Sumários
Definições de arte: o debate em torno dos «ready-made» de Marcel Duchamp.
2 Outubro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A Filosofia de Theodor Adorno (1901-1969), considerada uma das mais complexas do século XX, fundamenta-se na perspectiva da Dialéctica marxista e define arte como o discurso do inexprimível. Uma das suas mais importantes obras, a Dialéctica do Esclarecimento, escrita em colaboração com Max Horkheimer durante a Segunda Grande Guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo (ou uma crítica, fundada em uma interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista, que Adorno chama de «indústria cultural»). Também é uma crítica à sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico.
Com o Romantismo, a Fenomenologia, o Positivismo, o Marxismo, a Psicologia da Arte, a Sociologia da Arte, e outras correntes, surgiram distintas interpretações de "arte". A dificuldade de definir o conceito está na directa relação de dependência com a conjuntura histórico-social e cultural que o faz surgir, já que quando um estilo é criado, tende a quebrar os sistemas e códigos estabelecidos. Arte é um termo que vem do latim, e significa técnica/habilidade. A definição de arte varia de acordo com a época e a cultura, por ser tanto arte rupestre, como artesanato, arte da ciência, da religião e da tecnologia. Actualmente, o conceito é usado para definir uma actividade artística e o seu produto. A arte é uma criação humana com valores estéticos, como sejam a beleza, equilíbrio, harmonia, intenção crítica, que representam um conjunto de procedimentos utilizados para realizar obras. Para Theodor Adorno e os marxistas da escola de Frankfurt, arte é o incognoscível, aquilo que é não discernível. Para os povos primitivos, a arte, a religião e a ciência andavam juntas na figura, e originalmente a arte poderia ser entendida como o produto ou processo em que o conhecimento é usado para realizar determinados objectivos: magia, superstição, ritualidade, poder de intervenção e busca da espiritualidade. A arte é sem dúvida um reflexo do ser humano e representa sempre a sua condição social e essência de ser pensante.
Em 1914, quando eclode a Primeira Guerra Mundial, houve perturbações nos conceitos artísticos, em torno do conceito de “modernismo”. Desestabilizando os valores estabelecidos, surge o Dadaísmo, a partir de uma reunião em Zurique. Os artistas e intelectuais contrários à adesão de seus países à guerra exilam-se em Zurique. Num encontro no Cabaré Voltaire fundam o movimento dadaísta. O nome foi dado por Tristan Tzara, poeta húngaro que o escolheu ao acaso, apontado para um dicionário. A palavra “dada”, cavalo de pau em francês, torna-se marco do movimento (a falta de relação directa do termo com este foi considerado algo sem importância, já que para os fundadores a arte não fazia mais sentido, pois todo o pensamento racional se tinha perdido com a guerra). O dadaísmo sugeria a criação artística como algo ao acaso, esforço para que a arte se libertasse do pensamento lógico, racional. Tinham aversão aos valores tradicionais, que tinham sido supervalorizados e haviam desencadeado a guerra. Utilizaram-se de sátiras e críticas para demonstrar o descontentamento com tais processos. Marcel Duchamp foi um dos artistas do movimento dadá. Ao tentar expor em galeria uma sanita virada a que chamou “fonte”, abriu um fecundo debate: a sua “obra de arte” foi tratada como simples mictório, mas a mensagem passou, pois impôs a revisão de alguns conceitos. Afinal, um urinol não poderia ser arte? O acto de o virar e titular como «fonte» não podia ser tratado como acto artístico? Duchamp colocou na peça outro nome como autor da mesma (R. Mutt,), para mostrar que o facto do artista ser desconhecido também influencia na opinião das pessoas. Antes de criar a “fonte” em 1917, já havia criado a “roda da bicicleta” e o “porta-garrafas”, que fazem parte do conceito por si criado de READY-MADE. Tal conceito traduz a ideia de transformar objectos comuns em obras de arte. Duchamp selecionava objetos quotidianos, produzidos em massa, sem valor estético aparente, e expunha-os em galerias e museus, assumindo-os como obras de arte. Assim, Duchamp fez com que o público repensasse os conceitos de arte. Expondo objectos comuns como obras de arte, ele faz, portanto, uma dura crítica aos “códigos” tradicionais da arte e abre um campo duradoiro de debate e reflexão teórica.A Fonte é um urinol de porcelana branco, considerado uma das obras mais representativas do dadaísmo, criada em 1917, sendo uma das mais notórias obras do artista Marcel Duchamp (Blainville-Crevon, 1887-Neuilly-sur-Seine, 1958). Duchamp optou pela nacionalidade americana em 1955. Inventou os ready-mades. A obra sofreu um ataque a 6 de Janeiro de 2006 no Centre Pompidou, em Paris, por um francês de 77 anos que a atacou com um martelo. O vândalo foi detido logo em seguida e alegou que o ataque com o martelo era uma performance artística e que o próprio Marcel Duchamp teria apreciado tal atitude... A obra sofreu apenas escoriações leves.
Faz-se referência, enfim, à definição de arte em Berys Gaut -- em torno dos 'ready-made' -- e o novo campo de debate que se abriu em torno do conceito artístico.
Visita de estudo.
28 Setembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Visita de estudo à Exposição VERGÍLIO CORREIA -- UM OLHAR FOTOGRÁFICO, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Vergílio Correia Pinto da Fonseca
(1888-1944) é uma das mais extraordinárias personalidades da cultura portuguesa
da primeira metade do século passado. Dotado de qualidades ímpares no campo da
investigação, estudo e análise do património, iluminado por gostos
multifacetados, foi não só o arqueólogo que deu a conhecer o megalitismo do
Alentejo e que revelou o essencial do oppidum romano de Conimbriga, como
também o antropólogo que ajudou a renovar os estudos da Etnografia portuguesa
e, ainda, um notável historiador de arte, museólogo e professor universitário.
Muito conhecido como o mais importante dos arqueólogos descobridores da cidade romana de Conimbriga e um dos seus principais investigadores, foi também empenhado antropólogo e, sobretudo, notabilíssimo historiador de arte, uma disciplina cujos princípios e metodologias ajudou a renovar. A revelação recente do inestimável conjunto de fotografias em chapa de vidro da autoria de Vergílio Correia, dadas a conhecer por Miguel Pessoa e Lino Rodrigo (Centro de Estudos Vergílio Correia, de Condeixa-a-Nova, que conserva esse acervo), veio revelar, ademais, a sua sensibilidade de fotógrafo e a grande sensibilidade com que se dedicava a testemunhar, como antropólogo esclarecido, as vivências populares. Parte desse acervo será tema de exposição no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a partir de 9 de Junho próximo. Também o fundo documental, com a sua correspondência e notas de viagem, conservado no ANTT e só em data recente disponibilizado à investigação, permite esclarecer e completar inúmeros aspectos da vida e obra de Vergílio Correia.
Professor da Universidade de Coimbra, formou gerações de alunos na sensibilização pelo património histórico-artístico nacional, dentro de uma nova perspectiva de análise comparatista e globalizadora dos monumentos e obras de arte. Estudioso apaixonado dos achados de Conímbriga, sobre a qual muito escreveu desde 1909, dedicou-se a investigá-los de modo profícuo; porém, como diz Jorge Alarcão, «a morte prematura sobrevinda aos 55 anos não lhe deu tempo de escrever sobre este oppidum a monografia que por força havia de trazer em mente». Já no campo da História da Arte deixou vasta bibliografia de referência ainda hoje incontornável, sobre temas como a tumulária gótica, a arte manuelina, a pintura do Renascimento, a talha barroca, o azulejo, e a museologia, entre muitos outros temas em que foi observador pioneiro, e legou-nos ainda os grandes Inventários Artísticos da Cidade e Distrito de Coimbra (edição da Academia Nacional de Belas Artes), completados após a sua morte por António Nogueira Gonçalves e que são, também, inovadores nos critérios de recenseamento e descrição de peças. Os seus estudos de História da Arte tornaram-se incontornáveis para a investigação em muitos campos da cultura dos nossos. É o caso da observação estilística das obras ou do estudo da relação entre comitentes e artistas no processo criativo. Também na Etnografia os seus interesses se manifestaram, fruto do convívio com José Leite de Vasconcelos, gerando artigos na Águia ou a síntese Arte Popular Portuguesa, primeira sistematização no âmbito da nossa Antropologia antes dos discursos de folclorização e descaracterização associados à propaganda oficial do Estado Novo. Etnógrafo, Arqueólogo e Historiador de Arte, além de museólogo, fotógrafo, ensaísta, pedagogo e professor universitário, grangeou renome internacional e obra imensa que a morte prematura incompletou: Vergílio é uma das figuras máximas da cultura portuguesa do século passado. Em fidelidade ao seu «ardente anelo da justiça e da igualdade perante a lei e as condições gerais da existência, que lhe alentou o ideal de cidadania», diz Joaquim de Carvalho em 1946 no prefácio às Obras (vol. I), «as três disciplinas conviveram fraternalmente no seu espírito, tanto mais que as considerava metodologicamente da mesma maneira e com idêntico sentido de objectividade: se a exploração do terreno determina o único caminho admissível na Arqueologia, a colheita directa dos factos e dos testemunhos documentais, auxiliada pela comparação de visu, pareceu-lhe ser também o método idóneo da Etnografia e da História da Arte» (Joaquim de Carvalho, idem, 1946).
No campo da História da Arte, foi à luz dos princípios teóricos e metodológicos de Vergílio que essa disciplina em boa verdade se iniciou em Portugal, sem aquela teia formalista e visão redutora que era então dominante. Os seus interesses de estudo não se limitavam a Alcobaça, à Batalha, aos Jerónimos e aos grandes monumentos e ‘nomes’, mas a uma visão patrimonialista globalizante, com atenção às artes decorativas, como o azulejo e a talha, o fresco e o estuque, o esgrafito e a terracota, o embrechado e o brutesco, entre outras modalidades artísticas até então sempre menorizadas. Era, ademais, um homem de causas, educado nos princípios republicanos e defensor das liberdades cívicas. Detinha uma visão intelectual formada nos princípios cívicos de cidadania republicana, a que sempre manteve fidelidade e se atestam em fases ainda pouco esclarecidas, como a filiação maçónica na loja A Revolta, de Coimbra, ou as ‘amizades perigosas’ com o grupo democrático do comandante Aragão e Melo, que levariam à sua breve prisão no Aljube, em 1932. O reconhecimento das suas altíssimas capacidades permitiu, porém, que em tempos difíceis pudesse prosseguir a sua carreira universitária e museológica. Avulta em toda a sua vasta obra uma personalidade extraordinária, com múltiplos interesses, muitas vezes esquecida pela desmemória e ingratidão dos homens mas que guarda plena actualidade e urge, por isso, voltar a conhecer.
Fases de construção de um trabalho de análise integrada de uma obra de arte.
25 Setembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
•FORTUNA
HISTÓRICA – Recolha
de dados sobre a peça; investigação de fontes (bibliotecas, arquivos,
entrevistas) e crítica heurística; definição de estilo e época; inquirição
sobre as questões QUANDO SE FEZ, QUEM FEZ, COMO SE FEZ, PORQUE É QUE SE FEZ,
POR QUEM SE FEZ, POR QUANTO SE FEZ… Análise iconográfica, formal e descritiva.
Primeira caracterização geral da peça.
•FORTUNA
CRÍTICA – Análise
comparativa com outras peças; investigação relacional; análise estilística e
iconológica; integração em contexto alargado; definição de problemas; estudo trans-contextual
da peça na sua vivência entre a época de factura e o nosso tempo, à luz dos
mercados, das avaliações e das críticas.
•FORTUNA
ESTÉTICA – Análise
estética: O QUE É A OBRA ? O percurso amadurecido da pesquisa abre perspectivas
para se ver melhor a peça e saber apreciá-la à luz das suas reais
potencialidades criadoras.
A representação artística assume uma série de características particulares de comunicação, de assunção de valores, de fascínios visuais, de inter-textualidade e de trans-memória, que a tornam – sobretudo quando, além de tudo isso, tem ainda a qualidade criadora e a pulsão inventiva – uma espécie de objecto artístico-patrimonial dotado de grande fortuna. Exige, por isso, cuidados preventivos, deveres de conservação e de fruição e, antes de mais, estudo integrado, apto a reconstituir contextos espacio-temporais específicos e a devolver-lhe memórias perdidas. Esse é o sentido da teoria e da prática da História da Arte.
Estuda-se, como exemplificação prática de uma leitura integrada e sob várias perspectivas de análise, o quadro da oficina de Vasco Fernandes (Grão Vasco), 'Cristo em casa de Marta e Maria', de c. 1530, que pertenceu ao antigo retábulo da capela do Paço do Fontelo, em Viseu, e se expõe no Museu Grão Vasco.
As Obras de Arte face à Iconoclastia, à Ruína e à Destruição.
21 Setembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
O PODER DAS IMAGENS E A PRÁTICA DA ICONOCLASTIA
O estudo das obras de arte consciencializa-nos para o facto de as peças sofrerem perdas substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas e destruídas, sendo ‘desmemorizadas’ por falta de registo e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária…
Em nenhuma outra época de incremento da produção artística religiosa como sucedeu nos séculos da Contra-Reforma, a imagem pintada e esculpida atingiu um tão elaborado sentido de utilidade didascálica. As virtudes da imagética destinada ao culto extravasavam então a própria consciência da sua qualidade formal, sempre recomendada, para abarcar também, e sobretudo, intrincadas complexidades doutrinárias e propagandísticas, aptas a clarificar os códigos de representação e a torná-los úteis na sua relação com as comunidades do seu tempo e do futuro. O conceito de arte senza tempo que se entretece no pensamento, na palavra e na pena dos teólogos católicos dos primeiros anos da Contra-Reforma, e que mereceu a Federico Zeri brilhantes reflexões reunidas num ensaio incontornável, desenvolve-se na segunda metade do século XVI privilegiando uma linguagem artística virtuosa, clara, eficaz, apta a exaltar os sentimentos religiosos e, por isso, contrária tanto aos desvios paganizados do Renascimento como aos excessos e ousadias formais do Maneirismo. É certo que a consciência de uma nova era de Catolicismo triunfante e eterno, sob signo da Roma Felix de Sisto V, se desenvolveu apoiada na vontade esclarecida de renovar as fórmulas artísticas, tanto na sua função como na sua qualidade, em nome de um crescente naturalismo que a pintura do fim do século XVI e do pleno século XVII viria a adoptar de modo generalizado, a partir de Florença e de Roma, como modelo preferencial depois seguido em todos os espaços da cristandade, dentro e fora da Europa. Todavia, se a verificação do comportamento oficial da Igreja face às imagens de culto é fácil de entrever – em nome da renovação, da clarificação e da exaltação --, torna-se hoje mais difícil de reconstituir o verdadeiro sentido dessa absoluta reforma operada no campo artístico do mundo cristão, quando entretanto se foi perdendo o uso social da linguagem simbólica que dava corpo a tais produções e quando é essa própria linguagem simbólica que viu diluído o seu significado original pela des-memória das intenções patentes no acto de criação. O trabalho a fazer cabe, portanto, a equipas interdisciplinares, envolvendo os historiadores de arte, através dos levantamentos de campo e das análises de obras à luz da Iconologia, e os investigadores da História da Igreja, através de estudos de caracterização das correntes de espiritualidade e de piedade popular e dos mecanismos de propaganda. A perda do uso simbólico das imagens religiosas dos séculos XVI e XVII, na sua dimensão sígnica, sintáctica, ideológica e conceptual, impõe hoje o aprofundamento de estudos de reconstituição, passíveis justamente de ser cumpridos através do enfoque iconológico.
A compreensão – por exemplo – das razões de práticas iconoclásticas dentro e fora da Igreja, da hierarquização dos níveis de propaganda e de esclarecimento, das estratégias de empolamento de certos acontecimentos e «histórias sagradas», das lógicas de exaltação ou de condenação deste ou daquele temário, obrigam a estudar em profundidade as complexidades e as transcendências dos códigos de representação de um tempo determinado, à luz da sua ideologia. A dificuldade maior está precisamente no facto de se ter verificado a perda de uma consciência social que nos torna impotentes face ao que certas representações artísticas da Contra-Reforma nos comunicam, como se os seus símbolos tivessem deixado de funcionar, assim como os arquétipos psicológicos e morais que elas veiculavam. Essa a dificuldade maior dos estudos de História da Arte, independentemente da época histórica em apreço, pois do que se trata de analisar sempre através das formas estéticas é a linguagem visual de símbolos que muitas vezes já perdeu sentido. Não obstante, a sobrevivência cíclica das dimensões simbólicas nas formas de representação, intuída por Aby Warburg ao definir o conceito de Nachleben como memória inconsciente das formas transmigradas, permite pôr a tónica dos estudos artísticos no terreno da Iconologia e apurar, a essa luz, quais os significados ocultos e os códigos de representação das obras de arte que nos chegaram sob o manto de espesso mistério.
Por isso as obras de arte sofrem, alteradas, ofendidas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção. Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela disciplina. As medidas de censura foram uma constante no processo criativo dos artistas, ao longo dos séculos, com ênfase da Idade Moderna (mas também nos nossos dias…). No século XVI, atingiu níveis inimagináveis, por efeitos da Reforma protestante, na Europa, e das conquistas dos novos Impérios, no Oriente e nas Américas. Com a Contra-Reforma católica, valores com o decorum e a fidelidade aos cânones de Trento acentuam no mercado das artes esse aspecto de contrôle, de censura e de combate a todos os desvios que pudessem ser vistos como heterodoxos. A pintura, a escultura, o azulejo e outras artes dos séculos XVI, XVII e XVIII dão bom yestemunho desse tónus esconjuratório e de estremada vigilância de costumes da parte de quem comprava e consumia obras de arte (sobretudo sacras).
Assim, as manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso (nas colónias, do Brasil à Índia) e na redobrada vigilância do modo como agiam os artistas e os detentores de «imagens sagradas», ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentuava em nome do combate ao paganismo e à idolatria, contra manifestações religiosas autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa)…
Existiu sempre da parte dos homens – e continua infelizmente a existir – uma deriva iconoclástica que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos:
Um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador
um iconoclasma destruidor do «outro»
um iconoclasma correctivo por razões morais
um iconoclasma correctivo por razões políticas
um iconoclasma correctivo por razões estéticas
um iconoclasma de intuito propiciatório
um iconoclasma de esconjuração do medo
um iconoclasma de apagamento da memória do «outro»
um iconoclasma de exegese
um iconoclasma de afirmação de «cultura superior»
um iconoclasma de afirmação utópica
Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias, para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquêsdestas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem ! Le Spirituel dans l’art de Kandinsky (1910) é exemplo da reflexão sobre forma e imagem segundo concepção filosófico-religiosa que pensa o código imagético como testemunho de memórias ancestrais e como testemunho de pontos de vista proféticos, rituais ou mágicos. Os regimes religiosos são quase sempre favoráveis (mesmo que de modo não declarado) ao uso da imagem, à sua sublimação do real e ao seu poder de sedução e/ou de intervenção. A dimensão do ‘sagrado’ percorre sempre, de modo mais ou menos inconsciente, o território da representação artística.
Os estudos de iconografia de arte religiosa da Idade Média têm sido levados a cabo com incidência, desde os ensaios fundamentais de Émile Mâle, quer em torno da narratividade dos programas hagiológicos tratados, quer na verificação da sua distribuição e estatística, quer na definição de códigos e atributos simbólicos, ou através da verificação mais ou menos fiel de estampas (em geral ítalo-flamengas), quer ainda em termos da especificidade de artistas e de «escolas». Tais abordagens são essenciais e abrem pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, de definição de gostos dominantes, etc, que vigoram na paisagem artística das épocas em apreço. Mas falta, também, saber analisar – com recorrência maior à Iconologia – as obras de arte (neste caso as da Contra-Reforma portuguesa) atentando num conjunto de aspectos e de procedimentos que, a ser cumprido com exaustividade, virá com toda a certeza iluminar-nos sobre um tema tão caro como é o das estratégias da representação imagética e das suas implicações sociais segundo o figurino dominante. Para quem entende a História da Arte como uma área científica dotada da mais vasta interdisciplinariedade, vocacionada para a prescrutação tanto quanto possível integral das obras de arte particulares, vistas como discursos estéticos fascinantes e inesgotáveis e marcadas por lógicas de programa interno e interdependências eu inevitavelmente mantêm com contextos ideológicos determinantes, esse será sempre o caminho de pesquisa a percorrer.
BIBLIOGRAFIA
Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L’arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, ed. Einaudi, Turim, 1957.
Flávio Gonçalves, «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, 6ª série, ano II, Porto, 1962.
Flávio Gonçalves, «A Inquisição portuguesa e a arte condenada pela Contra-Reforma», Colóquio, nº 26, 1963, pp. 27-30.
Eveline Pinto ao livro Aby Warburg – Essais Florentins, ed. Klinksieck, Paris, 1990.
Olivier Christin, Une révolution symbolique. L’iconoclasme protestant et la reconstruction catholique, Paris, 1991.
Alain Besançon, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994.
David Freedberg, The Power of Images, The University of Chicago Press, 1989 (trad. espanhola: El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid).
Catálogo da exposição Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, com coordenação de Cécile Dupreux, Peter Jezler e Jean Wirth, 2001.
Vitor Serrão, A trans-memória das imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa, ed. Cosmos, Lisboa, 2007.
Apresentação do Programa.
18 Setembro 2017, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
O programa desta disciplina visa abrir as vias para a investigação histórico-artística e o estudo das obras de arte, desde a análise histórica, iconográfica, estética e iconológica dos estilos e movimentos estéticos que se sucederam no tempo histórico, à ênfase a exemplos da arte portuguesa, contribuindo para definir os conceitos e objectivos fundamentais desta disciplina, ramo científico da Ciência das Humanidades.
A cadeira fornece ferramentas operativas de análise de investigação sobre as obras de arte, ao longo dos séculos, e abre interesses para outras tarefas inerentes à prática do historiador de arte, desde a gestão integrada de bens patrimoniais, à colaboração em equipas e laboratórios de conservação e restauro, à prática museológica, à inventariação de bens imóveis e móveis, à curadoria de exposições, ao controle e segurança das obras de arte, ao mercado de compra e venda, e à intervenção na área do turismo cultural. Dá-se enfoque à organização da chamada Fortuna Crítica e à Iconografia e Iconologia, instrumentos operativos da ciência histórico-artística, tal como foi posta em prática, de Aby Warburg a Erwin Panofsky, passando por E. H. Gombrich, David Freedberg, George Didi-Huberman, Daniel Arasse, Arthur C. Danto, à Sociologia da Arte e à tradição recente de estudos iconológicos (Hans Belting), sem esquecer o conceito de aura defendido pelo filósofo Walter Benjamin.
A disciplina estuda a génese da História da Arte em atenção à problemática da construção de um discurso científico face da reivindicação de autonomia da arte, e as metodologias de abordagem com abertura a cruzamentos interdisciplinares, consciencializando para as práticas da conservação e da salvaguarda, e os inerentes conhecimentos de museologia e de organização estruturada de uma pesquisa analítico-descritiva devidamente contextualizada. O programa enfatiza, assim, a urgência em formar profissionais aptos a assumir o estudo integrado da arte em perspectiva pluridisciplinar, numa visão alargada do fenómeno artístico com incidência no caso português e das artes do antigo império colonial.
Conteúdos programáticos
I. Introdução
1. A disciplina da História da Arte (autonomia, dimensão, utilidade) e o agente da disciplina (de connoisseur a historiador-crítico de arte)
2. As grandes correntes da disciplina
3. A relação da história da arte com outras áreas e saberes científicos
4. Os agentes da produção artística: artistas, encomendantes, mecenas, clientes.
II. As disciplinas da Arte (exemplos e estudos de caso)
1. Arquitectura
2. Escultura
3. Pintura
4. Artes Decorativas: Azulejo, Talha, Tapeçaria, Mobiliário
5. Outros géneros: Gravura; Fotografia; Design; Banda Desenhada
6. Breve evolução dos “estilos”, da pré-história à contemporaneidade.
III. Métodos de investigação na disciplina da História da Arte
1. A investigação heurística e a pesquisa de arquivo: as fontes (manuscritas e iconográficas), sua recensão, organização e tratamento
2. A pesquisa bibliográfica: elaboração de uma ficha de leitura de obra de arte e de um estado da questão
3. A observação analítica da obra de arte: a obra de arte como principal documento do historiador de arte
4. As grandes correntes da disciplina, do positivismo, ao formalismo, à Sociologia da Arte e à História da Arte total
5. A investigação heurística e a pesquisa de arquivo: as fontes, sua recensão, organização e tratamento. A Icononímia. A regesta documental e a bibliografia
6. A construção de um trabalho de investigação: plano, corpo de texto, notas, organização de anexos. Diálogos do historiador de arte com o seu objecto de pesquisa: organização da Fortuna Histórica, da Fortuna Crítica e da Fortuna Estética
7. A História da Arte como globalidade: a Micro-História da Arte, a Cripto-História da Arte e a História da Arte Total
8. A ficha analítico-descritiva da obra de arte particular.
IV. Fontes e géneros literários da História da Arte
1. Os tratados de arte (Vitrúvio, Leon Battista Alberti, Lorenzo Ghiberti, Andrea Palladio, Sebastiano Serlio)
2. As biografias de artistas (Giorgio Vasari, Giovan Pietro Bellori, Cirillo Volkmar Machado)
3. Os diários de artistas (Jacopo Pontormo)
4. Os “diálogos“ (Pomponio Gaurico, Francisco de Holanda)
5. As “parangonas” (Benedetto Varchi)
6. Os manuais técnicos (Teófilo, Cennino Cennini, Filipe Nunes).
V. A história da arte e a conservação / revalorização do património artístico
1. O inventário de património artístico
2. Conservação das obras de arte
3. A musealização das obras de arte
4. «Monumento» e «Património» como valor absoluto.
5. Conceitos de «memória», «recuperação», «conservação preventiva»
6. A Gestão Integrada de Bens Patrimoniais
7. A UNESCO e as grandes medidas de protecção dos bens culturais e artísticos.
Nota: Os conteúdos programáticos estão divididos em 4 blocos temáticos (além da Introdução). Cada bloco contempla sempre a abordagem dos objectivos de aprendizagem de forma integrada. Regista-se uma grande insistência na análise de casos de estudo que permitam atingir os referidos objectivos.
Metodologias de ensino (avaliação incluída)
As sessões lectivas, de carácter teórico-prático, serão complementadas com actividades extra-curriculares, como visitas de estudo (a monumentos, museus e exposições, permanentes ou temporárias), conferências e / ou colóquios, etc.
Avaliação: 1 teste presencial e 1 trabalho de investigação (preferencialmente de carácter monográfico), cujo desenvolvimento procurará contribuir para a capacidade de recolher e analisar informação de diversas fontes, de comunicar na língua materna de forma oral e escrita, de contactar peritos de outras áreas e, do ponto de vista temático, suscitar a sensibilidade para a diversidade de perspectivas e abordagens. As sessões lectivas, de carácter teórico-prático, serão complementadas com actividades extra-curriculares, entre as quais se destacam visitas de estudo (a monumentos, museus e exposições, permanentes ou temporárias), conferências e / ou colóquios, etc.
A avaliação efectuar-se-á através da realização de 1 teste presencial e de 1 trabalho de investigação – ficha analítico-descritiva de obra de arte à escolha do aluno – que deve ser original, bem escrito, com domínio da análise crítica, e que poderá ser apresentado oralmente e discutido numa aula extra, em início de Janeiro.
VISITAS DE ESTUDO
As sessões lectivas, de carácter teórico-prático, serão complementadas com actividades extra-curriculares, entre as quais se destacam visitas de estudo (a monumentos, museus e exposições, permanentes ou temporárias), conferências e / ou colóquios, etc.
Objectivos de aprendizagem (conhecimentos, aptidões e competências a desenvolver pelos estudantes): Proporcionar o acesso a um conjunto de noções de carácter teórico e artístico no contacto com os monumentos e as obras de arte, nas suas componentes históricas, técnicas, materiais, iconográficas, iconológicas e estéticas, em como a um conjunto de conhecimentos gerais de identificação e contextualização que permitam ao aluno adquirir uma série de competências, designadamente: 1.Competências instrumentais: capacidade de compreensão e manipulação de ideias, conducente à realização de análises e sínteses, de apreciação / identificação de obras de arte, de recolha crítica de informação oriunda de diversas fontes, e desenvolvimento de níveis de decisão com vista à resolução de problemas que a História da Arte impõe. 2.Competências interpessoais: realização de trabalho integrado em equipas interdisciplinares, habilidade para comunicar com peritos de outras áreas, sensibilidade para a diversidade e multiculturalidade, consciência de salvaguarda do património comum, compromisso ético, social e profissional. 3.Competências sistémicas: aplicação de conhecimentos à prática, capacidade técnica de investigação, de gerar novas ideias, de contribuir para a capacidade de recolher e analisar informação de diversas fontes, de comunicar bem na língua materna de forma oral e escrita, de contactar peritos de outras áreas e suscitar a sensibilidade para a diversidade de perspectivas e abordagens, e de compreensão de outras culturas, com espírito de iniciativa e empreendimento.