Sumários

À procura de correspondências e divergências entre a obra Gaspar de Peter Handke e algumas proposições do Tratado Lógico-Filosófico de Ludwig Wittgenstein com a visita de Kandinsky.

27 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Wassily Kandinsky, Composição VIII, 1923

Óleo sobre tela, 140 x 201 cm

Museu Solomon R. GuggenheimNova Iorque, EUA

 

Iniciámos a nossa aula contemplando imagem de uma tela de Kandinsky do período em que o artista plástico era professor na Bauhaus em Weimar. A ideia que inspirou esta chamada da arte abstracta ao diálogo entre Handke e Wittgenstein esteve relacionada, por um lado, com a teoria da imagem do filósofo da linguagem austríaco na obra Tratado Lógico-Filosófico (1921) e, por outro lado, com o aproveitamento que esta teoria inspirou no dramaturgo Handke, na altura em que ele defendia uma estética de cena e de representação baseada em actos construtivos de linguagem, jogos corporais e de vozes criados sob o signo da formalização.

Ora a tela de Kandinsky, na sua chamada construção abstracta, porque nela não ocorre qualquer representação figurativa, pareceu-nos ser um bom exemplo para a abertura da discussão. A teoria da composição em Kandinsky aparece pela primeira vez delineada no final de Sobre o espiritual na arte (1912), onde o artista explica a articulação entre três categorias distintas: Impressão, Improvisação e Composição. As Impressões dizem respeito a expressão desenhística ou pictórica de uma «impressão directa» da «natureza exterior.» As improvisações são «expressão preferencialmente «inconsciente e «súbita» de «impressões da natureza interior. As Composições são «expressão intencional, racional, consciente, especialmente lenta de impressões interiores. (123-124).

Não prevendo que Handke tivesse recorrido à explicitação de Kandinsky sobre a categoria Composição, ela adequa-se afinal àquilo que pudemos acompanhar da obra Gaspar como processo de dar a ver e a ouvir (para nós um ouvir mental) daquele percurso de Gaspar em cena desde que aí nasce até à assunção do processo por que passa.

Mas Kandinsky ainda nos ensina mais qualquer coisa. Já na década de trinta, o pintor que frequentemente comparava a composição musical à composição pictórica diz o seguinte: «The musical composition without words presents a purely musical world – without a literary narrative, This narrative [the object] is also lacking in a work of “concrete” painting – it presents a purely pictorial world.» (Kandinsky 1994, Complete Writings on Art: 841)

É através deste mundo pictórico puro que a Composição VIII nos contempla. A forma e a objectividade da disposição dos elementos e das cores na tela podem permitir toda a fantasia do observador (A Alexandra referiu descortinar na obra uma fábrica e um olho) mas este tem de estar preparado para recriar no seu interior aquilo que vê de facto e que não tem de remeter para uma referencialidade exterior ao quadro. Sermos simples como as crianças é o conselho de Kandinsky.

Na sua teoria da imagem, Wittgenstein desenvolve a ideia de que todas as formas de representação são pictóricas no carácter e na lógica, isto é possuem uma plasticidade própria, constituem forma orgânica da imagem. (2.1 – A imagem é um modelo da realidade. TLF 34; 2.14 – O que constitui uma imagem, é os seus elementos relacionarem-se entre si de modo e maneira precisos. TLF 35); 2.151 - A forma da representação pictorial é a possibilidade de as coisas se relacionarem entre si, como os elementos da imagem. TLF 35) – Kandinsky estaria absolutamente de acordo com Wittgenstein. Não só a linguagem mas outros objectos não-linguísticos, como fotografias, telas, esculturas podem ser alvo (e Handke diria peças de teatro como Gaspar) da inspiração destas proposições. Gaspar existe e manifesta-se como linguagem e linguagem corporal segundo formas pictoriais que se vão desenvolvendo num processo de aprendizagem na interacção com os pontos-instrutores e mais tarde com os cinco Gaspares que multiplicam acções do protagonista.

Olhar para Gaspar como um quadro que se vai multiplicando e acrescentando e organizando de cena em cena, de coluna em coluna, a três dimensões, é uma possibilidade curiosa de pensar a arte cénica. Deste quadro a esfera do teatro handkiano exclui tudo o que se não adeque ao jogo, tudo o que seja sério, tudo o que seja inequívoco, tudo o que seja conclusivo. O que acontece fora do teatro e que constitui um conjunto vasto de realidades com que nos confrontamos não participa da proposta de Handke para quem o teatro é um acto de transformação entre jogo e forma. O teatro de Handke dos anos sessenta não se ocupava em apresentar ou apontar soluções mas em representar com contradições.

Volto a chamar a imagem da Composição VIII de Kandinsky onde cada elemento está formalmente organizado sem a preocupação de replicar a realidade. Talvez a referida Composição queira fazer falar o REAL, uma diferente categoria cara aos românticos alemães e que defende a poetização do mundo. O quadro de Kandinsky para adivinhar um sem número de sentidos da vida. A peça de Handke não se liberta das influências e do enquadramento que sobre ela exerce uma realidade histórica (Kaspar Hauser e o seu relator) sociológica, moral e jurídica. O pensamento de Wittgenstein ajuda Handke a estruturar uma possível aplicação do pensamento lógico sobre linguagem ao teatro.

A colaboração de Wittgenstein para algum do entendimento que podemos ter da peça Gaspar situa-se ainda no âmbito das proposições por ele sistematizadas para defender que toda a linguagem possui uma forma lógica e que essa forma lógica espelha o mundo.

A peça Gaspar poderá assim ser entendida como a simultânea aprendizagem de uma lógica através da linguagem e com ela o mundo e a sua lógica. A totalidade dos factos que compõem o mundo e que a linguagem exprime só permitem que 6.54 - «Acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio.» (TLF 142) Mas porque o silêncio também tem legibilidade, mesmo que a sua lógica seja uma outra qualquer, a personagem Gaspar não esquece que entre o sujeito empírico e o sujeito teatral existe um vasto e diverso mundo nem sempre relacionável, nem sempre aceitável.

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

KANDINSKY, Wassily 1991, Do Espiritual na Arte, Prefácio e nota bibliográfica de António Rodrigues, Tradução de Maria Helena de Freitas, Lisboa: Publicações Dom Quixote.

LINDSAY, Kenneth C. and VERGO, Peter 1994 (Ed.), KANDINSKY – Complete Writings on Art, New York: Da Capo Press.

WITTGENSTEIN, Ludwig (6ª) 2015, Tratado Lógico-Filosófico * Investigações Filosóficas, Tradução e Prefácio de M. S. Lourenҫo, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Excertos distribuídos aos alunos.)


Avaliação

25 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Realização do primeiro teste de avaliação de conhecimentos com consulta.


De como um desafortunado rapaz se transforma em obra de arte

20 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Conclusão do visionamento do filme O enigma de Kaspar Hauser de Werner Herzog.

Breve diálogo sobre questões relacionadas com o entendimento da peça Gaspar de Peter Handke.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

HERZOG, Werner 2014, Interviews, edited by Eric Ames, Mississippi: University Press, 24-28.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH

 

DVD em visionamento:

Werner Herzog, O enigma de Kaspar Hauser, DVD, 1974, 1h:45m:05s 


Kaspar Hauser pela mão de Werner Herzog

18 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

Visionamento do filme de Werner Herzog O Enigma de Kaspar Hauser (Cada um por si e Deus contra todos) até 1h:15m:29s.

No início do visionamento fizemos referência à opção estética de Herzog em conjugar sequências de paisagem natural, campos ao vento de que se tornam visíveis os seus ritmos e movimento, com obra musical de Johann Pachelbel, compositor do barroco alemão, nascido e falecido em Nürnberg. A obra musical escolhida vem acompanhada da seguinte descrição na Wikipédia: «Cânone em Ré Maior é uma obra de câmara do compositor alemão Johann Pachelbel. Nessa peça, agora famosa, três violinos tocam o cânone (cada parte entrando com a mesma música a dois compassos de intervalo), enquanto um baixo contínuo executa uma passagem de fundo curta e simples de oito notas repetida sucessivamente, no caso, cinquenta e quatro vezes. O tema é bem simples, começando com notas longas e lentas, tornando-se então mais rápido e mais ornamentado à medida que progride.

Embora a música de Pachelbel fosse bem vista na época, esse pequeno cânone permaneceu um tanto obscuro até recentemente, conquistando o seu actual status como marco do repertório clássico apenas no fim da década de 1970. Foi adaptado para orquestras completas para quarteto de cordas, como obra para teclado solo e em incontáveis outras versões incluindo remixes pop e rock como o famoso Canon Rock

Chamou-me a atenção, neste contexto, o entendimento desta partitura como obscura. O seu desenvolvimento parece evoluir do simples para o complexo e com um sentido harmónico elaborado, claro, mas vivo, o que aliás era característico da música barroca. Não sei se Herzog conhecia esta particularidade na recepção da obra e se a escolheu em função desse atributo relacionando-a assim não só com os campos agitados pelo vento mas também com a origem obscura de Kaspar Hauser. É verdade que Pachelbel foi alvo de redescoberta no final dos anos sessenta e talvez Herzog o tenha, por isso, passado a apreciar melhor.

A articulação de imagem visual e música tem outros momentos no filme e sempre de forma muito particular. Existem também outras sequências de carácter recorrente como aquela que tem lugar, no início do filme, com o barqueiro solitário que lentamente atravessa o rio (talvez uma homenagem ao pintor suíço Arnold Böcklin e aos seus quadros aquáticos sobre a transitoriedade da vida) e o mesmo barco em movimento contrário ao anterior e transportando dois passageiros já o filme vai avançado.

Mais do que o enigma da história do protagonista, a que Anselm Feuerbach deu um precioso contributo esclarecedor, escrevendo o seu relatório judicial sobre um jovem de nenhures, o tratamento proposto por Herzog a esta história mantém pequenas obscuridades que ultrapassam o fluxo da narrativa fílmica e que se manifestam em diversos níveis simbólicos. Outro exemplo é a associação de Pentecostes com o corpo cheio de feridas de Kaspar.

Herzog inspira-se ainda numa outra obra-prima (a sua também o foi na década de setenta do século passado) mencionada em entrevistas ao realizador: A Paixão de Joana D’ Arc de Carl Dreyer. Para os mais entusiasmados com o cinema deixo aqui o repto.

Estabelecemos orientação de trabalhos de 13 alunos sobre o documento de Anselm Feuerbach não apresentados oralmente para que não houvesse desequilíbrio no avanço do programa. Foi proposto e aceite pelos respectivos implicados que redigissem um A4 em que integrassem a respectiva parte do relatório que haviam preparado antes em articulação com a peça Gaspar de Peter Handke. O objectivo destes trabalhos na sua forma futura procura demonstrar que Peter Handke teve conhecimento do texto de Feuerbach mesmo quando a ele renunciou. Sem Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen talvez não tivesse havido tantas obras literárias e artísticas sobre Kaspar Hauser. Interessante é o facto de tanto Handke como Herzog desvalorizarem perante outros o conhecimento deste testemunho.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

HERZOG, Werner 2014, Interviews, edited by Eric Ames, Mississippi: University Press, 24-28.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH

 

DVD em visionamento:

Werner Herzog, O enigma de Kaspar Hauser, DVD, 1974, 1h:45m:05s 


Numa segunda-feira de Pentecostes

13 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Um cada vez mais aprofundado conhecimento sobre Kaspar Hauser e a sua progressiva mas por vezes contraditória capacidade de sociabilização são-nos apresentados no Capítulo IV do livro-relato de Anselm Feuerbach. O autor do relatório faz questão de descrever com minúcia partes do dia do jovem Kaspar Hauser, salientando o seu estatuto de criança-adulto na aprendizagem operada as mais das vezes por imitação e ludicismo no contacto com crianças. (pp. 39-40) Através deste jogo afectivo e de integração Kaspar aprende a falar por fases demonstrando lento progresso. (pp. 40-42).

O seu parceiro na peça de Peter Handke não tem essa sorte, sendo até destituído de vontade própria, ao mesmo tempo que se vê multiplicado em outros Gaspares, réplicas que de si fornecem uma caricatura desajeitada das suas interacções. (pp. 64-75)

Ao contrário de Gaspar que é colocado num cenário desprovido de individualização, a estranheza causada pela figura de Kaspar Hauser, o modo como se desloca ou fica parado, o ritmo a que vai tentando conhecer o mundo são factores de perturbação para os habitantes de Nuremberg que com ele se comovem e lhe proporcionam ajuda.

De entre esses, alguns gostariam de o ver exposto numa feira de raridades, lugar público de divertimento onde se exibem pessoas e animais marcados pela sua diferença em relação à normalidade. (pp. 40-41, p. 42)

Sugere-se o visionamento de O Homem Elefante de David Lynch.

Associado à frase: «Caspar was not only an object of deep interest…» ou à qualificação da sua pessoa como «expressions of a half dumb human animal…» (p. 45) tomamos consciência de que o tom do discurso autoral pretende defender vários pontos de vista sobre Kaspar Hauser não sendo nunca vinculativo de uma única posição.

O jurista Feuerbach mantém uma cobertura deste caso que abrange diversas perspectivas do conhecimento (filosofia-ética, antropologia, biologia, sociologia, linguagem, e finalmente nos últimos capítulos a questionação de âmbito do direito penal).

A partir das pp. 59 e seguintes são-nos dadas a conhecer as possibilidades de acusação a que estará sujeito o camponês-tutor que manteve incomunicável durante anos a criança abandonada. Este novo elemento do relatório não dispensa porém que a perspectiva da vítima (narrada pelo próprio e escrita por outros) seja acautelada, i. e., que Kaspar veja a sua história ser levada a tribunal para que se apure em que moldes se fará justiça.

Neste contexto apercebemo-nos como a natureza parece ser questionada pelas transformações físicas e mentais que opera sobre os seres e de que não lhe podem ser assacadas culpas. (pp. 47-59) Apenas são visíveis os resultados. É, porém, também necessário que não seja esquecido o causador de tantos males infligidos a um ser indefeso, através de acção sucessiva de uma mente incapaz e inclemente (e não é a falta de cultura que pode servir de argumento).

Apercebemo-nos do interesse de Feuerbach pela questão jurídica que envolve este caso e de como a população de Nuremberg pode contribuir para o renascimento de Kaspar Hauser. A cidade adquire ainda um valor simbólico e religioso presente desde o início da narrativa: Kaspar chega numa segunda-feira de Pentecostes e transforma-se assim numa figura crística num lugar de renascimento.

O estudo de caso de Feuerbach ocorrido na cidade de Nuremberg (daqui para a frente escreverei Nürnberg actualizando a grafia do nome) inspirou muitas obras artísticas e literárias até aos nossos dias e este mérito ficou a dever-se também a diversos factores contidos na sua escrita – qualidade literária, sensibilização humanista e compaixão por um jovem indefeso e abandonado, capacidade pedagógica de intervenção na comunidade em que estava inserido, assunção da responsabilidade de ser tutor de Kaspar Hauser dedicando-lhe todo o afecto.

A peça de Peter Handke precisou com certeza do relatório de Anselm Feuerbach para o poder ignorar a seguir. O que terá conduzido o autor austríaco a produzir uma obra dramática que coloca Gaspar no plano da alienação como indivíduo?

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH

 

Vídeo de O Homem Elefante de David Lynch

https://www.youtube.com/watch?v=BCjIDYLQgO0