Sumários

Aula em falta.

10 Outubro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A aula não foi ministrada por coincidir com a abertura da exposição OS RETRATOS DOS MESES DA SÉ DE MIRANDA DO DOURO, UMA RARA ALWGORIA PINTADA EM ANUÉRPIAS COM PIETER BALTEN, no Museu das Terras de Miranda, coordenada pelo docente como comissário da exposição.



D. Manuel, o Venturoso, e a imagem do poder manuelino: arte e arquitectura ao serviço de uma estratégia.

7 Outubro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A dinastia de Avis-Beja e o papel de D. Manuel I. O Tardo-Gótico na arquitectura portuguesa e ultramarina: do fenómeno do gótico-manuelino ao ‘modo antigo’. Humanismo, Proto-Renascimento e Classicismo na construção portuguesa e ultramarina. Os poderes laicos e as Ordens religiosas: a importância da Ordem de São Jerónimo. A corte do Renascimento com D. Manuel I e D. João III: o papel dos literati, a antichità, o gosto artístico ao romano, o novo mecenato e o peso da cultura cristocêntrica, os movimentos da Devotio Moderna e da Ars moriendi. Cultura artística e antropocentrismo. Matematização do mundo. A ciência e o rigor da forma geométrica. A caligrafia e a iluminura. Importações de arte e mão-de-obra estrangeira. Arquitectura renascentista ‘ao italiano’: João de Castilho, Miguel de Arruda, Diogo de Torralva. Tomar, Évora, Coimbra, centros ‘ao romano’. O fascínio das ‘rovine’ e o culto da Antiguidade.  A escultura: a vinda de Nicolau de Chanterene e a sua obra. João de Ruão e o ‘ciclo do calcáreo’ em Coimbra. Os barristas: Felipe Odarte. Francisco Loreto e os escultores franceses. A pintura e as demais artes da Flandres e da Itália: dois polos interpretativos de um ‘tempo’. O pintor Francisco Henriques, a «oficina do Espinheiro» e o chamado Mestre da Lourinhã. A pintura manuelino-joanina: Jorge Afonso e a ‘oficina régia de Lisboa’. Gregório Lopes e os ‘mestres de Ferreirim’. Vasco Fernandes, o Grão Vasco. As oficinas regionais (Viseu, Viana do Castilho, Évora). Pintar como exercício científico e intelectual: a apreensão da terceira dimensão e da perspectiva aérea


Uma ficha analítico-descritiva como explanação de análise de obra de arte.

3 Outubro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Tomamos como exemplo de ficha analítico-descritiva de obra de arte uma tela do século XVII que representa TRÓIA ABRASADA COM ENEIAS E ANQUISES, da autoria de Diogo Pereira, um pintor do século XVII que, pela sua irreverência e desalinhamento, bem pode considerar-se ainda como um expoente do Maneirismo 'foras do tempo'. No contexto da pintura portuguesa do tempo da Restauração, é deveras singular a personalidade de Diogo Pereira, o nosso único «pintor de incêndios e catástrofes» do século XVII, o que o torna equiparável a nomes ilustres como o napolitano Cornelio Brusco, o lorenense Didier Barra (chamado Monsù Desiderio) ou o nórdico Brueghel de Velours. Bem integrado entre os destaques portugueses do seu tempo (José de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos), a sua produção conhecida situa-se entre 1630 e 1658 e mereceu dos seus contemporâneos, e de autores sequenciais (Félix da Costa Meesen, Pietro Guarienti), rasgados elogios pela sua operosidade num ‘género’ de pintura de temática trágica, então muito valorizado, onde episódios clássicos como Tróia abrasada (Eneias e Anquises), ou cenas vetero-testamentárias como Incêndio de Sodoma e Gomorra, contracenam com temas sacros, naturezas-mortas, bambochatas, cenas a la candela ou lume di vela, dentro da boa tradição barroca napolitana. Pintor de sucesso, que ocupa cargos importantes no seio da Irmandade de São Lucas, Diogo Pereira trabalhou principalmente para um mercado predilecto, as colecções dos conspiradores de 1640 e demais possidentes do novo regime. Eram estes quem lhe encomendava quadros com o tema de Tróia abrasada, muito popularizado nos círculos restauracionistas pela sua simbologia ligada a uma parenética nacionalista de combate anti-castelhano, onde a figura de Eneias, o príncipe troiano, se identificava com os atributos e valências de D. João IV, espécie de novo Eneias libertador do seu povo. 

Analisa-se a tela, comparando-a com outras representações do mesmo tema em Portugal, Itália, Espanha e Flandres, e outras obras de Pereira, a fim de perceber melhor o que a obra significou e significa, O artista pintou dezenas de quadros com este assunto, em tela, em cobre e, mais raramente, em madeira. O painel, executado nos anos de 1640-1650, tal como outros com destino a clientes que inequivocamente se identificavam com o espírito restauracionista e a militância pró-brigantina, tem inequívoco carácter político e parenético. Mostra as qualidades plásticas do artista, o seu gosto por uma linguagem de abertura ao fantástico na cenografia das arquitecturas e dos ambientes (ainda que mostre certa dureza de desenho de figuras, inspiradas sempre em fontes gravadas italo-flamengas), e a desenvoltura do discurso parenético que lhe grangeou sucesso no panorama artístico português de Seiscentos. Após o natural apagamento que o século XIX trará por este tipo de pintura, a obra de Pereira tem sido justamente revalorizada nos últims anos, sobretudo depois da grande exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris, 2001), que mostrou, devidamente restaurados, uma dezena de peças deste artista – caso único, a nível nacional, por um género de pintura de caprichos e catástrofes muito apreciado pelas circunstâncias de um tempo de crise como foram os anos de guerra do Portugal Restaurado.

A análise global e comparatista da peças -- da fortunas Histórica à Fortuna Estética, passando pela Fortuna Crítica -- permite perceber melhor o sentido da pintura e a sua importância histórica, artística, iconográfica, iconológica e estética.

 

 


A Liberalidade: o novo estatuto social dos artistas no Renascimento português.

30 Setembro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A reivindicação de uma melhor dimensão estatutária por parte dos artistas portugueses, à luz daquilo que na Itália renascentista se entendia por liberalità e nobiltà, tem sido matéria privilegiada de estudos no contexto do Humanismo. Verifica-se que a influência do tratadismo, as viagens a Roma e Antuérpia, e os debates no seio dos studia humanitatis abriram campo, nos reinados de D. Manuel I e de D. João III, para que os pintores, escultores, iluminadores, ourives, arquitectos e outros artistas se consciencializassem do seu dever de reclamar um estatuto social de privilégio, dada a «antiguidade» e «nobreza» das artes que praticavam e a exemplo do que noutros reinos já se reconhecia. Estudam-se na paisagem portuguesa casos de auto-retratos (Vasco Fernandes), de pleitos entre artistas e clientes (João de Ruão, Diogo de Contreiras), de debates no seio de estruturas corporativas (saída da Bandeira de São Jorge), de afirmação individual da liberalidade (João de Castilho, Chanterene, Gregório Lopes), de reivindicação de cargos (Cristóvão de Figueiredo), e até de defesa de segredos da arte (Reimão d'Armas). O tempo do Renascimento foi rico, em Portugal, destes e outros sintomas de que os melhores artistas não olhavam a meios para afirmar a sua identidade criadora e obter a emancipação da sua classe. 


Lisboa, cidade global no Renascimento.

26 Setembro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


LISBOA, 'UMBILICUS MUNDI' : IMAGENS DE LISBOA NA PINTURA DOS SÉCULOS XVI E XVII, ‘ÉPOCA DE OURO’ DA CULTURA  ARTÍSTICA PORTUGUESA.

A Lisboa do século XVI tendeu a abandonar a imagem de cidade medieval, o seu urbanismo sinuoso ao longo de sete colinas e oseu carácter desalinhado, e assume-se como uma grandiosa metrópole da pimenta, uma rota comercial onde acorrem povos de todas as origens. Segundo a saudosa olisipógrafa Dra Irisalva Moita (Lisboa Quinhentista, CML, 1983), a multidão da «nações» concentrada na zona portuária (na Praça do Pelourinho e na Ribeira Velha) incluía «flamengos, castelhanos, galegos, andaluzes, alemães, florentinos, genoveses empregados nas artes da marinharia, nas operações cambiais e nos ofícios mecânicos, a par de escravos africanos, berberes, índios de diversas origens, e muitos indigentes»…

… «uma mancha exótica constituída por negros da Guiné, semi-nus, andrajosos, índios, chineses, berberescos, lado a lado com regateiras brigonas e marítimos de linguagem afiada labutando em promiscuidade na zona da Ribeira das Naus, nas fundições, enfarruscados na fuligem das bigornas, o que dava ao local um aspecto de paisagem do outro mundo ou antro de Vulcano, como já a classificara Jerónimo Munzer no seu Itinerario de 1494». Esta capital mercantil que se abre a colónias de estrangeiros, que abandona o velho facies medievalizante e começa a assumir novas dinâmicas de desenvolvimento, respira vida e não deixa indiferentes quem regularmente a visita e a descreve em cores exóticas. Os relatos de Francesco di Marchi (Narratione Particolare, de 1566), de Giovan Battista Venturino (Viaggio del Cardinal Alessandrino, de 1571) e do padre jesuíta Duarte de Sande (Diário,  de 1584), entre muitos outros, dão conta de uma Lisboa cheia de colorido e de carácter cosmopolita que no reinado de D. Sebastião chega a atingir cerca de 150 mil habitantes. A Lisboa do século XVI assimila uma imagem de cidade medieval com o seu urbanismo sinuoso ao longo das sete colinas e um carácter desalinhado, e de uma cidade que se miscigena, à imagem de metrópole da pimenta e rota comercial onde acorrem povos de todas as origens. 

No século XVI, a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, era uma pequena babel. Aí moravam italianos, flamengos, andaluzes, portugueses, cristãos-novos, judeus estrangeiros, escravos vindos de vinte nações africanas, e escravos árabes. Faziam-se trocas comerciais. Esta realidade é trazida pelo livro The global city. On the streets of the Renaissance Lisbon (A Cidade Global . Nas Ruas da Lisboa Renascentista), obra das historiadoras Annemarie Jordan Gschwend, do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, e Kate Lowe, da Universidade Queen Mary de Londres. A obra estuda dois quadros descobertos em 2009 numa mansão inglesa em Oxfordshire, de cª 1570-1620, obra de artista holandês. Vemos mais de uma centena de figuras que conversam, montam a cavalo, numa rua com uma fileira de edifícios. Há homens, mulheres, negros, brancos, cavalos, movimento e vestes apropriadas ao Outono ou ao Inverno. Lisboa tinha uma vasta população negra. O quadro mostra também os estrangeiros que ajudaram Lisboa a tornar-se uma grande cidade comercial. Também se mostram animais, um cão que abocanha uma ave, e um peru, ave que veio da América e que os portugueses tornaram numa ave global, levando-a para a Índia e outras partes do mundo. A  Rua Nova dos Mercadores media 286 m de comprido e 8,8 de altura, e ficava atrás do que hoje é o Terreiro do Paço, entre o início da Rua do Ouro e a dos Fanqueiros, onde hoje é a Rua do Comércio; vê-se é a fileira de edifícios que estão do lado do Tejo. Atrás destes, a Rua da Confeitaria e mais atrás o Terreiro do Paço e o Tejo. À esquerda vê-se o largo do Pelourinho Velho. Quarenta e cinco edifícios distribuíam-se de cada lado, com ocupação múltipla e três a seis andares. A cerca de ferro dava nome à Rua Nova dos Ferros, parte oriental da Rua Nova dos Mercadores. Dentro desta cerca, os comerciantes, lojistas e banqueiros tinham espaço semiprivado para conduzirem negócios. O artista mostra a interacção social que testemunhou – a concentração de mercadores ricos vestidos ao estilo espanhol com capas pretas, separados dos habitantes que ficam fora da cerca.

Os precursores da Olisipografia são o fidalgo João Brandão (Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa, 1552), o padre Cristóvão Rodrigues de Oliveira (Summario, em que se contem algumas cousas assim ecclesiasticas, como seculares, que ha na cidade de Lisboa, 1554),  o humanista Damião de Góis (Urbis Olisiponis descriptio, Évora, 1554) e o arquitecto Francisco de Holanda (Da Fabrica que Faleçe à Cidade de Lixboa, 1571); que reúnem o mais fidedigno que se escreveu sobre as vivências da capital portuguesa nesses «anos dourados» do século XVI.

Não há que esquecer a literatura de viagens, onde surgem páginas de colorida descrição de Lisboa em Francesco di Marchi (Narratione Particolare, 1566) e Giovan Battista Venturino (Viaggio del Cardinal Alessandrino, 1571), entre outros, e a Primeira Parte das Antiguidades da Mui Nobre Cidade de Lisboa, por António Coelho Gasco (1619) e o Livro da Grandeza de Lisboa de Frei Nicolau de Oliveira (1620) e ainda a informação memorialística de Pedro Rodrigues Soares, um autor sebastianista que registou as vivências da cidade entre 1565 e 1628, deixando longo testemunho dos tempos anteriores à crise dinástica.

É o cruzamento do testemunho da Olisipografia com as imagens em pinturas, desenhos, iluminuras e gravuras, e o que remanesce da antiga Lisboa em termos histórico-artísticos, que permite imaginar essa cidade cosmopolita, vista ao tempo como verdadeiro ‘umbilicus mundi’  pelo exotismo das gentes e a frenética actividade mercantil…No tempo de Damião de Góis, à data do seu livro Olisipo Urbis Descriptio, de 1554, a cidade mostrava sinais de modernidade a acompanhar essa marca de empório cosmopolita. A cidade des-medializava-se, surgiam novas zonas (o Bairro Alto, bairro por excelência de nobres, mareantes e artistas), e seguia (como bem notou Hélder Carita) segundo as novas dinâmicas abertas pelo almoxarife António Carneiro, que tornavam Lisboa uma grande urbe europeia, onde muitos estrangeiros se tinham fixado e os circuitos de mercado se revigoravam. A arte requintada e erudita do pintor régio de D. João III tem boa expressão nos fundos pintados com arquitectura clássica, onde Gregório Lopes se deleita a tratar (ao gosto da construção renascentista como a de João de Castilho) as logge, balcões, varandas, arcadas e galerias de colunas de ordem jónica ou coríntia, que entretanto se iam imiscuindo no gosto da obra pública e privada da Lisboa joanina, centro cosmopolita por excelência.