidas pela Bauhaus (veremos organogramas criados por diversos mestres) permitem-nos ter uma perspectiva da visão agregadora do conhecimento defendida pela Escola. A síntese das artes ou a possibilidade de criar obra de arte total (versão moderna de Richard Wagner) estiveram sempre no horizonte utópico dos Bauhäuser (professores e alunos) conferindo à Bauhaus um carácter projectivo único à época mas também de natureza irrepetível como um todo.

3. Para melhor compreendermos o alcance deste projecto científico, pedagógico e artístico nos dias de hoje visionámos um documentário de Niels Bolbrinker e Thomas Tielsch intitulado Vom Bauen der Zukunft – 100 Jahre Bauhaus (Da construção do futuro – 100 anos da Bauhaus).

O filme em questão parte de uma realidade actual no campo da habitação em alguns países da América do Sul mas que poderia igualmente ser referenciada em outras partes do mundo. Refiro-me à construção desenfreada de habitações sem planeamento e sem condições básicas mínimas que albergam milhões de pessoas sem qualquer qualidade de vida. A urgência do desmantelamento destes amontoados caóticos e que mais potenciam a morte do que a vida não tem resposta política de governos inclinados sobre o seu próprio bem-estar. Disto fala o filme que vimos e nele encontramos técnicos que até pensam como seria viável arrasar esse tecido urbano deformado e substituí-lo por casas simples inspiradas em protótipos e modelas criados durante a vigência da Bauhaus. Este é o espírito que mantém vivo o que foi esta Escola. A dimensão social do projecto arquitectónico da Bauhaus apresenta ainda hoje soluções de aplicação prática e funcional que poderiam oferecer conforto e aconchego a pessoas que vivem de modo insalubre e desumano.

Mas o filme tem ainda a virtude de nos confrontar com diversos exemplos de uma utopia, que deixou de o ser por escassos anos, na medida em que nos mostra um arquivo vivo das artes e suas potencialidades associado à História de uma época, o período compreendido entre o final da I Guerra Mundial e a ascensão do nacional-socialismo.

A História da construção arquitectónica que nasceu e se desenvolveu com a Bauhaus foi sendo alvo das preferências e orientações dos seus directores, todos eles arquitectos, o que fundamenta a prevalência desta área do conhecimento sobre todas as outras ensinadas na Escola. No entanto, a consciência de um projecto multidisciplinar como previa a essência da própria Bauhaus encontra nos planos curriculares a vontade experimental e vanguardista de pôr em acção um modelo completamente inédito de ensino/aprendizagem. É o caso, por exemplo, da implementação do construtivismo de inspiração russa, que terá marcado as linhas de conduta da direcção da Escola, quando à frente dela esteve Hannes Meyer, o segundo director da Bauhaus, entre 1928 e 1930.

São deste arquitecto as seguintes palavras:

«arte?!

toda a arte é ordem.

ordem é debate entre o lado de cá e o lado de lá,

ordem das impressões dos sentidos do olho humano,

e dependendo do subjectivo, associado ao pessoal,

dependendo do objectivo, relacionado com a sociedade.

a arte não é um meio causador de beleza,

a arte não afecta o desempenho.

a arte é apenas ordem.»[1]

Walter Gropius (1919-1928) e Ludwig Mies van der Rohe (1930-1933) desenvolveram outros interesses diferentes dos de Hannes Meyer. No caso de Gropius, a projecção da Escola para o exterior existiu na sequência dos primeiros passos para a sua sedimentação como forma de sustentabilidade e autonomia financeira. Essa preocupação foi um dos seus principais objectivos com a intenção de integrar a Escola e de a relacionar com o espaço  cultural, artístico e social da cidade onde a Bauhaus teve origem.

Quanto a Mies van der Rohe, e já com muitas limitações de gestão independente da Escola, verifica-se, por exemplo, que o arquitecto-director propõe uma revisão de programas dos vários semestres de funcionamento dos cursos tornando evidente a necessidade de homogeneizar e escolarizar as matérias de ensino até então trabalhadas em regime aberto no espaço das oficinas e em detrimento do experimentalismo que caracterizava métodos e práticas e que cruzava em permanência artes e ofícios desde a abertura da Escola. A Bauhaus transforma-se nesta fase numa unidade de produção de protótipos, modelos e objectos com vista à colocação dos mesmos no circuito industrial alemão. Tal estratégia tem por finalidade atrair uma clientela ampla e demonstrar ao mesmo tempo a capacidade de sobrevivência da própria Escola perante às autoridades nacional-socialistas que ameaçavam fechar a Bauhaus a todo o momento, como veio a acontecer em 11 de Abril de 1933.

4. Interessante no filme que vimos em conjunto é ainda a demonstração de como se podem organizar módulos e protótipos de diferentes maneiras atribuindo por isso à junção neste caso dos sólidos novas possibilidades de uso da forma. O treino desta capacidade que nos aparece demonstrada noutros exemplos (articulação de varas) permite que tenhamos com o espaço relações de organização e de prospecção que integram o jogo como elemento criador no quadro de uma construção. Variantes deste procedimento ocorrem em obra cénica criada, entre outros, por Wassily Kandinsky e Oskar Schlemmer. Em ambos os casos, embora de modos muito distintos, somos convidados a apreciar como o espaço e os elementos nele circulantes é organizado progressivamente diante de nós. De certo modo tornamo-nos co-construtores de movimento e repouso criando desse modo uma relação com o que vemos (escutamos) independentemente do género e tipo de elementos que circulam diante de nós.

As formas visíveis e não visíveis permitem articular a criação de um espectáculo ou de um exercício que reúna várias artes em simultâneo ou de modo consecutivo.

5. Poderíamos continuar a analisar o filme até ao seu derradeiro momento. Esse momento é aliás uma replicação do seu início, como se esse reforço nos ajudasse a compreender que um ponto de partida regressa não como um simples ponto de chegada mas antes como uma possibilidade de relançamento. Foi assim que fiz interpretação.

A Escola, sendo uma espécie de excrescência no seio da sociedade alemã da sua época, em que o conservadorismo dominante, e em especial na Baixa Saxónia, quase fazia esquecer o brilho que iluminara a cidade de Weimar no séc. XVIII, e que agora estaria aberta a alargada e fulgurante repetição, a Escola dizia, tem afinal uma luminosa existência votada a um quase ostracismo e a um sentimento resistente. Este estado de coisas resulta de uma particular constelação de interesses e vontades em nome de um modo de aprender a viver com uma forte postura ética e social que a Escola nunca perdeu.

A inovação e o espírito vanguardista sentem-se nas imagens, no espólio fotográfico que podemos admirar e que atribuem à Bauhaus uma existência sem paralelo mesmo em função dos nossos tempos. E esta era a sua função primeira – interligar, articular, experimentar artes maiores e menores sem distinção de escala. O lugar de todas as artes foi ali em Weimar, Dessau e Berlim.

 

Filme visionado:

BOLBRINKER, Niels, TIELSCH, Thomas (s. d.), Vom Bauen der Zukunft – 100 Jahre Bauhaus (Da construção do futuro – 100 anos da Bauhaus), 90 min., alemão e inglês, arte edition.

 

Leituras recomendadas

DROSTE, Magdalena 2019. Bauhaus – A hundred years of Bauhaus, updated edition, Berlin: Bauhaus Archiv, pp. 130-149 e pp. 298-303.

JUSTO, José, Kandinsky e o Espírito. Três deambulações a propósito de «Fósforo Queimado, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 71.

KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, Lisboa: Edições 70. Apenas o primeiro ensaio é fundamental. Os restantes serão escolha de leitura dos alunos.

 

Nota breve

Serão disponibilizados aos alunos alguns capítulos do livro de Magdalena Droste recomendado através de We Transfer.


[1] A citação aqui apresentada é de Hannes Meyer, o segundo director da Escola da Bauhaus em Dessau, entre 1928 e 1930. A apresentação gráfica da referida passagem respeita o código ortográfico, só de minúsculas, utilizado pelo autor e frequentemente seguido por outros membros da Escola.  Reporto-me a artigo escrito pelo arquitecto suíço, em 1929, com o título bauhaus und gesellschaft (bauhaus e sociedade), cf. Wilma Ruth Albrecht: "Moderne Vergangenheit - Vergangene Moderne" (Passado moderno – Modernidade passada), Neue Politische Literatur, 30 [1985] 2, pp. 203-225.