Sumários

Elementos fundamentais da cultura portuguesa

27 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de Jorge Dias, devem ser vistos, antes de mais, no quadro do Estado Novo ‒ representativo de um I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Washington, 1950), enquanto retrato antigo, mas não menos polémico e fecundo.

Desde os nossos primórdios, onde quer que os situemos – na Antiguidade, com suas colónias de fenícios, normandos, celtas, romanos, até aos suevos, visigodos e árabes –, a influência do exterior é inegável e criadora de antinomias. Propiciando diversidade cultural, aquela alargou-se em conquistas políticas descendo do Norte celta e germânico ao Sul mediterrânico e berbere; com a crescente maritimização, e sucessiva litoralização do país, soltou-se para uma diversidade geográfica global que ainda hoje nos interpela. A Expansão descobre, acha, encontra e, tolerante, no seu espírito mercuriano, aproxima a «gente ousada» camoniana (V, 41): «[…] Portugal é menos um país do que um povo em movimento, pois que aquilo que melhor o define é a Expansão. É essa a palavra-chave, sem a qual nunca se chegará a compreender a alma portuguesa. (Oliveira, 1944: 136) Quais os traços de personalidade daí decorrentes?

O Português é, primeiro, um «misto de sonhador e de homem de acção» – tanto cabe D. Sebastião como acreditar em jogos de azar; o que E. Lourenço contesta –, devotado a uma cultura de idealismo, emoção – com predomínio «sobre a paixão» (F. Pessoa, 1979) –, de imaginação – com predomínio «sobre a inteligência» (F. Pessoa, 1979), sem reflexão, donde, ausência de filósofos, místicos (mas não de espiritualidade, acrescente-se) e pensamento abstracto. Os gramáticos e doutrinadores dos séculos XVI-XVII elogiavam este tipo de pensamento; quanto a filósofos, muito boa gente discorda…

O desprezo do mesquinho, utilitarismo e conforto não obnubila o prazer da ostentação, seja riqueza ou luxo. Com temperaturas amenas, o interior das nossas casas é mais frio e desconfortável do que em regiões polares; o querer parecer vai de um consumismo inconsciente ao risco de se endividar ou aumentar o malparado bancário só por um capricho ou indissimulada vaidade. Somos, diria E. Lourenço (1978), pobres com mentalidade de ricos, vivendo, indivíduos e Estado, acima das posses, sem esconder a humildade do subalterno e resignado, do indiferente e pouco amável, caracterização que Jorge Dias esquiva. 

Afectivo, de sentimento à flor da pele (e não acima da razão, se esta há muito foi ofuscada), o Português derrete-se, coração aberto, em bondade, empatia – «aquela capacidade franciscana, que Gilberto Freyre atribui aos portugueses, de amarem todas as coisas […]» (Oliveira, 1944: 31) – e, dirá o século XVII espanhol, ‘amorosidad’. Os exemplos fuzilam, desde a lírica medieval; e mesmo a tourada sem sangue na arena é mostra de afectividade. (Hoje, esta conversa fiava mais fino.) Não se nos chegue, todavia, a mostarda ao nariz; e, se crime existe, é passional, não vampírico, nem canibal ou com outras modulações.

A religiosidade vai pouco além da fachada milagreira, e, como a ermida singela ou igreja de porte, é simples, tranquila, acolhedora. Algum «panteísmo sentimental» quase só nos Jerónimos.

A adaptabilidade («instintiva», diz F. Pessoa [1979]) e capacidade assimilatória será duplo traço logo reconhecível, também em E. Lourenço (1988: 14; ainda assim, cria a nuance de «aparência de ductilidade»), que os malévolos reduzem a imitação, sendo certo que, desde o ombro estrangeiro originário, o macaqueio é grave infiltração: para E. Lourenço, «somos um país fascinado em grau patológico pelo estrangeiro» (1976: 23), o que conduz a «uma descentragem permanente […] da nossa própria realidade» (p. 77). Fidelino de Figueiredo ( Últimas Aventuras, cit. em Oliveira, 1944: 163) é duro, a esse respeito: «Somos vaidosos como indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estamos sempre prontos a declarar-nos inferiores como nacionais, pois que expontâneamente reconhecemos precisar das lições do Estrangeiro, ao contrário dos espanhois, que só na Espanha se inspiram.» A imitação, ainda que fosse poliglota, não enquadraria a tolerância bem entendida [1] ou os efeitos e frutos da miscigenação. Há adopção e adaptação, mas não é por isso que se é «cosmopolita». 

[1] Não a moleza da democracia, de um consensualismo formal, preguiçoso, quando não forçado. «“O país de Herculano” não é outra coisa do que aquele onde a tolerância, sem ser uma atitude espiritual e nata, que nunca o foi, em parte alguma, é, como a boa educação na ordem privada, uma forma interiorizada do respeito do outro como ser pensante e livre. Por motivos históricos e, sobretudo, por contingências culturais que Herculano explicou melhor do que ninguém, […] Portugal, mesmo o da “antiga liberdade lusitana”, não foi precisamente um país de tolerância.» Eduardo Lourenço, “O país de Herculano”, Público (Lisboa), 3-IX-1993. M. Duarte Mathias (1980), após um traço do português como «verdadeiro poliglota do sentimento», questiona: «A tão apregoada tolerância do Português não resultará afinal da sua falta de convicções? (Com efeito, para o incrédulo, por definição, não há hereges.)» Também pode ser expectativa de uma reciprocidade, salvaguarda, defesa, prevenção, e tudo isso, acrescenta Mathias, que denota fraqueza.


Portugal-Espanha, segundo Francisco da Cunha Leão

25 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Tais características da nossa ‘personalidade cultural’ são mais precisas, quiçá, do que as entrevistas em Jorge Dias (21985), já menos encantado do que Francisco da Cunha Leão (21973). Vejamos este, primeiro, sem entrar no nada operativo «esboço de corografia espiritual», em que filtra cada região do país (cap. IX).

 

Sendo o Português «síntese de lusitano e galaico, um luso-galego e só metaforicamente lusitano», extrai, daquele, «A idealidade sonhadora, a contextura sentimental branda, mas rica em tonalidades e teimosia surda, o fundo instável de inquietação, a mundi-visão saudosa, o pathos da alma portuguesa»; e, deste, «o espírito realista, de organização jurídica e independência pessoal, o talento político, a afirmação intrépida» (p. 114). Bom era que esta segunda parte se confirmasse… Após recurso a Oliveira Martins, Moniz Barreto, António Sardinha, João de Castro Osório e Jorge Dias, o capítulo oitavo, “A diferenciação psicológica” (em relação a Castela), motiva um ‘quadro comparativo’ (p. 142-143) em 11 pontos e respectivo ‘desenvolvimento dos modos de comportamento’ (p. 144-187). Estes ‘modos’ lusíadas seriam (p. 143):

 

1. Religiosidade mediata, através da natureza e da Saudade, e pelo amor às criaturas. Franciscanismo.

2. Homem como estado de alma. Tendência para o sonho. Desigualdade temperamental; ledícia e dor de viver.

3. Sensibilidade à natureza vista animadamente, e ao mistério. Naturalismo transcendente e saudosista.

4. Vida-afirmação pelo sentimento e assimilação humana. Gosto da aventura. Espírito de missão.

5. Amor-adoração. Supervivência amorosa. Carácter absorvente, complexo. Insegurança, queixa, transcendência.

6. Ironia sentimental. Agudeza ao ridículo. Realismo emotivo e crítico.

7. Solidariedade pela comunhão dos afectos e transmissão do sangue. Coesão pela Saudade.

8. Resistência à adversidade pela esperança e crença nos imponderáveis. Sebastianismo. Desespero confinadamente individual.

9. Sentido das cambiantes e das sombras. Hesitação alternada com o ímpeto e heroísmo das execuções supremas, geralmente ponderadas, amadurecidas.

10. Interesse pelo exótico.

11. Teimosia surda, aquosa. Plasticidade. Antinomias profundas.    

 

Nem místico, nem militante religioso (daí, algum anticlericalismo), o Português entra no sobrenatural por um «maravilhoso naturalista» reflectido em «maravilhoso cristão» (p. 145), e por segunda intermediação, a saudade, provinda «da distância a que o homem se sente de Deus», em «angústia pela degradação humana, pelo paraíso perdido» (p. 144). Esta angústia parece excessiva, pois releva da emoção, de uma sentimentalidade que se pendura no sonho, no «desejo absurdo de sofrer» (Cesário Verde; cursivo meu). Se pungente, é-o na expressão literária, desde as interjectivas «Ai, eu, coitada» ao casamento entre mágoa e ironia, que leva Unamuno a ver-nos como um povo «que no sabe sino llorar o burlarse» (p. 153), longe, portanto, de quaisquer «antinomias profundas» e de um conceito sério de angústia.


Personalidade cultural portuguesa (refundição de culturaport.blogs.sapo.pt)

20 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

António José Saraiva serve-se de índices «relativamente consistentes», em que também funda estes Escritos sobre o Tempo Que Passa do subtítulo: factos históricos significativos nos séculos XVI e XX; jogos com a língua e sua manipulação; instituições, algumas reduzidas a siglas hoje custosamente entendíveis, e tendências sociais; observações de estrangeiros e de portugueses; documentos contrastantes «de costumes e mentalidades» (p. 78); enfim, literatura e artes, reflexões sobre Autor e Escritor, ou dedicadas à Verdade.

Geografia, história e língua favoreceram um Estado-nação homogéneo e coeso (monolítico, mesmo), opondo-se, desde as origens, à maciça Castela e à mourama. A geografia, complementando Norte e Sul, intercambiando valores, oceaniza-se. As diferenças económicas e climáticas «nunca foram bastante acentuadas para criarem pólos de poder ou de irradiação cultural» (p. 80). Têm-se sucedido, quando não coexistido, topografias centrípetas, desde Guimarães e Coimbra: Lisboa nem tudo absorve − a força das capitais é contrabalançada por outros núcleos −, sendo inquestionável a sua excelente colocação ibérica, que os Filipes desaproveitaram.

Decidida a independência em Aljubarrota, urgia sustentá-la economicamente: Ceuta fez-se, por isso, «aventura fora da Península». Em O Crepúsculo da Idade Média em Portugal (1988), Saraiva vê Ceuta como primeiro passo na retaguarda guerreira que constituíam as descobertas, face à ameaça turca, antes de estas serem olhadas como mercantis.

No que ele define como consequência − «um certo sentimento de isolamento, porque, entre a Europa e Portugal, Castela tem funcionado como um deserto isolador […]» (p. 81) −, leio eu um pressuposto, ou condição para outros voos. Discorre, então, sobre as características dessa ‘personalidade cultural’, via-sacra que justifica atitudes e opções combatidas em Filhos de Saturno.

Habita-nos, desde logo, um espírito de ilhéu, «oscilando entre a aventura fora e a passividade dentro, ou ainda vivendo a aventura pela imaginação, sem sair do mesmo lugar». O português inferioriza-se, «refugiando-se numa auto-ironia perfurante, como a de Eça de Queirós, ou numa autocrítica flageladora da sua própria história, como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desafiar o mundo ou para o conduzir, […].» (p. 82) Estamos perante um humor entre a chacota e a auto-ironia de Zé Povinho, que, a espaços, de si mesmo se condói, na lucidez que faltava aos fidalgarrões de Seiscentos verberados por Tomé Pinheiro da Veiga, em Fastigínia (1605), obra que recusa, porém, aquela inferioridade. Num arrasador «Panegírico do oportunista»[1] após o 28 de Setembro de 1974, a verve vira sarcasmo: não só lamenta o passivo e resignado, como alerta para o oportunista competente e talentoso em tempos de viragem…

Ao messianismo, crente num destino providencial, associa-se o complexo da saudade, por sua vez, ligado ao amor «à portuguesa, que parece comprazer-se na distanciação» (p. 84). Não me parece: a distância é inelutável, João Zorro traz, mesmo, suidade[2], traduzindo-se em coita[3] – cuja enunciação pode envolver comprazimento, ou significar culto da dor, esse «gosto de ser triste» (p. 86), que perpassa no fado −, mas, ainda na morte, amor deseja-se à beira, como nos túmulos de Pedro e Inês, ou no noivado sepulcral de Soares de Passos. Em Filhos de Saturno, a variante sebástica sai zombada; os messianismos políticos, seja no molde estalinista, em estruturas partidárias, personalizados em Álvaro Cunhal ou Mário Soares, não merecem confiança. A Constituição de 1976 é outro fantasma, que um referendo (reiterada paixão do autor) poderia ter exorcizado[4]. Quatro décadas depois, impõe-se que os deputados e refundadores do sistema eleitoral conheçam estes textos.

Demos cursivo a outros traços nacionais. A obliquidade das relações transfere o tratamento binário tu / vós para um sistema ternário, «um tratamento oblíquo na terceira pessoa (usando o nome do interlocutor, o que parece ser uma maneira de evitar o frente-a-frente; ou o você de amizade, […]», quando não outros, acrescentemos: o senhor, o pai, etc. Nego, pois, que não haja equivalente a Monsieur, como Saraiva diz, para «interpelar alguém fora da sua intimidade» (p. 85). O supracitado humor agre e auto-irónico «É talvez uma forma de protesto também oblíqua, uma compensação do sentimento de inferioridade colectiva, tão frequente em Portugal» (p. 86), «subalternidade» que Eduardo Lourenço (72010: 27) situou nos 60 anos de dominação filipina. “Cravo de Maio flor da liberdade” (texto 3) é a expressão de que, «sem Messias», almejamos ser LIVRES, maiúsculas reiteradas como só veremos em DESCENTRALIZAÇÃO, ao defender, ainda em Maio, “Eleições” locais ou parciais (autárquicas, sindicais, empresariais; texto 2). 

A doce, dorida religiosidade, sem a veemência castelhana, revê-se no culto de Maria («que tem sem dúvida raízes psicanalíticas», 32007: 88), tão presente no onomástico, e no culto dos mortos. Mas nem estes nos criam interesse pela filosofia (aliás, nem pela teologia), nem aquela religiosidade pelo misticismo: graduamo-nos em história pátria, na aguda consciência nacional, limitados a uma historiografia que favorece «um contemplativismo passadista, uma procura da idade do ouro no passado – uma forma, afinal, de saudosismo» (p. 90). É um parágrafo não desenvolvido em Filhos de Saturno, que só compara “Cristianismo e Marxismo” (texto 50) ‒ muito pouco, na conjuntura de 1979, e mais em 1975, quando os púlpitos do Norte colaboraram no incêndio de vidas, automóveis, sedes partidárias, como se fosse entendimento do Céu danar aos bens das esquerdas…

O aldeanismo – a aldeia na corte – é uma velha guerra contra a cidade e o aristocrático, na arte ou na escala social. Poderia significar democraticidade, mas virou ilusão; ser conúbio de estratos (popular e erudito), mas fez-se demagogia, impotência. A cantiga de amigo deslustrava o provençal; nacionalizou-se, porém, a redondilha; e, aclamados bastos poetas fáceis, a indigência cresceu, como nas letras do fado, na langue de bois partidária, no cada vez mais pobre discurso familiar. A ficção pós-camiliana ressente-se de luta surda: na falta de espaços citadinos com vida própria, recorre a modelo estrangeiro. A linguagem vê-se no fio, gasta, serva, instrumentalizada; e, pedagógico, explicador de palavras para entender as coisas, iluminando os valores do signo, Saraiva faz profilaxia etimológica, semântica e moral. É uma das suas especialidades, ou não fosse autor do Dicionário Crítico de Algumas Ideias e Palavras Correntes[5]

Aquela estrangeirização tem implicações socioeconómicas, na ausência do espírito burguês, desse burgalês (séc. XI; de burgalense) ou burguês medieval com direito de cidade – de burgo [burgus], datável de 1123 –, um empreendedor distinto do aristocrata e do lavrador, cujo comércio o alcandorou, em Setecentos, a classe social: ao contrário dele, ora nos sacrificamos para bafejar herdeiros, ora vivemos no luxo possível e impossível, sem investir o acumulado, como se fosse pecado multiplicar o dinheiro. Não se trata de especulação, de simples numerário, aquela e este regularmente criticados pelo autor. Mercado e tecnologia (o «ferramental» do capitalismo) desembocam em número, no alegadamente ‘científico’, não forçosamente em produtividade e, menos ainda, em liberdade. Logo, onde reside o progresso, a tal ponto discordam estrangeiro e nação, se dissociam topo e base? É uma velha preocupação, recorrente em Filhos de Saturno, sobre que também sintetizava em carta a Óscar Lopes:

 

A verdadeira revolução terá que ser espiritual. O homem é agora feito por e para o mercado […]; o que é preciso é que o mercado seja feito para o homem. […] Estou muito pessimista quanto ao processo do «progresso», que é fundamentalmente um automatismo de mercantilização, lógico, mas humanamente irracional. É preciso procurar outra forma de organização das relações humanas, incluindo a relação do homem com as coisas. (22005: 405)

 

Nesta parte, seria útil confrontar a imagem de jardim à beira-mar ‒ «reserva bucólica de uma Europa em acentuado processo de urbanização de técnica e tecnicismo» ‒ com o esforço progressivo fontista, lendo, diverso daquele aldeanismo, Portugal como «uma espécie de aldeia orgulhosamente feliz na sua marginalidade, na sua diferença», que o salazarismo disfarçou em «dimensão imperial imaginária» (Lourenço, 2014: 303-304). 

É de ordem cultural, mais do que biológica, e um facto político (se representa povoamento), a «tendência para a miscigenação com outros povos» (32007: 96). Saraiva vê este processo como «uma certa liberdade em relação às fronteiras culturais, uma certa promiscuidade entre o Eu e o Outro, uma certa falta de preconceitos culturais, a ausência do sentimento de superioridade que caracteriza, de modo geral, os povos de cultura ocidental». Demasiado bondoso nestas últimas palavras, é facto que, face ao mais ocidentalizado, a nossa atitude «é a de ensimesmamento, de refluxo» (p. 98) sobre nós mesmos, próprio de espírito ilhéu, que nova globalização vem derrotando[6]. Justificado o desinvestimento comercial, quando o português de Quatrocentos tanto arriscou, parece ter-nos acontecido, após Quinhentos, um país póstumo, suficientemente apático para, no momento da escrita, ser embalado vez primeira pelo FMI ‒­ Fundo Monetário Internacional. 

Poderemos, de tanta passividade e ares contemplativos, deduzir uma celebrada brandura de costumes, que um Miguel Torga contesta, desde as guerras civis de Trezentos à hipocrisia de não matar o touro na arena? Ocorre brandir a humanidade da abolição da pena de morte; os efeitos, por baixo, de algumas batalhas; e, na relatividade destas condutas, dar nota de chacinas, lá fora, que nos relegam para o fundo das tabelas. Será «uma certa aversão ao espectáculo público do assassínio, a piedade pelos mortos e supliciados, o horror do sangue», mau grado tantos autos-de-fé? Referida a «maviosidade» (p. 100) lusitana em Fernão Lopes, justificar-se-á tal, acaso, «por uma certa sensibilidade à flor da pele, ou pela falta de firmeza nos juízos sobre o próximo, ou pelo esquecimento das culpas, ou pelo baixo tónus de agressividade» (p. 101). A desorganização, o instintivo, o «logo se vê», uma brandura que é medo, fuga ou desinteresse, agem contra nós. Se se fizer um jeito ou favor, por interesse ideológico ou outro, cai-se em não poucas vergonhas. Entrevêem-se as razões maiores para o falhanço do 25 de Abril, segundo Saraiva.

A conclusão, ou décima quarta estação desta via-sacra caracteriológica, remete para um povo não propriamente guerreiro, em valores e actos, mas, tão-só, «um povo obstinado quando se trata de defender o terrunho. A padeira de Aljubarrota é, possivelmente, o melhor símbolo do espírito guerreiro português.» (p. 103) Seja esta heroína exemplo menos feliz, não é pequeno espanto a resistência ao Castelhano, que Agostinho da Silva considerava feito maior que os descobrimentos, conquistas e ultramares. Hoje, as defesas são um trabalho rigoroso e honesto, que, produzindo (idealmente, reproduzindo-nos), esquive a corrupção. Ora, começam aqui e no parágrafo anterior os problemas.


[1] Este texto 15 de Filhos de Saturno não vem registado na preciosa “Bibliografia de António José Saraiva”, organizada por Leonor Curado Neves, que encerra Estudos Portugueses. Homenagem a António José Saraiva, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa / Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990.

[2] «Mete el-rei barcas no rio forte; / quem amigo há, que Deus lho amostre: / alá vai, madre, ond'hei suidade!» ((B 1156, V 758)

[3] …Se não for irónica: «Isto é quanto à saudade / que eu dela posso ter», diz, em relação à mulher que dele se afastou, interlocutor na vicentina Farsa dos Almocreves, 1526, versos 461-462.

[4] Os três artigos que à questão constitucional dedica em 1978, no Diário Popular, são respondidos por Óscar Lopes na Correspondência (p. 415-418; contra-resposta nas p. 422-423).

[5] 1960; na capa, Dicionário Crítico, Lisboa: Gradiva, 1996.

[6] Giddens, 42005: 53, define globalização como «a intensificação das relações sociais de escala mundial, relações que ligam localidades distintas de tal maneira que as ocorrências locais são moldadas por acontecimentos que se dão a muitos quilómetros de distância, e vice-versa». Analisa quatro dimensões da globalização: economia capitalista mundial, sistema do Estado-nação, ordem militar mundial, divisão internacional do trabalho. «Uma das principais características das implicações globalizadoras do industrialismo é a difusão universal das tecnologias da máquina.»


Ainda A. J. Saraiva, Filhos de Saturno

18 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Contra a corrupção ‒ conducente à crise moral, política, económica ‒ se alevantam a agudeza do ensaísta e a aspereza do manifestante nos textos 40 e 42, saldadas contas no mais forte 38, de Filhos de Saturno. Os «acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril» resumem-se, para Saraiva, num díptico: a descolonização «que não houve» ‒ «a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir» ‒, e a «liquidação do antigo regime». Disso trata em “O 25 de Abril e a História” (Diário de Notícias, 26-I-1979), que, face às ondas de choque, motivou dossiê de Raiz e Utopia, 7-8, Outono / Inverno de 1978: 40-55. Esse duplo número recolhe conversa entre Saraiva e Eduardo Lourenço, incluindo partícipes no debate, a que se seguem artigos de Maria Belo e Joaquim Manuel Magalhães suscitados pelo incendiário artigo. 

Quanto à descolonização, o PCP, infiltrado num exército já sem hierarquia pela insurreição dos capitães, fez o jogo da URSS; mais, dirá no agitado debate de Raiz e Utopia, em que percebeu desfavor, mesmo hostilidade: «[…] o povo português não participou na descolonização.» (p. 42) Quanto ao ex-regime, tratava-se de julgá-lo, a tempo, em três frentes: como «pântano de corrupção», no «terror policial», nos «crimes de guerra» ultramarinos. Conclusão: ficou tudo em águas de bacalhau.

A passagem ao pluripartidarismo e ao que, em missiva de 1976, eram «as principais conquistas políticas democrático-liberais subsequentes ao 25 de Abril: liberdade de imprensa, eleições verdadeiras, abolição de quaisquer Pides, etc., etc.»[1], não fez esquecer «A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão»; os efeitos, que discrimina em vários quadrantes da vida nacional, estavam à vista de todos, pelo que «falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral». Depois do “Cravo de Maio flor da liberdade”, em 1974, irrompem desengano e autocrítica, numa dureza que retorna no texto 53, ao irmanar com excessiva facilidade o 5 de Outubro e o 25 de Abril[2]: «Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.» Mas ainda é possível o resgate… E quem julgar que se trata de um libelo tardio leia carta a Óscar Lopes de Maio de 1974 (p. 386-387), onde trabalha hipóteses sobre o «problema colonial». 

Quando A. J. Saraiva falece, a Europa era já outra, e, mais do que ela, o mundo, sem os dois blocos que ainda circunscrevem o pensamento dos anos 70. Nesta medida, várias crónicas têm um imperecível valor documental e marcadamente ideológico. Tinham desaparecido entidades como URSS, Checoslováquia, República Democrática Alemã, ou sugestões eurocomunistas, e, com excepção de uma Ásia pontual, desapareciam formulações como centralismo democrático, ditadura do proletariado, embates entre cristãos e marxistas, luta de classes. Nem tudo se apagou, porém; e nem esses conceitos devem ser atirados para debaixo do tapete.

Apreendida uma caracterização nacional segundo A. J. Saraiva, talvez se perceba melhor o tom destas crónicas saturnianas ‒ um pleonasmo, se o discurso daquelas é devorado, como nós, pelo tempo, ou pai Saturno; pleonasmo menos evidente, quando entreluz melancolia, até ao gume do sarcasmo e da contradição toldada de desespero ‒, que retomam, na limpidez de raciocínio, preocupações maiores do, agora, também colunista e polemista, lastreado pela História e pela Filosofia política.


[1] Carta a Óscar Lopes, ed. cit.: 395-396.

[2] O mesmo Saraiva se contradiz na comparação: «O 25 de Abril não foi um golpe organizado por pessoas conscientes de que era preciso aplicar novas ideias, novos modelos [,] mas foi uma revolta de capitães que queriam acabar com a guerra fosse como fosse. Lembro só a diferença que há entre esta revolução e o 5 de Outubro. Essa foi uma revolução feita por chefes políticos, com planos – bons ou maus, não interessa aqui. O 25 de Abril aconteceu como uma espécie de deslaçamento.» (Raiz e Utopia, p. 41-42)


Feições persistentes da personalidade cultural portuguesa

18 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Vejamos, em vez da ‘forma cultural’ tocada no colóquio portuense de 1993, “Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa” (32007: 75-107), segundo António José Saraiva, reforçado por Filhos de Saturno (32015).

 

Ao abordar “As épocas da cultura portuguesa” (32007: 109-153 [112]), sugeriu António José Saraiva quatro critérios: a perspectiva mítica; a relação entre topo e base, situando naquele a força económica e política, não forçosamente cultural; a nossa pertença «ao sistema cultural europeu-ocidental», que já fora somente peninsular, na tensão lusitana com o lá fora; enfim, «o valor para cada época do signo linguístico e, portanto, do próprio discurso», seja, o difícil convívio entre palavras e coisas (ou a realidade), quando somos seres discursivos, em que se joga a ideologia.

Face aos 54 textos reunidos em Filhos de Saturno[1], precedidos de um Prólogo ‒ tomando o sexénio pós-abrilino como etapa decisiva na construção democrática, para Saraiva, fracassada ‒, poderíamos enquadrá-los nessa quádrupla vertente, de acordo com os assuntos tratados, alguns dos quais citamos: Cinco de Outubro e República de 1910, D. Sebastião (indexado pelo título “Loucura e História”), Tecnologia e Progresso, Vinte e Cinco de Abril; Sociedade de abundância e de consumo, Capitalismo de Estado e privado, Pauperização; Cristianismo e Marxismo, Descolonização, Eurocomunismo, Leninismo, Multinacionais, Social-Democracia; Capitalismo, Cultura, Direita, Esquerda… Há outras maneiras de ler este volume: a) cronologicamente, de 14 de Janeiro de 1974 a 26 de Outubro de 1979: nesse caso, o Prólogo, de 13 de Janeiro de 1980, fica para o fim, síntese e cúpula; b) pelo índice, seleccionando de acordo com a nossa mundivisão; c) por temas, seguindo a Tábua, alfabeticamente.

Salvo três inéditos de 1974 e um quarto de 1977 [“A seta e o anel (Notas sobre o ‘Progresso’)”, o mais longo, notabilíssimo, nascido de palestra), a cinquentena foi publicada no Jornal do Fundão, República, Diário Popular, Vida Mundial, Critério e, sobretudo, no Diário de Notícias. Outros teriam cabimento, entretanto coligidos por Maria José Saraiva (2004). Justificava-se, nesse alinhamento de época decisiva para nós, e quando mais interveio o Historiador da Cultura, que entrassem os seguintes: «O essencial e o acessório (a propósito de Soljenitsine)», Diário Popular, 18-III-1974; «Economia e democracia política», Vida Mundial, 9-I-1975; «Não se salvou o nome do país nem a honra das Forças Armadas», O Primeiro de Janeiro, 25-II-1979; «A diplomocracia», Diário de Notícias, 31-VIII-1979 (sucedâneo do texto 32, de 10-XI-1978); e, da quinzena de artigos no Diário de Notícias em 1980, teria sido bom fechar com «Política» (1-III-1980), síntese do que deve preocupar governantes e governados (estes confundem ‘governantes’ com ‘políticos’), exemplar de como Saraiva trabalha a relação entre palavras e coisas e argumenta singela mas poderosamente: se, como se julga, a política fosse «a arte de bem governar a cidade», então, «não haveria diferença entre política e administração»:

 

A arte de bem governar é a arte de bem gerir e administrar os seus recursos em proveito de todos os membros da comunidade, de manter a ordem necessária para a vida em comum, etc. Se a política fosse isso, um poder paternal seria o melhor governo, e o melhor político seria o melhor administrador, o que é falso com toda a evidência. O bom administrador percebe de coisas, mas nem sempre de pessoas. […]

A política é um jogo de paixões, de um certo tipo de paixões. […] [É] o estado social resultante das paixões em jogo.

Que paixões? Aqui temos de distinguir os protagonistas e o coro, os manipuladores e os manipulados. Os primeiros podem servir-se da política para satisfazer os seus fins particulares: […] Mas os que estão no coro e só têm voz passiva, esses são movidos por uma espécie de paixão pública e abstracta, como a paixão da igualdade, a paixão da justiça, a paixão da liberdade, a paixão «patriótica» ou tribal, etc. Os melhores políticos activos são aqueles que, em cada momento, sabem apostar na paixão dominante, por ser a de maior número ou por ser a mais dinâmica nas circunstâncias. Lenine jogou na paixão igualitária, Hitler na paixão tribal. 

 

O «jogo de paixões» de Saraiva transcende o realismo cínico de Paul Valéry (1960: 947) ‒ «La politique fut d’abord l’art d’empêcher les gens de se mêler de ce qui les regarde. À une époque suivante, on y adjoignit l’art de contraindre les gens à décider sur ce qu’ils n’entendent pas» ‒, apelando à confluência, no mesmo indivíduo, de sábia administração das coisas e domínio pertinente da emoção colectiva.

Qual a importância, pois, deste olhar lustral de um grande pensador, vencido quadragésimo aniversário nostálgico dessa luminosa quinta-feira de 1974, que tantas esperanças deixou pelo caminho?

Na última semana de 1973, quando troca Amsterdão pelas férias do Natal em Paris, onde celebra 56 anos, A. J. Saraiva espelha indecisões:

 

Outro problema é decidir-me por um caminho de investigação. Continuo muito tentado pelo problema da relação entre língua e literatura. Mas também me fascina o estado dessa coisa particular que tem o nome de Portugal (a problemática dos meus artigos na Vida Mundial). Tenho a mitomania das grandes catedrais ‒ o que me levaria a continuar noutro estilo (como as catedrais românticas continuadas em estilo gótico ou até barroco) a História da Cultura. E estou indeciso quando o tempo urge[2].

 

A tripla frente ‒ investigação, Portugal, História da Cultura em Portugal ‒ está em vias de resolver-se, com a chegada de Abril. Ter assistido, em Lisboa, ao Primeiro de Maio fá-lo declarar: «Mas é claro que já não tenho nada que fazer aqui. Agora ainda me sinto mais exilado e quero voltar definitivamente.» A vida «controlada e computada» (p. 385) dos holandeses, contudo, serve-lhe de exemplo para tratar de tecnologia e suas perversões.

Concomitante, essa «coisa particular que tem o nome de Portugal» começa a impor-se, seja em reforçada intervenção jornalística, seja no regresso, em 1975, à Universidade portuguesa, a qual exige uma revisão profunda a quem estava ausente desde 1959. Assim, no domínio académico, o reencontro desemboca em cinco capítulos notáveis, redigidos entre 1977 e 1980, coetâneos do corpus de Filhos de Saturno, o terceiro dos quais nos serve de pano de fundo: «Génese da nação portuguesa»; «A língua»; «Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa»; «As épocas da cultura portuguesa»; «A literatura tradicional do povo português».

Desejando dar rosto novo e outra metodologia à História da Cultura em Portugal (3 vols., 1950, 1955, 1962), esse quinteto compõe A Cultura em Portugal. Teoria e História. Livro I. Introdução Geral à Cultura Portuguesa, cujo Livro II traz o subtítulo Primeira Época: A Formação (1991, 22007). Nos anos 60, julgou poder entrar pelo Barroco e períodos seguintes, revendo, e concluindo, a monumental História da Cultura em Portugal, esgotadíssima. Sobreveio a morte, em 1993; reeditar-se-ia, pois, o remanescente, já não revisto pelo autor. Assim, Leonor Curado Neves deu Renascimento e Contra-Reforma e Gil Vicente, Reflexo da Crise (2000); eu acrescentei As Navegações e as Origens da Mentalidade Científica (2011), fechando um quarto volume com O Humanismo em Portugal (2013). Não confundir o saldo final destes seis volumes com os dois de Para a História da Cultura em Portugal (1995-1996).

Vejamos, pois, desse Livro I, “Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa” (32007: 75-107), de modo a conjugar na imagologia epocal do autor os mais contingentes textos de Filhos de Saturno.


[1] De 1980, na Livraria Bertrand, há correcções pertinentes na minha edição (32015): passagem de controle a controlo, de massivo (e seus derivados) a maciço e reforço da pontuação.

[2] Carta de 24-XII-1973. Ver António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência, 22005: 375.