Sumários

Tutorar e Instruir

11 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Dedicámos esta aula ao trabalho capitular do relato histórico-jurídico de Anselm Feuerbach sobre Kaspar Hauser. Avançámos até ao final do capítulo III da obra em estudo.

Constatámos que o relato feuerbachiano consegue recuperar grande parte da informação sobre o adolescente Hauser desde a sua tenra infância até à chegada a Nuremberg, sendo a mesma filtrada por uma carta que o protagonista transporta consigo (p. 15). O testemunho constituído por essa carta diz respeito à voz tutorial do camponês que o recolheu e com ele viveu durante dezasseis anos. Expressa essa voz a vontade de que Kaspar possa vir «a servir o seu rei» (p. 13).

Este objectivo – servir o rei - passa completamente despercebido na elaboração do relatório de Feuerbach, pois o adolescente não é capaz de verbalizar essa pretensão perante outros, porque não aprendeu a expressar-se através da fala, tal como não aprendeu qualquer outra forma de comunicação ou relacionamento afectivo e cognitivo, nem teve oportunidade de crescer num corpo saudável. Porém, a condição precária do camponês-tutor e o medo de vir a ser punido pela lei colocam-no numa posição dúbia perante os leitores: ele é quem manteve Kaspar vivo durante dezasseis anos, ele é quem fez de Kaspar um ser anómalo. Esta dicotomia no tratamento do jovem órfão faz-nos pensar que o camponês-tutor não parece ter a capacidade de discernimento para perceber que Kaspar Hauser jamais poderá servir o rei e jamais poderá pertencer ao 6º Regimento dos Chevaux-legers a que pertenceu seu pai.

A peça Gaspar de Peter Handke preserva desta experiência relatada no documento de Feuerbach a deficiente condição física e mental do protagonista, descreve-a e orienta-a de forma primorosa (partes 1 a 17).

Do que foi possível apurar sobre o comportamento do camponês-tutor, o autor austríaco desenvolve nos seus pontos-instrutores a faceta mais perversa e que é causadora do sofrimento de Gaspar: a aprendizagem da linguagem. Esta ocorre de forma impositiva, brutal e confusa, exactamente ao contrário do que nos conta o relato de Feuerbach, desde uma primeira fase em que Kaspar apenas é capaz de pronunciar duas palavras: «bua» e «ross» (pp. 25-26) até à sua possível integração estruturada no universo da linguagem e da sociabilização (pp. 35-38).

Também neste contexto e para além dele poderemos recordar o que sabemos sobre a função de um ponto em teatro. Ele existe (ou existia) para ajudar ao melhor desempenho do actor. Os pontos-instrutores da peça de Handke têm exactamente a função de destruírem a personagem em cena roubando-lhe a sua natureza autêntica e a sua individualidade.

Kaspar Hauser é protagonista singular de uma história invulgar que destaca a sua condição individual. Gaspar é protagonista de uma peça de teatro mas a sua condição representativa pressupõe que a experiência por que passa seja extensível e entendível como vivência colectiva.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH


Entre criar ordem e querer afirmar a desordem

6 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Mantemos o estudo dramatúrgico em laboratório da obra Gaspar de Peter Handke. Desta vez concentrámo-nos no processo de consciencialização da aprendizagem de acções (contar e comparar, p. 42) pelo protagonista que não correspondem a uma aprendizagem natural. Esta processa-se na 1ª infância resulta normalmente de um desenvolvimento harmonioso da criança saudável. Na peça, Gaspar é um jovem adulto privado deste processo em tempo certo, alvo de uma estimulação excessiva e violenta para as suas capacidades cognitivas e afectivas e que o obrigam a tomar decisões sem tempo para as amadurecer.

Contrapusemos a esta constatação várias proposições enunciadas pelos pontos-instrutores e que se relacionavam de forma esvaziada e contraditória com a atitude para com o trabalho entre empregadores e empregados. Trabalhar não tem de ser uma tortura nem nos deve diminuir nem confundir independentemente das tarefas realizadas. Constatámos que o cenário apresentado na peça escrita há 50 anos mantém as mesmas linhas gerais na sociedade contemporânea.

Voltámos ao tratamento da linguagem, fonte primeira da aprendizagem de Gaspar, e constatámos que a parte 27 da peça (pp. 51-64) é a mais longa de todas as partes da mesma. Essa dimensão extensiva pretende acentuar uma fase do processo que se organiza em torno do agrupamento de frases e sua estruturação sintáctica, inclusão de pontuação, sem que exista compreensão de conteúdos e de significado. Voltamos aqui ao ponto de partida da aula: contar e comparar.

Curiosamente detectámos que algumas das frase de Gaspar poderiam ser pequenos poemas expostos (p. 52, pp. 53-54). E isto porque Gaspar não deixa de colorir as suas frases tornando-as metafóricas e abrindo caminho para a duplicidade das coisas e suas representações. Em contrapartida, os pontos-instrutores ocupam-se quase exclusivamente de frases estereotipadas. Acabamos por compreender a multiplicidade de caminhos que se desenvolvem entre ordem e desordem e a pertença dos mesmos às duas forças em conflito.

A parte 27 termina com uma citação (há outras) em que Peter Handke homenageia o seu conterrâneo Ödon von Horváth (1901-1938) ao inserir na peça a pergunta: «Porque é que apenas vermes tão negros esvoaçam aqui à volta?» A frase é retirada da boca da personagem Elisabeth, na peça Fé, Esperança e Caridade (1932), quando esta se pretende suicidar. A frase associa a morte a uma distorção espacial. A frase surge após Gaspar se esforçar por se reconhecer como indivíduo sob a alçada de um pensamento tautológico que representa o esforço físico e mental da personagem perante um conflito profundo. Tal como acontece com Elisabeth na peça de Horváth.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH


Feuerbach vs.. Handke

4 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Espectação sugerida de duas produções artísticas em exibição em Lisboa durante a segunda quinzena de Setembro: Fahrenheit 451 de Ray Bradbury adaptado e dirigido por Pedro Alves para o Teatromosca, apresentado no Teatro do Bairro (22 a 24 de Setembro, 1h20m) e Vortex Temporum, espectáculo de dança da coreógrafa belga Anne Teresa De Keersmaeker sobre a partitura homónima de Gérard Grisey, Culturgest (29 e 30 de Setembro, 1h).

 

Prossecução da actividade laboratorial com a peça Gaspar de Peter Handke. Primeira acção desenvolvida em torno da figura de Gaspar, do modo como se apresenta, de como cria ordem com objectos e peças de vestuário (até ao final da parte 25, p. 48): «posso contar. (…) posso comparar» (p. 42)  As cenas estudadas não contaram ainda com a intervenção auditiva das vozes dos pontos-instrutores.

Optámos antes por fazer vir a terreno o relatório jurídico-humanitário de Anselm Feuerbach sobre o jovem Kaspar Hauser, um caso de estudo sobre os efeitos da incomunicabilidade na vida do ser humano.

Foram ouvidos neste contexto os contributos das alunas Nisa Elisário, Ana Baltazar e Alexandra Comnos que se ocuparam do primeiro capítulo da obra em estudo, considerando nas respectivas intervenções partes da obra de Peter Handke que pudessem ter correspondência com o documento histórico.

 

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH


Laboratório dramaturgico

29 Setembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Laboratório dramatúrgico em torno da peça Gaspar de Peter Handke.

Respeitando a apresentação gráfica da obra em análise – divisão formal do discurso dos intervenientes em conflito e respectivas didascálias - foram criadas duas equipas de investigação entre os alunos presentes em aula. Essas equipas foram divididas em pequenos grupos cuja tarefa consistia em analisar ao pormenor os diversos sentidos e modos propostos pelo autor, quer para o protagonista, quer para os pontos-instrutores.

A função deste exercício, a continuar em aulas subsequentes, tem por objectivo alcançar um conhecimento justificado sobre a transformação operada pelos pontos-instrutores na personagem Gaspar no que à linguagem diz respeito.

A entrada em cena de alguém que consigo transporta uma frase que vai sendo abandonada por fragmentação e destituição de um sentido lógico próprio, sintacticamente correcta e com correspondência emocional, transporta em si um duplo enigma: Quem é Gaspar? Como é possível destituir alguém de uma memória de experiência pessoal, qualquer que ela seja, e que a linguagem reproduz, para em seu lugar introduzir um outro tipo de linguagem que se objectiva na manipulação, no exercício de poder gratuito, na criação de um ser automatizado?

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH


O enigma de uma frase

27 Setembro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Prossecução do comentário à obra Gaspar de Peter Handke na perspectiva da construção textual e do que ela implica para o leitor. A apresentação gráfica da obra como modo de provocar exigente esforço no leitor, que é obrigado a afastar-se de um procedimento de rotina – ler página a página didascálias e texto a ser dito -, para se adaptar à leitura por colunas que implica um procedimento de atenção mais exigente.

 

Questionação sobre o comportamento do protagonista Gaspar, única personagem em cena, a partir do seu comportamento físico em relação a objectos, que não são por ele reconhecidos pela sua funcionalidade mas como representação extensiva de um conflito interior da personagem.

Paralelamente Gaspar preserva com muito cuidado uma frase: «Gostava de vir a ser como alguém que já em tempos existiu.» Esta frase é em si enigmática. Primeiro porque ela contraria a ilogicidade da aprendizagem que Gaspar faz da linguagem por estimulação dos pontos-instrutores (não-personagens mas vozes); segundo porque a frase parece estar inteiramente incorporada em Gaspar, dele fazendo parte em termos físicos, emocionais e racionais; terceiro porque a frase cria uma relação entre passado e futuro e é nesse sentido um instrumento precioso de activação da memória. Só não sabemos o que ela representa num contexto histórico-cultural, de vivência pessoal, e como ela se presentifica, única e isoladamente, como uma espécie de bordão e apoio afectivo; quarto porque a lógica de construção da frase nos faz pensar que Gaspar aprendeu a falar como nós, por etapas de evolução linguística. A frase é perfeita.

 

Criação de pequenos grupos de trabalho que irão inquirir, capítulo a capítulo, a obra de Anselm von Feuerbach, Caspar Hauser, o único documento histórico-científico e biográfico que o dramaturgo Peter Handke terá consultado para a escrita da sua peça.

 

 

Leitura recomendada:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

https://we.tl/EJbq7l1JbH