Sumários
A Cripto-História da arte, linha metodológica de alargamento do campo de análise.
23 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
No corpo de instrumentos de trabalho de que dispõem a História da Arte e as Ciências do Património conta-se o conceito operativo de Cripto-História de Arte, que assenta precisamente no estudo das obras de arte fragmentárias e mortas, ou seja, no papel que cabe aos indícios (mesmo de todo desaparecidos) para a caracterização histórica, artística, cultural, e estilística, dos vários «tempos» patrimoniais. Parte-se do princípio de que esta disciplina científica não deve ser restringida ao estudo das obras vivas, ou seja, os grandes monumentos, edifícios classificados e peças de valia museológica, mas também ao estudo daquelas muitíssimas obras que já desapareceram, por incúria ou destruição.
Acresce a utilidade de se estender esta análise dialéctica assente na noção de fragmento à essência de todo o património visto na sua máxima globalidade, ao estudo daquele que persiste truncado e, até, a projectos artísticos que quedaram inacabados ou não chegaram mesmo a realizar-se. Conceito com útil verificação prática pela comunidade científica, insere-se dentro de um quadro de pesquisa definido em vários níveis de abordagem (cripto-analítico, dedutivo, reconstitutivo, ‘encreativo’). Trata-se de visão alargada em termos teórico-metodológicos, assente na base de dados inventariais como instrumento maior, integrando as perdas patrimoniais no ‘corpus’ exaustivo de bens, ainda que fisicamente já não existam . Tal como a prescrutação micro-artística integrada (recorrendo-se a Carlo Ginzburg), à dimensão de existências em contexto periférico, o conceito alarga este esforço de revalorização ao atentar na valência específica das franjas da paisagem construtiva em espaços de periferismo, incluindo a esfera dos patrimónios a preservar na dimensão desvalorizada das micro-produções artísticas e evitando muitas das inexoráveis perdas que se sucedem no tempo.
Aquilo que se define por CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE atenta no papel que as obras desaparecidas no tempo podem ter assumido em determinadas circunstâncias históricas, económicas, políticas, ideológicas, na sua roupagem estética e no seu programa iconológico. O estudo das «zonas escuras» da produção das artes clarifica e alarga sempre o conhecimento. Poderá fazer-se História da Arte eficaz recorrendo aos objectos mortos, à sua diluída memória, às cicatrizes deixadas como rasto, bem como às obras de arte que não só não existem como chegar a ter verdadeiramente uma existência, porque nunca passaram da fase da concepção (bom ex.: o projecto de ponte que Leonardo da Vinci, em 1502, desenhou para o sultão turco Baiazid II, destinado a unir a Gálata e Constantinopla, que nunca chegou a ser construído, senão em 2001 na Noruega pelo arquitecto Vebjoen Sansd...). As noções de totalidade, de fragmento, de micro-história, o conceito alargado de mercado e de programa artístico, iluminam as possibilidades (e a utilidade) do olhar cripto-artístico. A novidade desta vertente reside na consciência reforçada que possa ser atribuída à obra de arte morta e a possibilidade de se organizar o inquérito a seu respeito segundo sólidas bases de pesquisa.
A Cripto-História da Arte, nova proposta de conceptualização para a nossa disciplina, parte da revalorização da noção de fragmento, não apenas como memória parcelar da obra ausente, mas colmo testemunho vivo da sua essência, senão como indício perene (tal como o iconólogo E. H. Gombrich o referiu, ao acentuar que a H. da Arte impõe sempre a ideia do conjunto artístico, e do seu contexto) – uma avaliação da obra em globalidade. Uma História de Arte operativa, apta a alargar as suas bases teóricas e metodológicas não pode reduzir o seu objecto de estudo às obras de arte vivas; também as que desapareceram do nosso convívio, as que só sobrevivem através do indício ou do fragmento, ou seja, as obras de arte mortas, têm uma palavra a dizer aos historiadores, aos críticos e fruidores de arte.
.
Ainda o estatuto social dos artistas no pós-Renascimento.
19 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Conclusão da matéria dada sobre a conquista da 'liberalidade' artística: o artista de oficial mecânico e trabalhador servil a artista independente e soxialmente considerado. Estudo de fontes literárias e de casos de análise. O 'Retrato do Casal Arnolfini' de Jan Van Eyck, de 1434. A carta reivindivativa de Diogo Teixeira a D. Sebastião em 1577.
Balanço dos TEMAS DE TRABALHOS PRÁTICOS (fichas analítico-descritivas de obras de arte/ou de livros, textos e ensaios de História da Arte referenciados em aulas, com rigor no ‘estado da questão’, na escrita, na análise histórica, iconográfica, iconológica e comparatista e com visão crítica e problematizante)
Ana Almeida – O ‘Nascimento de São João Baptista’ de Diogo de Contreiras.
Ana Catarina Rodrigues – ‘Telhados de Paris’, de Federico Aguilena Alenaz.
Ana César – ‘Tametomo resgatado por Tengu enviado por Xanuki-in’, 1850, Utagawa, Kuniyoshi.
Ana Nunes – Bruno Capacci, ‘Les tréteaux de Diodora’.
Ana Rita Cavalheiro – O Mosteiro da Conceição de Beja (um aspecto a definir…).
Ana Teresa Mota – O retábulo da igreja do Colégio dos jesuítas de Ponta Delgada.
André Cascalheira – ‘Cramped by Hunger’, 1945, por Marcelino Vespeira.
Beatriz Abrantes – ‘As Coroas dos Reis’, no Palácio das Necessidades (Sala de El Rey), por António Manuel da Fonseca.
Beatriz Carvalho – Painel do casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre.
Bianca Pimentel Pereira – Hotel Mont Palace, em São Miguel, Açores.
Carlota Figueiroa Rego – A escultura ‘O Desterrado’ de Soares dos Reis.
Carlota da Silva Cortesão – A pintura setecentista do texto da nave da igreja de São Paulo em Lisboa.
Carolina Fernandes – livro de HA em análise (escolher…)
Carolina Madeira – ‘Pintura Habitada’, de Helena Almeida.
Carolina Malheiro Coelho – Comparação entre duas peças arquitectónicas em Cascais: a Casa Sommer e o Estoril Sol Residence.
Catarina Lima – Azulejos portuenses (caso, p. ex., da igreja do Carmo).
Catarina dos Santos Madeira – Mosaicos das ruínas de Milreu, Estoi.
Décio Coelho – Casa das Mudas, de Paulo David.
Diana Nogueira – Prato chinês Dinastia Qing, de início do séc. XVIII.
Diogo Cigarro – O mural de Felipe Pantone na Quinta das Conchas.
Francisco Veiga – Simão da Veiga: análise de ‘Retrato de minha mulher’.
Ionela Rotari – ‘Quadro sem nome’ de Oleg Retaci.
Irina Passuco – ‘Vénus adormecida’, de Paul Delvaux.
Jennifer Vieira – Escultura de Emanuel Santos: homenagem aos pescadores do Caniçal.
Jéssica Santos – Mosteiro de Santa Maria de Cós (…um aspecto a escolher).
Joana Bessa – Iconoclastia e iconofilia: exemplos na arte urbana no Entroncamento.
Joana Pinto – ‘Emigrantes’ (‘The arrival’), de Shan Tan, um livro que desenvolve a sua narrativa puramente por imagens.
Joana van Esveld – Forte de Santo António da Barra, no Estoril.
João Lisboa – Cruz de D. Sancho I, de autor desconhecido (MNAA).
Lara Lourenço – ‘Amor e Psyché’ de J. Veloso Salgado.
Margarida Capelo – A igreja matriz de Alhos Vedros (um aspecto a escolher).
Margarida Pereira Vasconcelos – Estudo da pintura flamenga ‘A Virgem e o Menino’, do círculo de Jan Gossaert, dito Mabuse.
Maria Rosa Machado – Outro olhar sobre a arquitectura museológica de Belém: o mosteiro dos Jerónimos, o CCB, o Museu dos Coches.
Marine Soares – ‘O baloiço’ de Jean Honoré Fragonard.
Marta Seixas Parente – ‘Symphony in white nº 2: the little white Girl, de James Abbott.
Mariana Cerejo – Uma escultura (…) na igreja de São Lourenço em Alhos Vedros.
Mariana Cruz – O Livro de Fotografia de Victor Palla: ‘Lisboa, Cidade triste e Alegre’, em parceria com Costa Martins.
Mariana Real Mota – A Ermida de Nossa Senhora de Alcamé, V. F. Xira.
Mariana Teixeira – (…?), de Auguste Rodin.
Marta Marques – As Metamorfoses de Ovídio: análise de uma das edições críticas.
Marta R. P. Sanches – O Arco de São Bento (na Praça de Espanha).
Matilde de Sepúlveda Velloso – ‘Asas do Desejo’ de Wim Wenders.
Melissa Mascarenhas – ‘O Inferno’ de mestre desconhecido (MNAA).
Miguel Santos – O ‘Julgamento das Almas’ do MNAA, atribuído a Gregório Lopes.
Nadine Saize – ‘Open your mind’ da pintora Rita Melo.
Nélia Manaça – ‘Being forced INTO something else’, de Julião sarmento.
Nuno A. S. Pinto – O Concerto para piano nº 2 em dó menor, opus 18, de Sergei Rachmaninoff: análise de composição no contexto histórico russo do seu tempo.
Patrícia Rodrigues – Monumento a José Afonso, de Lagoa Henriques.
Pedro Pinto – Ito Jakuchu, ‘Phoenix and Sun’.
Raquel Ribeiro dos Santos – ‘Calçada – um tributo a Amália Rodrigues’, de Vhils.
Raquel Vicente – Fotografia de Joel Santos.
Ricardo Milagre – tema por definir
Rita Cardoso Gonçalves – A Muralha do Centro Histórico de Guimarães.
Rodrigo Costa – Ficha de ‘Le pouvoir des images’ de David Freedberg.
Rodrigo Neves – A igreja matiz de Bucelas (as tábuas luso-flamengas da ‘Anunciação’ e da ‘Assunção da Virgem com doador’).
Sara Fonseca – Estátuas do Sifão de Sacavém.
Sara Santos – A Igreja de São Domingos de Lisboa, no Rossio, à luz das suas transformações após o incêndio de 13 de Agosto de 1959.
Sara Teixeira – Torre do Tombo (aspecto a definir…).
Teresa Carvalheira – ‘Bozzetto’ para a ‘Deposição no túmulo’ de Tiepolo, MNAA.
Tiago Nunes – ‘Nu’ de José de Almada-Negreiros.
Tiago Vigário – Mosteiro de Alcobaça (…).
Valéria Brites – O Monumento a Eça de Queiroz, de Teixeira Lopes.
Vanessa Côrte Real – «Fernando Pessoa com Natália Correia», pintura de autor desconhecido.
Aura, liberdade, liberalidade criadora.
16 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A liberalità (liberalidade, ou seja, um conceito de emancipação, de reivindicação social e de consciencialização autoral) é uma das grandes conquistas do Renascimento, no século XV, em termos de criação no campo das artes. Estas passam a ser vistas e entendidas como produto emanado das ideias e não como mero trabalho das mãos: assumem-se, pois, como criação intelectual e não como produção ‘mecânica’. Face àquilo que era a liberdade criadora restrita dos artistas medievais, e dos da Antiguidade – um regime anónimo, colectivo e gremial – a reivindicação da LIBERALITÀ representa uma conquista de vastas proporções, com incidência imediata e com longa durabilidade no mercado das artes. Com a liberalidade nascem também os mecenas, os críticos de arte e os peritos, os avaliadores, os ‘marchands’ de arte, os livros com a biografia de artista e a teoria das artes, os coleccionistas e as galerias de obras de arte (embrião dos museus contemporâneos), os intermediários de compra e venda, i. e., nasce uma espécie de artworld moderno.
O novo estatuto de liberalidade artística que nasce com o renascimento incorpora-se na ideia de ARTE que, com o humanismo, ganha força -- 'scintilla divina', lhe chamou Alberti, e 'idea' como 'cosa mentale', lhe chamaram Francisco de Holanda e Federico Zuccaro. É nesse âmbito que se deve entender o que, no s´4eculo passado, Walter Benjamin definiu como aura. Este autor, Walter Benedix Schönflies Benjamin (Berlim, 1982-Portbou, 1940) foi crítico, jornalista, historiador de arte, cientista, filósofo, tradutor, iconólogo e sociólogo, é uma das figuras mais prestigiantes no campo da Estética, que dinamizou através do conceito de AURA para uma nova percepção teórica e sensitiva das artes. Associado desde sempre à Escola de Frankfurt, tal como George Lukács e Bertold Brecht, recebeu a influência do místico judeu Gershom Scholem. Era um profundo conhecedor da língua e cultura francesas, tendo traduzido para alemão obras como Quadros Parisienses de Charles Baudelaire e Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. Mas é no campo da Estética que o seu contributo é original.
Sobre a famosa aura, escreveu em 1936 na A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: «A singularidade é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura»…O talento analítico de Benjamin expressou-se no modo como soube entrever relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo. São valores de longa sobrevivência, que interessam à prática da História e da Crítica das Artes e que explicam os mecanismos paragonais de gosto e de repulsa, de marginalidade e de massificação, de deriva repressiva e de ruptura vanguardística. As novas gerações de historiadores e críticos de arte da era da globalização aprendem com estas lições oriundas da esfera da sociologia da arte, a psicologia, a antropologia e a filosofia marxista e que se tornam de utilidade para a definição da disciplina. A História-Crítica da Arte, ao mostrar utilidade perene, ao falar das obras em aberto (como as definiu Eco), progrediu de modo significativo no contexto de um mundo em globalização. Alargou capacidades de análise, recentrou interesses regionais, atraiu jovens investigadores, disponibilizou apoio dos poderes instituídos, redefiniu objectos de estudo no enfoque micro-artístico, amadureceu a visão patrimonialista sem antigas peias auto-menorizadoras, e reforçou esse seu entendimento (que só ela pode ter…) do discurso da arte como um fenómeno que é em todas as circunstâncias inesgotável e por isso trans-contemporâneo.E mais disse: «A autenticidade de uma coisa é a suma de rudo o que desde a sua origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração, na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este é certo, mas o que assim vacila é exactamente a autoridade da coisa e o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura»…
Metodologia de apoio à realização de uma Ficha analítico-descritiva de uma obra de arte: um exemplo.
12 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Estuda-se uma peça do século XVII, de colecção particular -- um ‘estudo de caso’ de ficha analítico-descritiva: uma Tróia abrasada do pintor Diogo Pereira e o ‘género’ da pintura de «catástrofes» na arte portuguesa do século XVII -- , no sentido de exemplificar o processo de investigação em História da Arte seguindo, com rigor metodológico, o processo analítico-descritivo da fortuna histórica (que permite, recorrendo às fontes disponíveis, publicadas, manuscritas, laboratoriais, ou outras, saber algo sobre a época, data, autor, tema, iconografia, estilo e contexto da peça), da fortuna crítica (que permite avançar no campo da iconologia e da simbólica, desvendando sinais e confrontando enigmas, e da comparação dos estilemas da peça com outras que ajudem a melhor iluminá-la e esclarecê-la enquanto discurso artístico) e da fortuna estética (que permite, à luz do anteriormente seriado, perceber melhor a aura da peça, o seu sentido estético e o seu peso trans-contextual), num processo global de apreciação tendente a saber o mais possível sobre a peça em apreço e testemunhar a sua real valia, devidamente inserida num contexto comparatista.
A tela escolhida é uma representação, aparentemente enigmática, da guerra de TRróia e foi pintada no século XVII, segundo diz a tradição, por um artista lisboeta chamado Diogo Pereira, ao tempo muito famoso e apreciado pelo colecionismo. Compete, assim, analisar uma peça em torno a um questionário previamente reflectido e que pode ser, por exemplo, este conjunto de problemas: -- Avaliação crítica de um artista famoso no seu tempo mas esquecido nos mercados após o século XVIII até data recente: porquê ? -- Identificação de um artista com obra internacional a partir da pesquisa arquivística, do método analítico-comparatista, do estudo de laboratório e da abrangência contextual. -- Actualidade do estudo do coleccionismo e da peritagem de obras de arte. Questões de análise, restauro, percepção e revalorização: o gosto em fogo. -- A avaliação crítica: visão mitificada sobre um artista de fama: a pintura ‘de género’ do século XVII vista à luz dos critérios dos séculos XIX e XX. – Acento na cripto-história da arte, trajectos de modernidade e a reavaliação de ‘épocas esquecidas’ no campo da pintura de cavalete em Portugal e no contexto internacional. -- O conceito e a prática do comparatismo artístico: o estilo, a marca pessoal, a técnica e a maneira autoral, o gosto de época. -- O olhar micro-artístico e a fortuna crítica na revalorização de artistas e obras esquecidas. -- A percepção das memórias artísticas esquecidas e dos seus comprometimentos ideológicos.
Sabemos que o pintor em causa está documentado entre 1630 e 1658, ano da morte. Foi artista com aura de marginalidade, especialista em quadros com Incêndios de Sodoma, Tróias abrasadas, Infernos, Purgatórios, borrascas de mar, ruínas clássicas e outros temas simbólico-profanos de caprichosa cenografia. Dentro do seu «género», e apesar de mal-amado até à reabilitação recente, foi uma das estrelas da nossa pintura dos anos centrais do século XVII, a quem o escritor Félix da Costa Meesen (que escreve em 1696) não regateou, excepcionalmente, elogio: disse ele que Pereira foi «genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercício foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna». Mais destaca o «Dom de Deos de que foi dotado» e a «veneração» que merecem suas telas, «porem o serem de Portuguez, lhe faz o mayor dano». Pereira foi famoso como criador de catástrofes, bambochatas, dilúvios e temas afins, e pode considerar-se uma espécie de Monsú Desiderio português, dados os paralelos com esse famoso pintor lorenense estabelecido em Nápoles, de nome François de Nommé, estudado por Rosaria Nappi e conhecido por esse epíteto lendário. Trata-se de caso singularíssimo na arte portuguesa, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches, tal como foi finalmente reconhecido com a exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque portugais, onde pela primeira vez se expuseram dez obras do artista. Sedutor no modo como adequou a tradição do capricho architectural de Roma e Nápoles à tradição nacional, com pessoalizada liberdade de touche, mereceu ver os seus quadros disputados nos mercados de Itália, Espanha, França e Inglaterra, sendo de estimar que, em 1753, o perito Pietro Guarienti (no Abecedario Pittorico de Orlandi) lhe chamasse «stimatissimo pittore de fuochi, incendi, Torri abbruciate, Sodome, purgatori, e inferni», destacando quadros, «a lume di luna, o di candele» e elencamdo os palácios de Lisboa onde havia obras suas.
As nossas investigações atestam que quem possuíu as várias versões do tema Tróia abradada de Pereira eram as novas clientelas da Restauração, entre elas D. Manuel da Cunha, capelão-mor do rei, os Mascarenhas e Sousas, o Conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc. Estas Tróias eram vistas como um testemunho de parenetização nacionalista anti-castelhana com a sua forte carga simbólica, onde a figura de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom príncipe cristão numa espécie de metáfora às virtudes do restaurador D. João IV. Conhecem-se doze versões de Tróias de Pereira (Museus de Lisboa, Coimbra e Évora, B.N.P., Palácio Real de Nápoles, colecções de Milão, Paris, Oeiras, Caramulo, etc), todas com atmosferas apocalípticas, efeitos labirínticos, arquitecturas antiquizantes e cenografias idealizadas, em que o sentimento trágico da «catástrofe» está patente, a lembrar a conjuntura de guerras com que o novo regime se defrontava. É sintomático que algumas destas obras (caso da Tróia da col. Franzini, Milão) chegasse a andar atribuída ao próprio Monsú Desiderio ! O sucesso do tema não escondia, dentro da retoma do trecho clássico, um surdo sentido de resistência com motivações políticas na opção coleccionística. Antes de mais, assumia funções moralizantes ao atestar o amor pio de Eneias (precursor de Jesus nas interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio) a salvar Anquises e simbolizando a fraternidade cristã; depois, justificava a ideia da resistência dos povos face à tirania, o que servia a retórica cristã-brigantina restauracionista; a seguir, dava imagem à tese da ancianidade de Portugal legitimadora da Restauração (através da lenda da fundação de Lisboa e outras cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Tróia, em livros de Gabriel Pereira de Castro e António de Sousa de Macedo); por último, simbolizava as virtudes do bom rei tal como a empresa XXVI da Idea do Principe Cristiano de Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia da boa governação.
Estas Tróias revelam o modo como o pintor se pauta no panorama do seu tempo, ao alinhar não pelo naturalismo da sua geração (André Reinoso, Baltazar Gomes Figueira, José do Avelar Rebelo) mas por um gosto sui generis aberto ao onirismo, à ars parabolica, ao capricho das rovine, à irreverência das formas labirínticas, à disfunção de espaços, às arquitecturas imaginosas, à ousadia das touches livres. O tema Tróia em chamas foi tratado também nos espectáculos de ars parabolica de festas como as do casamento de D. Afonso VI com Maria Francisca de Sabóia (1666) dirigidas por João Nunes Tinoco, onde se incluía «Troya que sobre hum cavallo por ser tão linda vinha incendios motivando», máquina de pirotecnia no Terreiro do Paço citada por Craesbeeck de Melo na Metaforica Relaçam das Festas.
Notamos que já por volta de 1625 o poeta Vasco Mousinho de Quevedo e Castelo Branco. ao redigir o ensaio de tónus vergiliano Dialogos de Varia Doctrina illustrados com emblemas, que dedica a D. Rodrigo da Cunha, Arcebispo do Porto, constrói um discurso moralizante em torno de Eneias como príncipe redentor, de não escondidos ressaibos pró-brigantinos. Eneias torna-se um herói do partido restauracionista dos Bragança. Em 1641, aquando da chegada à Universidade de Coimbra de um retrato do Rei Restaurador, em tempo da Aclamação, foi redigido um 'aplauso' reunindo poemas e panegíricos, onde o Padre José de Figueiredo e os jesuítas do Colégio de Coimbra associam de novo a imagem de Eneias à de D. João IV, no âmbito da restauração de uma nova 'aurea aetatis'... Estes e outros textos reforçam a convicção de que as Tróias de Diogo Pereira eram vistas na época com evidente dimensão parenética, e um não escondido sinal de resistência.
Nota-se (a partir da investigação realizada) que os possuidores das Tróias eram, todos eles, membros influentes do partido brigantino ligado à Restauração, o que indicia motivações políticas na opção do tema, ligando os sessenta anos de União Ibérica ao cativeiro de Babilónia e a destruição bíblica de Jerusalém à defesa da liberdade e autonomia lusa.
Em 1758, Francisco Vieira Lusitano, ao inventariar a colecção do palácio do Marquês de Penalva, assinalou várias obras de Pereira a altíssimo preço, incluindo um notável Inferno (col. particular), que chegou aos nossos dias e é de apreciável intensidade de contrastes, com suas ‘citações’ clássicas como, por exemplo, o abismo sinistro do lago gelado, tudo ao gosto de uma «pintura de género» fantasista e onírica como à época, ou um pouco antes, faziam Claude Deruet, François de Nommé, Didier Barra, Scipione Compagno, Cornelio Brusco e recorda, também, as stregonerie napolitanas de Isaac Schawenbourg e Filippo Napoletano. O artista mostra-se mais displicente no desenho de figura, fruto certamente de um aprendizado empírico, onde é usual o recurso a gravuras maneiristas italo-flamengas, de Cornelis Cort a Agostino Carracci.
Ainda pouco se sabe da vida de Diogo Pereira, que serviu de mordomo e escrivão na Irmandade de São Lucas, em Lisboa (servia de escrivão, à data da morte, na mesa presidida pela nobre pintora D. Maria de Guadalupe Lancastre e Cardenas), sendo de estimar que ele tivesse relações com os meios napolitanos na capital portuguesa. Infelizmente, pouco ainda se sabe sobre os contactos culturais entre Lisboa e Nápoles (ao tempo da dominação filipina e depois da revolta de Masaniello em 1647), sendo possível que tivesse admirado a colecção de quadros napolitanos que existia no Buen Retiro em Madrid, o que explicaria algumas das opções estéticas tomadas no seu original percurso artístico.
BIBLIOGRAFIA:
Maria Rosaria NAPPI, François De Nomé e Didier Barra, l'enigma Monsù Desiderio, Roma, Sandi Jappi Editori, 1991.
Idem, «Il 'Filippo Napoletano' di Roberto Longhi: Scipione Compagno o Cornelio Brusco?», Prospettiva, n. 47, Ottobre 1986, pp. 24-37.
Ângela Barreto XAVIER, Pedro CARDIM e Fernando BOUZA ÁLVARES, Festas Que Se Fizeram Pelo Casamento Do Rei D. Afonso VI , Lisboa, ed. Quetzal, 1996.
Vitor SERRÃO, «Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 1621-1684», Cat. da Exp. Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77 e 89-171.
REstatuto social do artista, de artesão mesteral (artista mecânico) a ser autónomo, livre, independente: a noção de artista.
9 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Felicitá e Utopia na Cultura Artística Portuguesa dos Séculos XV e XVI. A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumiraa que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso português de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes e Diogo Teixeira, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza.
•Artes liberais é o termo que define as metodologias de organizadas durante a Idade Média, a partir de um conceito estruturado na Antiguidade clássica (greco-romana). Referem-se aos ofícios, disciplinas e profissões («artes») mecânicas ou liberais, desempenhadas por homens livres. •São compostas pelo TRIVIUM (Lógica, Gramática, retórica) e pelo QUADRIVIUM (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Tal conceito opunha-se ao das Artes Mechanicae (artes mecânicas), que eram consideradas próprias de servos e escravos.•A personificação das Sete Artes Liberais (Trivium et Quadrivium) foi um tema iconográgfico muito comum nas artes medieval e modrerna, ainda que por razões diferentes.
Chamamos a este debate o polémico ensaio de Claude-Gilbert Dubois Le Bel aujourd’hui de la Renaissance (2001), que nos revela que, bem no coração dos nossos dias, persistem de algumas mal pressentidas atitudes epi-renascentistas, nos sinais de representação mimética, na valorização de uma estética de Belo clássica, da natureza e da memória patrimonial, na perduração da consciência da liberalitá dos artistas, e no sentido da última e grande utopia da individualidade partilhada e do ecumenismo fraternal -- valores sob cuja óptica vivemos, criamos e avaliamos as coisas segundo graus de consciência mais ou menos diluídos..