Sumários

Pedro e Inês de Castro

2 Novembro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

O quadro histórico, abaixo resumido.

Conselhos bibliográficos, além de outras frentes artísticas. Ver www.culturaport.blogs.sapo.pt, Março de 2012.
Exemplos literários, em particular, as trovas de Garcia de Resende e as oitavas camonianas. 

O infante D. Pedro e D. Constança Manuel casaram pela igreja em 24 de Agosto de 1340. O casamento por procuração fora em 1336, mas Afonso XI, rei de Leão e Castela (1312-1350), retinha a noiva por razões de política interna ‒ contra um pai poderoso, D. João Manuel, que o rei português D. Afonso IV (1325-1357) apoiava. Cumulativamente, este não admitia que a sua filha, a formosíssima Maria cantada n’Os Lusíadas, que já dera um filho a Leão e Castela, o futuro rei D. Pedro I (1350-1368), fosse violentada e trocada no leito por amante com dezena de bastardos.

A experiência transfronteiriça do infante ameaçava desastre, pois não resultara a tentativa com D. Branca, que veio ao reino para contrair matrimónio em 1330. Filha do infante Pedro de Castela e de Maria, infanta de Aragão, a menina nascera antes de 1314 (dizem alguns que em 1319); o infante, em 1320. Os historiadores debatem se houve sacramento e consumação, e por que razão D. Branca voltou para casa: dificuldade de relação entre pré-púberes? problemas fisiológicos ou psicológicos? inutilidade política? Se houve esponsais, não houve casamento, aliás, canonicamente inválido antes dos 14 anos. Médicos e políticos de Espanha compreenderam que D. Branca não estava apta para casar, e jamais casou, morrendo em 1375.

Agora, em 1340, o Islamita, que julgava aproveitar dissensões ibéricas, obrigara à união: a rogo da filha, D. Afonso IV conjuga esforços com Afonso XI e torna-se o bravo da batalha do Salado (30 de Outubro), nome de rio na província de Cádiz. Desanuviada a relação, Afonso XI autoriza a saída de Constança Manuel, que chega, enfim, a Lisboa, trazendo com ela – dizem alguns que foi chamada depois ‒ «hũa donzela mujto fermosa que por fermosa e de singular disposição lhe chamauão colo de garça»: Inês de Castro. Inês nascera entre 1320 e 1325: beleza e juventude ofuscavam infante de 20 anos, cuja mulher lhe levava sete anos. 

Ora, porque «se sintia que ho Ifante dom Pedro lhe queria bem [a Inês] e estava em algũa maneira a ella afeiçoado», convidam-na para madrinha de Luís (1341; outros remetem para 1344, após a irmã Maria, 6-IV-1342). A criança morre uma semana depois, mas o convite envenena a historiografia: não seria o compadrio «obstáculo canónico» a futuro casamento entre Pedro e Inês, deslegitimando os filhos que viessem?

Em público, a donzela galega deixa-se tratar por comadre, sem jamais usar os termos de comadre ou compadre dirigindo-se ao casal. Se Pedro crescia em amor, «quando della soube particularmẽte que nũqua consintira em sua vontade ser sua comadre, ficou dahi por diante mujto mays contente e lhe quis por jso muyto maior bem». Esta contra-vontade destrói, em Direito Canónico, qualquer obstáculo.

Morre Constança em 1345 (no parto do terceiro filho, o futuro rei D. Fernando, 31-X-1345, ou logo depois, dirá Fernão Lopes; também se assinala a morte em 1349). E, após forçado desterro, chamada Inês de junto da tia castelhana Teresa de Albuquerque, gera quatro filhos, «todos hũas bellas criaturas, por se parecerem todos ha may cuja fermosura naquele tempo naõ auya e mais por serem furtados e auydos com tanto contentamẽto dambos». D. Afonso (1350?) pouco sobreviveu; D. João (1351? 1352?) tem vida de romance[1]; D. Dinis (1353) morreu desterrado em Castela, jazendo no mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe. Beatriz (1354), sepultada na Sé de Burgos, casou com Sancho, conde de Albuquerque, um dos muitos filhos bastardos de Afonso XI e Leonor Nunes de Gusmão, logo, irmão de Henrique de Trastâmara e meio-irmão de Pedro, o Cruel, filho da formosíssima Maria. De Beatriz e Sancho nasceu Leonor, casada com D. Fernando de Castela, e rei de Aragão, pais da rainha D. Leonor, mulher do nosso D. Duarte, de que nasceu D. Afonso V.

Se, pela ascendência, Inês era bisneta bastarda de Sancho IV de Castela, o Bravo, e seu pai, D. Pedro Fernandes de Castro, primo co-irmão do infante D. Pedro ‒ consanguinidade coberta por bula do Papa João XXII, de 18-II-1325 ‒, serviu Afonso XI como mordomo-mor, ela foi, pela descendência, tronco da Casa Real portuguesa. Não só: a mãe provinha de D. Sancha Nunes de Chacim, e esta de D. Nuno Martins de Chacim, o último braganção, aio e mordomo-mor de D. Dinis, sepultado no mosteiro de Castro de Avelãs. Seria inspiração para se casar em Bragança?

Primeiro, contudo, aqui nasce João, que, na opinião de modernos historiadores, devera ser rei de Portugal, em vez do meio-irmão João, mestre de Avis. Pelo casamento com D. Constança de Castela, Senhora de Alba de Tormes, foi 1.º duque de Valência de Campos, e as vicissitudes da vida arrastaram-no à sepultura no convento de Santo Estêvão, em Salamanca. O filho do primeiro casamento com Maria Teles, D. Fernando d’Eça ou de Portugal, deu origem aos Eças e aos Portugal; de outros filhos vieram os Acuña, os Castros e os Vasconcelos. O filho D. Fernando da Guerra (nascido em 1385) seria 1.º Senhor de Bragança e de várias terras doadas pelo tio D. João I. Por via do irmão Álvaro Pires de Castro, Inês seria tia-avó de outro D. João de Castro, o qual casou com D. Leonor de Acuña y Girón, nascendo D. Joana de Castro, mulher de D. Fernando, segundo duque de Bragança.

O casamento de Pedro e Inês ocorreu no primeiro de Janeiro de 1354, ou 1353, contados os sete anos até à declaração daquele, em Cantanhede (1360). Não havia impedimento canónico para que o deão da Guarda pudesse abençoá-los, fosse na igreja de São Vicente, como reza a tradição, ou em casa particular dentro da muralha. A memória popular, também castelhana, reforça a tese: «Hallóse Don Pedro libre, / y a su mal medio buscando, / se casó con Doña Inés / en Berganza con recato.»[2]

D. Afonso IV lutara contra o pai D. Dinis, que preferia o bastardo Afonso Sanches, e só a Rainha Santa Isabel resolvera a contenda; agora, vencido pelos conselheiros, que temem o valimento dos dois irmãos de Inês junto de Pedro (não irá arrastá-los para o vespeiro castelhano? não irá substituir Fernando pelo meio-irmão João, filho de Inês? não lhes retirará influência?), contemporiza: envia ao filho o arcebispo de Braga, que, reconhecendo a afeição mútua dos jovens, lhe pede para «tomar molher» e pôr Inês a bom recato, tal vai a murmuração no país. Pedro agradece, percebe-se que não pode casar quem já está casado, e não acredita que a possam matar, sendo ela sem culpa, e nem ter nome de cristão quem contra ela atente.

Pousando em Montemor-o-Velho, D. Afonso IV dá, enfim, ordem de morte. Está velho, e sabe que o filho se levantará contra ele: outra rainha, D. Beatriz, há-de apaziguá-los. Agora, na madrugada de 7 de Janeiro de 1355, Inês repousa nas casas do mosteiro de Santa Clara, onde, sabia o neto, o espírito da Rainha Santa só aceitava casais sacramentados, o que é outra demonstração subtil de ter havido casamento, fosse clandestino, de consciência ou morganático (não sendo Inês filha de rei), hipótese esta mais excruciante para D. Afonso IV. Inês sai ao encontro dos algozes: rodeada pelos três filhos, «com mujta humildade lhe pidia que por respeito daqueles jnoçentes seus netos ouuesse della misericordia». Compassivo e turvado, o rei volta o rosto, disposto a perdoar, e partir.

Desautorizados, os conselheiros apelam às suas vidas, em perigo, tal o ódio que Pedro, ausente e fora desta torpe iniciativa, lhes dedicará. É fraco argumento, se, em breve, terão de fugir; nem ser Inês causa provável de perigos futuros (que se não cumpriram) justifica um crime contra a mais elementar justiça, que seria julgá-la. O bravo, agora derrotado, lava as mãos como Pilatos, também indiferente à cláusula jurídica do pregão público: e, ao arrepio da inocência, das lágrimas dos filhos, da inevitável vingança de Pedro, «a mataram cuelmẽte ás punhaladas, do qual elrei foy mui prasmado e auido mais por abominauel crueza que por seuera nem louvada justiça». Mais: foi degolada.      

Na segunda metade de 1361 (senão em 1362 ou 1363), o rei D. Pedro procedeu à transladação dos restos de D. Inês de Santa Clara para o mosteiro de Alcobaça, onde sua «molher», como ele disse, e provou repetidamente, o esperou, até 1367. Assim Bragança triangula com Coimbra e Alcobaça neste imaginário ‒ prova maior de um amor invencível, que deu origem ao mais universal mito português. 

[1] E.  Rodrigues, A Casa de Bragança, Lisboa, Âncora, 2013. As citações saem de Brásio, “Duas notas marginais ao problema do casamento de D. Pedro com D. Inês de Castro”. In: Anais. Academia Portuguesa da História, II série, vol. 12,1962: 97-112.

[2] Gabriel Lobo Laso de la Vega, “Don Pedro I de Portugal y Doña Inés de Castro”, Romancero Español: colección de romances selectos desde el siglo XV hasta nuestros dias, ed. José Bergua, Madrid, 1995:176.


Milagre de Ourique

29 Outubro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

Notas sobre Ourique.


Na indefinição das origens ‒ «Na antemanhã, confuso nada.» (“Viriato”) ‒, «Todo começo é involuntário» (“O Conde D. Henrique”). O fiat genesíaco retorna neste herói «inconsciente», que ergue a espada[1], «e fez-se». O conde (1066-1112), alegado príncipe húngaro (Os Lusíadas, III, 25, 28; VIII, 9), fizera, antes, filhos em D. Teresa (1080-1130), ilegítima de Afonso VI, que aquele ajudara na conquista do reino galego. Nascidos entre 1094 e 1109 ou 1110, somente o último filho sobreviveu, para missão providencial: nele, até 1185, a espada adquire um sentido, ou «A bênção como espada, / A espada como bênção» (“D. Afonso Henriques”). Espada e cruz dão cruzadismo, que (contra A. J. Saraiva) só a partir daqui se justifica. Quem se faz cavaleiro, em vigília doravante «nossa», é «Pai», primeiro; e seus rostos, por mais humanos aqui e ali[2], não obnubilam o de herói; faltava o milagre, para caucionar o futuro: é isso Ourique (25-VII-1139).

Começando, todavia, por São Mamede (24-VI-1128), conviria reconciliar em grandeza mãe e filho, como fazem A. Herculano, n’O Bobo e no tomo I da História de Portugal, e “D. Tareja” pessoana[3], tida por «mãe de reis e avó de impérios», para logo ser anjo protector («Vela por nós!») e «seio augusto» de um agora necessário re-Fundador. A segunda quadra insiste em filho «que, imprevisto, Deus fadou», cedo interlocutores em batalha-chave.

Camões é claro, no longo discurso de treze oitavas dedicadas a Ourique (III, 42-54): face a cem sarracenos, um cavaleiro só confiava «no sumo Deus que o Céu regia» (III, 43: 2). Subitamente, «na Cruz o Filho de Maria, / Amostrando-se a Afonso, o animava» (III, 45: 3-4), o qual faz do Senhor grito e estandarte, senha e companheiro contra os Infiéis (7-8). Nesse ínterim, Afonso é levantado por «Rei natural» (46: 3): «Desbaratado e roto o Mauro Hispano, / Três dias o grão Rei no campo fica. / Aqui pinta no branco escudo ufano, / Que agora esta vitória certifica, / Cinco escudos azuis esclarecidos, / Em sinal destes cinco Reis vencidos. // E nestes cinco escudos pinta os trinta / Dinheiros por que Deus fora vendido, / Escrevendo a memória, em vária tinta, / D’Aquele de Quem foi favorecido. / Em cada um dos cinco, cinco pinta, / Porque assi fica o número comprido, / Contando duas vezes o do meio, / Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.» (III, 53: 3-8; 54) Eis a descrição da bandeira; narrativa mais pormenorizada contém-se, entretanto, na Crónica de Portugal de 1419[4].


[1] A pergunta-indecisão de D. Henrique ‒ «Que farei eu com esta espada?» ‒ é título de filme de João César Monteiro, 1975.

[2] Camões observa que o príncipe soberbo não vê «o muito que erra / Contra Deus, contra o maternal amor;», subsistindo razão superior, que a deita a perder, e justifica rebelião filial contra a «inica [iníqua] mãe» (III, 33: 2): «Mas nela o sensual era maior.» (III, 31: 6-8)

[3] O mesmo Camões, ao falar de mãe que deserda filho, resguarda-se no «velho rumor (não sei se errado, / Que em tanta antiguidade não há certeza)» (III, 29: 1-2). E, se desculpa este pela sensualidade daquela, já não o apoia ao fazê-la prisioneira, «Tanta veneração aos pais se deve!» (III, 33: 8).

[4] Ver Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa, Gradiva, 1988: 163-166. Precede texto de 1416, em latim. 


A batalha de São Mamede

26 Outubro 2020, 17:00 Ernesto José Rodrigues

D. Henrique e D. Teresa.

A primeira batalha da nacionalidade.
Alexandre Herculano,  O Bobo. Diferenças e semelhanças entre 1843, n' O Panorama, e 1878, edição em livro.
A missão providencial de Portugal


A batalha de São Mamede

26 Outubro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

D. Henrique e D. Teresa.

A primeira batalha da nacionalidade.
Alexandre Herculano, O Bobo. Diferenças e semelhanças entre 1843, n' O Panorama, e 1878, edição em livro.
A missão providencial de Portugal


Viriato e Sertório

22 Outubro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

Sejamos, ou não[1], filhos de Viriato [180 a. C.-139 a. C.] e Sertório [126 a. C.-72 a. C.], o mito impôs aquele, defensor da Lusitânia, entre a cava de Viseu (outros dizem Cava da Beira, entre Belmonte e Fundão), recolhido no seu escudo sobre pedra informe, e a afoiteza de estátua em Zamora[2], onde se epigrafa Terror Romanorum, Terror dos Romanos: «É tanta a nobreza de nossa terra e gente, que só ela com seu capitão Viriato pôde lançar os romanos da Espanha e segui-los até à sua Itália.» (Oliveira, p. 41) Seria o primeiro exemplo de Cruzada, vocábulo cujo alcance reduzimos, porém, e revestimos de . A. J. Saraiva (1994: 114) alarga o sentido a «missão providencial»: «O mito dos Lusitanos e o de Viriato como precursores de Portugal e o de Ulisses como fundador de Lisboa são contribuições do saber humanista que se subordinam à ideia central da missão providencial dos Portugueses.» Ainda:

 

O primeiro grande mito colectivo português, que aliás é um mito de toda a Espanha, foi o da Cruzada, fixada eloquentemente por Camões no poema nacional dos Portugueses. Portugal era o paladino da fé católica, e a expansão mundial da Fé era a sua vocação própria, a razão de ser da sua história. Em relação especial com Deus, que o favoreceu desde o nascimento, Portugal realizava um plano divino que culminaria na conversão do mundo inteiro. (p. 112-113)

 

Absorvendo o próprio Quinto Império, a ideia cruzadística teria vigorado até A. Herculano (p. 115). Para quê, nesse caso, intervalar outros mitos? Como se concilia com as guerras santas medievais, com Ceuta ou D. Sebastião, onde estava em causa também a fé, e com a dupla Ulisses e Viriato (não outros?), quando, no máximo, a mentalidade quinhentista lhes atribuía um gesto parcialmente fundador ou defensivo, maxime, autonómico? Já fé e missão providencial no literário Ulisses e no pagão Viriato? Onde tal afirmam os primeiros doutrinadores? Ainda se fossem Noé e Túbal…

Camões etimologiza Viriato de vir, varão, para melhor o individualizar na «fama antiga» já lembrada em I, 26: 1-4 [1]: «Desta o Pastor nasceu que no seu nome / Se vê que de homem forte os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá que dome, / Pois a grande de Roma não se atreve.» (III, 22: 1-5) Dedica a Viriato duas meias oitavas e uma inteira (VIII, 5: 5-8; 6; 7: 1-4), «Vencedor invencibil, afamado», que só «com manha vergonhosa / A vida lhe tiraram» os Romanos, qual é, na sucessão, o «peregrino» (I, 26: 5-8 [7]) e «Degradado» Sertório, alçando-se «contra a pátria irosa» (VIII, 7: 5-8; 8). Vejamos dois casos na prosa[3].

 A “narrativa epo-histórica” Viriato (1904), de Teófilo Braga, visa caracterizar a ‘alma portuguesa’ «desde as incursões dos Celtas e lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar napoleónica», nos seguintes termos:

 

A tenacidade e indomável coragem diante das maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos os meios cósmicos, pondo em evidência o seu génio e acção colonizadora;

Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam às aventuras heróicas, e à idealização efectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;

Capacidade especulativa pronta para a percepção de todas as doutrinas científicas e filosóficas, […];

Um génio estético, sintetizando o ideal moderno da Civilização Ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das línguas vivas.

[…] a ALMA PORTUGUESA achou no seu Poema a incarnação completa. (2008: 5) 

  

A reconstituição poética de um Viriato pouco historiado move Teófilo, lido em Garrett, ao modelo do resistente, em eras de agonia final da monarquia: «as terríveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanização da península até à subserviência inglesa, como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado»; e assume o exotismo como partícipe de uma «fase estética construtiva» (p. 7). Excesso de folclorismo, minudências históricas e largos vocábulos arrevesados prejudicam a fluência.

O pastor, moço de «estatura meã e magra», bem-falante e sensato, apresenta-se como Ouriato (cap. VIII, p. 26), recusando tréguas de submissão a Roma e animando à riposta, embebida em astúcia de quem conhece bem o chão que pisa, desde as alturas dos Montes Hermínios. Por contaminação de outro Viriato, lusitano que acompanhara Aníbal, há-de caber-lhe este nome no acto da aclamação: «[…] dizem que morrera na batalha de Canas; mas o seu ódio não morreu, é redivivo. E porventura não será Viriato o que agora reaparece na figura do maioral da mesta, do valente Ouriato? Como ele, é um salvador que ressurge, um vingador da liberdade da Lusitânia?» (p. 27-28) Depressa o caudilho conquista a região entre Tagus e Anas. Num repouso em Toletum, o «príncipe da Lusitânia» (p. 38) é dignificado pelo sábio Idevor com um colar de ouro, ou víria (no cap. XVI, temos “A canção da víria”), com que se justifica definitivamente o nome. Sucedem correrias e vitórias:

 

A Guerra dos ladrões, como chamavam em Roma à luta heróica de um povo defendendo o seu território, os seus lares, a própria existência, prolongava-se com desastres sucessivos para as armas sempre ufanas dos quirites. Os bárbaros do Ocidente eram exemplo de dignidade cívica e de altura moral para o povo-rei que se arrogava à supremacia da civilização. (p. 72)

 

O procônsul Caio Lélio retratou a Lusitânia junto do senado como a «mais poderosa das nações hispânicas», cuja força não vem «do número dos seus habitantes, mas da sua resistência devida a um temperamento tenaz e incansável, a uma dignidade individual que antes prefere a morte a qualquer aparência de escravidão» (p. 73). A espada romana de pouco serve contra a espada Portus-Gaizus, quando um chefe é invencível; explica (num devaneio sebástico teofiliano) e dá solução:

 

Corria por aqui entre as tribos da Lusónia que apareceria um guerreiro montado em um cavalo branco, e que ele conseguiria repelir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriato como a realização dessa velha profecia, […]. Morto este chefe, dissolver-se-á a Lusitânia; porque esse profundo sentimento de raça e de pátria que anima as tribos lusas carece de uma representação que as identifique. (p. 74)

 

Teófilo fazia a sua propaganda intra-republicana… E chega a vez de Lísia ‒ nome não de acaso, pois sugere Lusíadas ‒, «a filha do velho endre» Idevor (p. 78), que fascina Viriato. Entre um tratado de paz enfim aceite por Roma vergada a década de derrotas e o casamento celebrado pela Lusitânia e Celtibéria na Cava de Viriato, já, porém, a traição entrava de roer os próximos, que perdiam favores de exército licenciado… A meio da festa noival, sabe-se que o tratado de Serviliano foi quebrado, pois o irmão procônsul Quinto Servílio Cépio avança com tropas. Mas o sétimo comandante tem outra estratégia: convencer três renegados a apunhá-lo durante o sono ‒ o que cumpre o maior amigo, Minouro. 

Também exótico em nomes (e nem todos comparecem nas “Notas” finais), prosa frouxa, diálogos à moderna, uso inesperado de «camarada», uso excessivo de «porém», A Voz dos Deuses. Memórias de Um Companheiro de Armas de Viriato (1984)[7], de João Aguiar, dá-nos o filho de Comínio no final do cap. VI, descrito na segunda de três partes pelo jovem narrador Tongio, aos 15 anos ‒ como encerra a história aos 25 anos, não se percebe a acção entre 84 e 79 a. C., quando Sertório recebe este livro, escrito «na língua do invasor» (p. 280) ‒, com vírias de bronze cingindo-lhe os braços e «três grandes plumas vermelhas que enfeitavam o seu capacete» (p. 107). Transformam-se, na aclamação, em vírias de ouro, «símbolo do comando supremo» (p. 147), das quais tirava o nome. Mulher de Viriato (cujo defeito era demorar-se a decidir) é, aqui, Tangina, filha de um útil Astolpas.

Tongio reconhece-o herói, não deus, e releva «verdadeiros prodígios de estratégia, diplomacia e eloquência» (p. 198). O trio tredo passa de Ditálcon, Andaca, Minouro a Ditalco, Audax, Minuro: seria preferível Dictaleão, Aulaces, Minuro, os quais emissários (não companheiros de armas), acreditando Servílio Cipião, quando buscam prémio, são executados e publicamente expostos com os dizeres: «Roma traditoribus non praemiat (Roma não paga a traidores)»; o fidelíssimo Tântalo vira Táutalo; em vez de peito sangrado, temos decapitação (147-139 a. C.).

Ocupando André de Resende, Aires Barbosa, Pedro Margalho, Damião de Góis, etc., veio desaguar em Miguel Torga, que faz de Viriato um herói dos Poemas Ibéricos (1965): «O meu nome de ibero é Viriato» ‒ sem o alcance de Pessoa. Após Ulisses, o “Viriato” da Mensagem é assunção da «raça» em tonalidades crísticas: há reencarnação, ressurreição, um Portugal que dele tira «instinto» e se forma (a gradação desce de nação a povo e herói interpelado) ‒ dele, ou daquele «de que eras a haste», seja, Cristo. Impõe-se, assim, «antemanhã, confuso nada» (a clarear) de providencialismo também pessoano; e a necessidade de justificar quem nos cria memória. 

Sertório é mais historiável e menos literário: ver Os Lusíadas, I, 26: 3; VIII: 5: 5-8 e seguintes, até 8: 8, citando nome. Um inesperado Janus Pannonius (1434-1472; 1987: 336), bispo húngaro, lembra-o nos versos 63-64 de uma bela elegia à morte da mãe Bárbara, “Threnos de morte Barbarae matris”:

 

Fugerat Hesperium Sertorius exul in orbem,

         Plurima sed profugo cura parentis erat.

 

[Quando, perseguido, Sertório se refugiu na Hespéria,

Só com os pais se preocupava no exílio.]

 

Pierre Corneille dedicou-lhe uma peça, Sertorius (1662), acrescentando duas mulheres da sua imaginação, a segunda das quais, Viriate, «reine de Lusitanie, à présent Portugal», tem esta justificação, no introdutório “Au lecteur”:

 

L'autre femme est une pure idée de mon esprit mais qui ne laisse pas d'avoir aussi quelque fondement dans l’histoire. Elle nous apprend que les Lusitaniens appelèrent Sertorius d’Afrique, pour être leur chef contre le parti de Sylla; mais elle ne nous dit point s’ils étaient en République, ou sous une monarchie. Il n’y a donc rien qui répugne à leur donner une reine, et je ne la pouvais faire sortir d’un sang plus considérable, que celui de Viriatus dont je lui fait porter le nom, le plus grand homme que l’Espagne ait opposé aux Romains, et le dernier qui leur a fait tête dans ces provinces avant Sertorius. Il n’était pas roi en effet, mais il en avait toute l'autorité, et les princes et consuls que Rome envoya pour le combattre, et qu’il défit souvent, l’estimèrent assez pour faire des traités de paix avec lui, comme avec un souverain et juste ennemi. Sa mort arriva soixante et huit ans avant celle que je traite; de sorte qu’il aurait pu être aïeul ou bisaïeul de cette reine que je fait parler ici. 


[1] Herculano nega essa continuidade entre lusitanos e portugueses, debate prosseguido em Oliveira Martins, Adolfo Coelho, Martins Sarmento, José Leite de Vasconcelos, António Sérgio. De título de jornal e ópera aos pró-franquistas na guerra civil espanhola, Os Viriatos, trata-se de imagem impositiva.

[2] Bronze de Eduardo Barrón Gonzalez, 1883, inaugurada em 1904, deslocada da praça central em 1971. Além de figuração no escudo de Zamora, o tecto do salão da Diputación mostra pintura de Viriato, de Ramón Padró y Pedret, 1882. No Museo del Prado, temos A Morte de Viriato, de José de Medrazo, 1807. É funda a presença do herói no imaginário popular em Zamora, Sayago, etc.

[3] Assinale-se da “Conclusão” de Moniz (2008: 247-265) sobre Viriato Trágico, de Brás Garcia de Mascarenhas: «Incentivo pedagógico aos seus contemporâneos, tal poema transcende, no entanto, a sua época, para se inscrever na matriz identitária das nações hispânicas, designadamente da Lusitânia, cujo território abrange hoje a quase totalidade de Portugal.

Herói épico e trágico, Viriato, tal como é configurado neste poema, brilha novamente hoje como um estóico exemplum do integer uir, do dedicado cidadão que consagra toda a sua vida ao serviço da comunidade que ama e é, por isso, apontado como padrão ilustrativo das maiores virtudes, como a fides, a paupertas, a libertas, a grauitas, a concordia, a clementia, a liberalitas, a auctoritas, a gloria.» (p. 264)