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A Teoria da Arte face ao vazio: as obras de arte que morrem... e morrem mesmo ?

25 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A CRIPTO-HISTÓRIA DA ARTE: A TEORIA DA ARTE FACE ÀS PERDAS E À DESMEMÓRIA: UM NOVO CONCEITO OPERATIVO PARA A HISTÓRIA DA ARTE.A Teoria da Arte face ao vazio: as obras de arte que morrem... e morrem mesmo ? Aquilo que se define por CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE atenta no papel que as obras desaparecidas no tempo podem ter assumido em determinadas circunstâncias históricas, económicas, políticas, ideológicas, na sua roupagem estética e no seu programa iconológico. O estudo das «zonas escuras» da produção das artes clarifica e alarga sempreo conhecimento. Poderá fazer-se História da Arte eficaz recorrendo aos objectos mortos, à sua diluída memória, às cicatrizes deixadas como rasto, bem como às obras de arte que não só não existem como chegar a ter verdadeiramente  uma existência, porque nunca passaram da fase da concepção (bom ex.: o projecto de ponte que Leonardo da Vinci, em 1502, desenhou para o sultão turco Baiazid II, destinado a unir a Gálata e Constantinopla, que nunca chegou a ser construído, senão em 2001 na Noruega pelo arquitecto Vebjoen Sansd...). As noções de totalidade, de fragmento, de micro-história, o conceito alargado de mercado e de programa artístico, iluminam as possibilidades (e a utilidade) do olhar cripto-artístico. A novidade desta vertente reside na consciência reforçada que possa ser atribuída à obra de arte morta e a possibilidade de se organizar o inquérito a seu respeito segundo sólidas bases de pesquisa. Tal como as pessoas, as obras de arte também morrem. Muitas vezes esquecemos que são seres viventes e, por isso, sujeitas à lei inapelável da ruína física, que decorre da fragilização das condições ambientais e de circunstâncias fortuitas que contribuem para as degradar, arruinar ou, pura e simplesmente, destruir.      A Cripto-História da Arte, nova proposta de conceptualização para a nossa disciplina, parte da revalorização da noção de fragmento, não apenas como memória parcelar da obra ausente, mas colmo testemunho vivo da sua essência,  senão como indício perene (tal como o iconólogo E. H. Gombrich o referiu, ao acentuar que a H. da Arte  impõe sempre a ideia do conjunto artístico, e do seu contexto) – uma avaliação da obra em globalidade. Uma História de Arte operativa, apta a alargar as suas bases teóricas e metodológicas não pode reduzir o seu objecto de estudo às obras de arte vivas; também as que desapareceram do nosso convívio, as que só sobrevivem através do indício ou do fragmento, ou seja, as obras de arte mortas, têm uma palavra a dizer aos historiadores, aos críticos e fruidores de arte.

Enquanto noção operativa provida de franca utilidade para o alargamento das práticas da H. Arte, a CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE assenta as suas bases de pesquisa cripto-artística em cinco vertentes simétricas e convergentes, a saber:

1 --- a abordagem criptoanalítica; A vertente da cryptoanalysis (ciência que decifra a mensagem em código sem nenhum conhecimento prévio da sua chave) permite à H. da Arte desvendar os ‘indícios’ sem ter aparentemente dados complementares a seu respeito. Obras que foram destruídas (deliberadamente ou por efeito de calamidades) ou tiveram vida efémera podem de algum modo ser reavaliadas através de indagações cripto-artísticas alargadas. Bom exemplo é o projecto de decoração funerária «ao romano» que António Campelo realizou cerca de 1572 para a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, aquando das exéquias de trasladação dos ossos de D. Manuel I para a nova capela-panteão de D. Catarina de Áustria. Só resta, para a abordagem criptoanalítica, o desenho do mesmo Campelo, inspirado num fresco de Polidoro da Caravaggio em San Silvestro al Quirinale em Roma, que representa a Alegoria à Morte (M.N.A.A). O método de abordagem permite alargar conhecimentos e entretecer uma via lógica de interpretação de como era organizado um programa artístico efémero que a voragem dos tempos de todo destruíu.

2 --- a abordagem dedutiva; a vertente dedutiva, isto é, o enfoque de obras já desaparecidas no conjunto de um ciclo artístico ou na produção geral de um dado artista,  decorre da forma dada pela análise visual, documental, estilística, iconográfica, etc, de outras obras do conjunto que subsistiram no presente. O recurso às descrições memoriais e à fotografia antiga, p. ex., apoia o exercício cripto-artístico e assegura a plausível eficiência da análise proposta: veja-se o caso do retrato de D. Violante Gomes, a formosa judia Pelicana, mãe de D. António, Prior do Crato, o malogrado candidato ao trono na crise de 1580, pintado pela oficina de Diogo Teixeira, c. 1578-80, no desaparecido cadeiral do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Almoster.

3 --- a abordagem reconstitutiva; O termo metafísico de incriação,ou seja, estudo da obra incriada --  uma obra que foi concebida mas não realizada --, é outra vertente da análise cripto-artística. Trata-se do estudo de obras de arte que fisicamente nunca existiram mas cujos fundamentos e bases programáticas podem ser re-conhecidos a partir de desenhos, fotografias, textos, uma descrição, ou de um outro indício. A coerência de um inquérito histórico-artístico organizado segundo estas vertentes carreia o alargamento da metodologia geral da História da Arte em novas bases. 

4 --- a abordagem incriativa; A análise do fragmento ou parte de uma obra parcialmente inexistente, utilizando todas as fontes ao dispôr do historiador de arte, define a via da abordagem reconstitutiva e permite desvendar a possível estrutura inicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu  em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA). 

5 --- e a abordagem cripto-iconológica. Enfim, é à luz da lição da ICONOLOGIA que a pesquisa cripto-artística ganha a sua maior dimensão: sendo a Iconologia a vertente da H. Arte que desvenda significados e razões ocultas dos programas estéticos, torna-se fundamental na pesquisa iconológica a reconstituição, a dedução, a análise da ‘increação’ e a cripto-análise a partir dos ‘indícios’, caminho necessário para que as obras de arte sejam mais e melhor iluminadas no processo do seu estudo integral. O sentido dos códigos e dos signos – dos ‘indícios’ – com os seus níveis de significação diversos, abre inesgotáveis possibilidades à fascinação do ver e sentir as obras de arte, tal como elas se nos apresentam hoje, quase sempre truncadas de qualquer coisa que, apesar de tudo, pode ser percebível...É de lembrar que o estudo e revalorização do FRAGMENTO remonta à consciência dos chamados antiquários do Renascimento, como André de Resende e Francisco de Holanda no nosso caso, em torno da descoberta de um primeiro sistema de prova documental baseado na análise e valorização dos INDÍCIOS (aplicados à Numismática, à Epigrafia, etc).

     


A ICONOLOGIA, ENTRE ABY WARBURG E ERWIN PANOFSKY: AS POSSIBILIDADES DA TEORIA COMO MÉTODO.

23 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 

     Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, do seu bom uso, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reuniu até à sua morte materiais de approche interdisciplinar da História da Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que achegada do regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer e erwin Panofsky, entre outros...

     No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade... Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de total descobrimento as suas puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das das obras de arte para desvendar o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo ’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

     Discípulo de Aby Warburg, Erwin Panofsky (Hannover, 1892-Princeton, EUA, 1968) graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), e também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968), e foi amigo de Wolfgang Pauli, um criador da física quântica. Para Panofsky a História da Arte é uma ciência com três momentos inseparáveis do acto interpretivo na sua globalidade: a leitura de sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo como expressão de valores. A arte moderna (que estudou profundamente) são assim analisadas em Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental.

     Panofsky fazia, naturalmente, a distinção entre ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA. Em Studies on Iconology (1939), dando exemplos sobre as diferenças. Definiu iconografia como o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, Panofsky já detalha as suas ideias sobre os três famosos níveis da compreensão da História da Arte: Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Num 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural. Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e o conhecimento iconográfico. Por exemplo, alguém no Ocidente veria na pintura de treze homens sentados a uma mesa seria a Última Ceia. Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola e chapéu de cardeal e acompanhado por um leão poderia ser interpretado como São Jerónimo (por exemplo). Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico. Usando bem estas ‘camadas’, o historiador de arte coloca questões como "por que razão São Jerónimo foi importante para o patrono desta obra ?" Esta última ‘camada’ é precisamente a síntese; é o historiador da arte questionando «o que é que a obra significa»… Para Panofsky era importante considerar sempre estes três estratos. Para Irving Lavin, "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde não eram suspeitáveis - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais".

     Recordando o modo como o estudo do significado das obras de arte foi esquecido, compara a Iconologia com a Geologia e a Iconografia com a Geografia: esta limita-se a registar as coisas terrenas, enquanto que a Geologia estuda as estruturas, a origem, a evolução, a coerência dos diversos elementos e materiais do planeta... Esta imagem metafórica pode-se aplicar à Cosmografia /Cosmologia e à Etnografia /Etnologia, que permitem o mesmo raciocínio: estas disciplinas limitam-se a constatar, as últimas a explicar e interpretar... Assim, Hoogewerff seguirá o ‘colossal trabalho iconográfico’ de Émile Mâle para traçar as bases de uma iconologia da arte cristã medieval em França. A hagiografia, as crenças e superstições, a história dos Concílios, a patrologia, a himnologia, os apócrifos, os textos sagrados, servem-lhe para compreender ‘iconologicamente’ o sentido da arte românica e gótica francesa. A introdução, em 1939, aos Studies in Iconology de Erwin Panofsky  (N. York), verdadeiro fundador da Iconologia (após Warburg) no sentido do seu amadurecimento científico, vai aprofundar estes conceitos e fazer a célebre distinção entre os três níveis de leitura das obras de arte: 1. Nível pré-iconográfico, com descrição ‘primária e natural’ das peças, eventos, objectos e imagens em termos estritos de formas e estilos; 2. Nível iconográfico, com ‘análise dos temas e conceitos específicos’ expressos pelas peças segundo as fontes literárias e/ou o seu tipo ou época; 3. Nível iconológico, onde se situa a leitura interpretativa dos significados intrínsecos da obra em apreço segundo o quadro contextual (social, ideológico, político, etc) e segundo o quadro mais lacto dos símbolos e códigos que a informam como «tendência essencial do espírito humano».

     Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, Cassirer, Saxl, Shapiro e Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado ênfase a temas do Renascimento (como o ensaio de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melencolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que a «irredutibilidade» de alguma Iconologia presta um mau serviço ao estudo integral da obra de arte, por não a deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... Algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo  de críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

     Tudo reside no pensamento fundador de Aby Warburg, segundo o qual o que importa à ICONOLOGIA é saber abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades. 

 

A Primavera de Sandro Botticelli

     Sandro Boticelli nasceu em Florença em 1445 e ali faleceu em 1510. Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu nos primeiros tempos da sua actividade, e, à excepção de curto período em Roma (1481-82; obras como a História de Moisés na Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Esteve ao serviço dos Médici, em especial de Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici, muito influenciado pela obra de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta entre 1478 e 1484 as célebres Primavera e Nascimento de Vénus. Foi também para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. Do que se conhece da biografia do pintor verifica-se que trabalhou sobretudo para a burguesia florentina, uma clientela culta de formação neoplatónica. Com a maturidade, o seu modo estilístico ganha em pessoalismos e afasta-se quer de Filippo Lippi quer de Verrochio e Pollaiuolo. As referências à Primavera e ao Nascimento de Vénus multiplicam-se ao longo dos tempos em perspectivas diversas (formalistas, positivistas, técnicas, botânicas, etc). Na perspectiva iconológica, são fundamentais as obras de Aby Warburg (1893), de Erwin Panofsky Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental e de Edgar Wind Pagan Mysteries in the Renaissance (trad.: Los Misterios Paganos del Renacimiento). O estudo de Mirella Levi d’Ancona, (Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997) envolve conceptualizações úteis, a ponderar cuidadosamente, dado que envolvem aspectos polémicos ou redutores.

 

     A eterna «Primavera». Poucos quadros poderão almejar o estatuto de «Pintura do Século» como A Primavera de Botticelli, uma das obras de inspiração mitológica que o autor (criador do género) realizou na década de 1480 à sombra do mecenato dos Médicis. Foi pintado para o primo segundo de Lorenzo o Magnífico, Lourenço de Pierfrancesco, que se tornaria protector do pintor, tendo sido discípulo do poeta Poliziano e do filósofo Marsílio Ficino, animador da Academia Platónica que se reunia num dos palácios dos Médicis, a Academia de Careggi, nos arredores da cidade. Apesar da controvérsia que a identificação das fontes de inspiração da pintura suscita, a leitura de Edgar Wind (Pagan Misteries in the Renaissance, 1968), a seguir à pioneira interpretação de Warburg, é a mais abrangente e lúcida, baseando-se precisamente na conjugação de textos antigos e modernos proporcionados ao pintor por Poliziano e ainda nos princípios da Theologia Platonica de Ficino.

     A leitura do quadro deve ser feita da direita para a esquerda. A primeira tríade de personagens representa a metamorfose da ninfa Clóris na esplendorosa Flora, por acção do vento fecundante da Primavera, Zéfiro. Inspira-se num passo dos Fastos do poeta latino Ovídio, e asim se justificam as quinhentas espécies botânicas representadas, atapetando os planos da composição, documentando o interesse científico dos artistas do Renascimento pela Natureza. Em contraponto, no lado oposto, vemos a segunda tríade, constituída pelas Três Graças, Castidade, Beleza e Volúpia. Entre ambas, Vénus, Deusa do Amor, comanda a acção que seu filho, Cupido, energia do Amor, desencadeia, ao disparar, cego, as flechas com o fogo da Paixão, na direcção da Castidade. Se, na primeira tríade, vemos um princípio produtor em que a Paixão fecunda a terra e a transforma «em sons e cores» (como diria Fernando Pessoa), na segunda emerge um princípio conversor em que a energia do Amor Divino desencadeia na Alma a procura da Verdade. De facto, o olhar da Castidade vira-se para Mercúrio, última figura desta istoria, mensageiro dos Deuses, líder das Graças e intérprete dos segredos, que, afastando com o seu caduceu as nuvens da obscuridade, conduz o intelecto na contemplação da luz escondida da Beleza intelectual. Uma tão sublime interpretação do ideal de Amor e Beleza, tal como o concebia o Humanismo florentino, dificilmente voltaria a ser alcançada, pelo que este quadro se transformou no ícone do próprio Quattrocento, coração artístico e filosófico de um Renascimento que será sempre, na história dos homens, uma eterna Primavera.

     O título da obra, Primavera, decorre da referência do pintor e escritor florentino Giorgio Vasari (nas Vite, 1550), segundo o qual a pintura “significa a Primavera”. De acordo com E. Wind, as fontes clássicas utilizadas por Botticelli foram principalmente os textos de Poliziano e, deste, as referências às Odes de Horácio e aos Fastos de Ovídio, em episódios não forçosamente interrelacionados. Na cena da direita vê-se Zéfiro, o vento da Primavera, a tentar tocar a ninfa Cloris, que se escapa. Do vento que sai da boca de Zéfiro escapam algumas flores que, ao tocarem Cloris, a transformam em Flora, a terceira figura do grupo e a mensageira da Primavera. Iremos encontrar nos Fastos de Ovídio o jogo etimológico que transforma a ninfa Cloris a deusa romana Flora: (Chloris eram quae Flora vocor). Há neste primeiro grupo uma clara alusão a um ciclo de tempo, mas não de um tempo cronológico, stricto sensu, mas do tempus que a idea platónica compõe ciclicamente. Como Wind refere, a criatura primitiva e tímida de Cloris (tal como Ovídio a descreve) dá lugar à beleza vitoriosa da Flora. Mas foi a timidez e singeleza de vestuário, uma túnica quase transparente, que atraiu Zéfiro e fez dele “um fiel marido que a fez germinar e exibir mil cores de flores novas (Fastos)”. Este grupo da direita está, evidentemente, relacionado com as três figuras da esquerda, as Três Graças, baseando-se numa relação dialéctica ovidiana da trilogia pulchritudo, castitas, voluptas. Enquanto no grupo da direita se denota uma criação da beleza, que está na figura central da pintura – a deusa Vénus, como sugeria Vasari – é desta divindade que decorre a presença das Três Graças, as ninfas que sempre estiveram ao seu serviço. Ao alto, sobre a cabeça da deusa, um Cupido de olhos vendados, dirige a sua seta para a Graça que se encontra no centro do grupo de três.

     Observando o grupo das Três Graças verificamos que se relacionam como numa dança, denunciada pelo modo como colocam os pés em sequência de movimento. A Graça ao centro é, pelo seu vestuário e ausência de adornos, a Castitas. Veja-se a simplicidade do vestuário e a simplicidade das pregas da túnica, em evidente contraste com as suas companheiras. Por outro lado o rosto apresenta uma expressão triste e melancólica enquanto a Voluptas exibe um vistoso penteado, com tranças serpenteantes e uma jóia sumptuosa no peito, e túnica a acentuar as curvaturas do corpo. É a energia voluptuosa. A terceira graça, a Pulchritudo, é a que exibe orgulhosamente a sua beleza. A sua jóia é mais modesta e os cabelos não esvoaçam, serpenteantes, mas exibem um penteado cuidado menos espectacular que o da Voluptas. O facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não exibindo nudez, como viria a acontecer em pinturas de outros mestres e, sobretudo, em épocas mais tardias, decorre, uma vez mais de autores clássicos, como Horácio e Séneca, como é de Horácio que resulta a sua gestualidade e também o facto de não olharem, exibicionisticamente para o exterior. Aquilo a que Wind chama a coreografia da dança tem, mais uma vez, correspondência nas alusões da literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, obviamente decorrentes de fontes literárias, não se limitam a eles porque se limitam  a «reforçar o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas aproximam-se, a Pulchritudo mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).

     Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as três graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido esse  que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», todas estas atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, pela elegante colocação das mãos que se entrelaçam e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, se unem como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. A ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do Amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão sua, o mesmo Plutarco,  permite a Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind).

     Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino denominou como «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos.

     Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses) teremos que Mercúrio, por tradição o guia das Três Graças, é simultaneamente aquele que conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. E, curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas  (divinus amator). Mercúrio assume uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não apenas com os grupos já mencionados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e os ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência, o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, aquele que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era o deus engenhoso de intelecto indagador, sagrado aos olhos de gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico (o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind). Todavia, de todas estas funções, aquela que mais se aproxima do significado do  grupo das três graças, será a da divindade que atinge o «mais além». E não é certamente por acaso que Botticelli representou a Castitas de costas para o observador e dirigindo o olhar para o mais além representado nos poderes de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens, permitindo o acesso à luz divina.

     Tendo em conta a filiação da pintura nos textos dos clássicos e dos humanistas que retomaram os seus textos e referências, é possível concluir, com Edgar Wind (e também com Panofsky e, menos directamente, com André Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem entender completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”. Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro, são essas as duas forças complementares do amos, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade»(Alexander Pope, apud Wind)”. Mais ainda, se Zéfiro simboliza mitologicamente o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, consequentemente, uma espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). Assim, “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo  periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão, regressa ao céu no espírito da contemplação”.

 

Bibliografia seguida neste texto de apoio

Aby Warburg, O Nascimento de Vénus e a Primavera (de) Sandro Botticelli, trad. Portuguesa, Ymago.

André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

Erwin Panofsky, Estudos de Iconolgia, Lisboa, Estampa, 1986

Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, Oxford University Press, 1980 (ed. espanhola Los Misterios Paganos del Renacimiento, Madrid, Alianza, 1998). Um Mirella Levi d’Ancona, Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997


O papel de intervenção e bondade das Artes segundo as correntes do Humanismo.

18 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Da Guerra e da Paz na arte do século XVI: o ideário humanista em Benito Arias Montano .

O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu muito, com as suas ideias e textos, para a sedimentação de uma Teoria da Arte de sinal ecumenista e pacifista, defendendo valores de harmonia, diálogo, assente num rigor doutrinário com carga pedagógica e força emotiva, através de uma representação artística com sinal neoplatónico, dotada de largo sentido trans-contextual. Arias Montano manteve estreita amizade com o editor Christophe Plantin, com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse e Rembert Dodoens, e com os melhores gravadores da época. Numa Europa flagelada pelas guerras de religião, e a ameaça do império otomano, explorou relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e o sentido profundo da Ut pictura poesis. Bibliotecário de El Escorial, publicou sobre antiguidade latina, grega, aramaica e hebraica, em  livros eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), o Discurso del valor y correspondencia de las monedas e a Monumenta humanae salutis (1571), e poesia latina  (Hymni et saecula, 1593) e em castelhano, inspirada em Frei Luís de León (escreve, tal como este, uma versão do Cântico dos Cânticos).

Não foram muitos os contactos directos do Dr. Arias Montano com Portugal: em 1578, é enviado por Filipe II a Lisboa para convencer D. Sebastião a desistir da empresa de Marrocos que iria conduzir, meses depois, à tragédia de Alcácer Quibir; em 1580, tem papel decisivo, junto ao rei, para elaboração das teses de Tomar que confirmariam a Monarquia Dual; e pode ter tido um papel relevante de consultor na programação da Joyeuse Entrée em 1581 (a que não assistiu), a crer no relato do simbolismo decorações escrito pelo Dr. Afonso Guerreiro.  É conhecida a missão de Arias Montano de que foi incumbido por Filipe II, junto a D. Sebastião, para demover o rei português a embarcar na empresa de Alcácer Quibir. Mas é o facto de ter sido ele o campeão da legitimização do rei Filipe ao trono português (teses das Cortes de Tomar) que mais deve ter contribuído para o apagamento do nome de Arias no seio da historiografia portuguesa, à luz de um nacionalismo serôdio. As relações de Arias Montano com personalidades como Damião de Góis e Francisco de Holanda permanecem por estudar… 

Perante o fim do antropocentismo renascentista, e a barbárie e o caos num mundo em  desordem que se desfaz nas suas crenças, em que a melancolia e a skize crescem como estados de espírito, Arias Montano propõe uma renovação ecumenista do cristianismo assente num pensamento de tolerância. Assim se explica o magno projecto da Biblia Poliglota, de que o incumbiu Filipe II (1568) junto do editor Cristophe Plantin (1572), sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum. Em nome dessa visão de paz, usa as imagens bíblicas como lição e advertência.  Obra relevante, edição de Cristopher Plantin (Antuérpia, 1575), com quarenta e oito emblemas desenhados por Crispin van den Broeck e gravados por Philippe Galle, é David. Hoc Est Virtutis Exercitatissimum Probatum Deo Spectaculum, ex David Pastoris Militis Ducis Exulis ac Prophetae Exemplis, onde explorou o carácter polissémico atribuído ao rei-pastor, no contexto das guerras na Flandres ao tempo do Governador D. Luis de Requesens. Aí destaca o ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, tão ligado ao historial de David, cujas virtudes são FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compara-o ao ambiente terrível nas guerras de religião. A defesa de políticas indulgentes face aos derrotados (exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após entrega do traidor) ofereciam evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

Ainda não foi alvo da devida análise global o contributo de Benito Arias Montano (1527-1598) como grande humanista do largo tempo do Renascimento para a teoria das artes do seu tempo, em geral, e para a cultura artística portuguesa, em particular. Prestigiado erudito, formado nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, primeiro responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo do Escorial, adepto da família da caridade, amigo pessoal de Filipe II, é mais conhecido pela famosa Bíblia Poliglota e os numerosos estudos de hebraico, grego, aramaico e latim, livros como o Rhetoricorum libri IV (1569) e Monumenta humanae salutis (1571), a poesia inspirada em Frei Luís de León, etc, mas  o seu contributo para a teoria e prática das artes na Península do século XVI, que foi significativo, mantém-se muito subestimado. 

As ideias de Arias sobre a concepção e valor pedagógico das artes, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso mostram  que não estava alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e, muito menos, sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónica. Amigo dos gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke (Palludanos) e de Jacques Jonghelinck, foi instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo responsável pelo modelo composicional usado por tais estampistas. Conhece-se a sua influência em pinturas maneiristas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada. O seu interesse pela estampa de livro e o seu pendor por uma política de tolerância, mostram-no sempre atento ao poder das gravuras de ilustração na sua relação com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos morais. Arias publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica e temas doutrinários eruditos, mas a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia, foi a direcção da Biblia Políglota Regia de Antuérpia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou esse projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes, em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, onde andou revendo provas, escolhendo estampas junto de artistas e redigindo prólogos, é a amizade que manteve com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e, entre outros pintores-gravadores, o famoso Philippe Galle. Como um  dos mais famosos humanistas do Renascimento, orientalista de renome e editor espanhol da famosa Bíblia Poliglota, estudou nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, foi ordenado clérigo em 1569, foi membro da Ordem de São Tiago, acompanhou o Bispo de Segóvia ao Concílio de Trento em 1562, ganhando grande prestígio como intelectual e erudito. Foi amigo de Filipe II e primeiro bibliotecário no Real Mosteiro de San Lorenzo de El Escurial. Quando retornou de Itália, retirou-se para a sua quinta em Aracena, mas foi convocado pelo rei Filipe II em 1568 para supervisionar a nova versão poliglota da Bíblia, contando no projecto com a colaboração de intelectuais e gravadores de valia. A obra foi lançada pela editora de Cristophe Plantin (1572, 8 volumes) sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum.

Entre as estâncias em Sevilha, em Roma, Antuérpia ou em El Escurial, e os tempos que passa no seu retiro da Peña de Aracena (um verdadeiro locus amoenus renascentista), Arias Montano dividiu a sua existência. A casa que fez erigir na Peña, sítio de meditação piedosa, tertúlias de humanae litterae, debates teológicos e all’antico, com a sua biblioteca e obras de arte, o seu bosque com rovine, a sua álea de plátanos, e as suas fontes, tornou-se durante os últimos anos de vida o refúgio privilegiado do humanista. A erudição e sensibilidade de Benito Arias Montano para a linguagem das artes foi estimulada pelo contacto com seu mestre Jacobus Vasquus e pelo seu amigo pintor sevilhano Pedro Villegas Marmolejo.

Em nome de uma visão de paz no campo religioso, usa as imagens bíblicas como exemplo e advertência, mas sempre à luz da tolerância. O conhecimento que adquiriu como crítico de arte foi por si usado na cuidada definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota e em outros livros), e em grandes empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial. Como inspirador de gravuras, junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências. Cultivou o Humor Melancholicus, tal como Lucas de Heere, em Albrecht Durer, em Vasco Fernandes:sintomas saturnianos da crise generalizada vivida na Europa do pleno século XVI, à luz dos conflitos religiosos e da desagregação do edifício de valores do Renascimento. À ordem, estabilidade, harmonia, tolerância, dignidade, utopia do antigo, valor do antropocentismo, da perspectiva, o sentido regulador de uma ‘geometria do mundo’, etc, dão lugar a um estado generalizado de descrença...

Quando se admira A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, de Cornelis Cort (1533-78) segundo desenho de Frederico Zuccaro, aberta em 1577-78 em Roma, vemo-la acompanhada por longo poema latino onde Arias discursa sobre o papel pedagógico e emotivo do discurso artístico. A gravura (Staatlische Museum, Berlim) recorre à alegorização clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia das Artes a admirar a tela Fraga de Vulcano, com as Fúrias, a Inveja, o Concílio dos Deuses, Ceres, Vénus, Baco, Hércules, as divindades fluviais, Pan, Diana, Marte, Pomona, Saturno, Tétis, Neptuno, etc, num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante do próprio sentido das artes.

É atribuída a Arias Montano a concepção humanística do programa do malfadado monumento que se ergueu ao Duque de Alba em Antuérpia após a  vitória de Jengum, em 1568, com esculturas de  Jacques Jonghelinck (figura de bronze) e Willem van den Broek ou Paludanus (o pedestal). Ambos eram amigos de Arias.  Mas a violência demonstrada pelo Duque de Alba na campanha da Flandres granjeou inimigos, tanto nos Países-Baixos, incluindo círculos católicos, como na corte de Espanha. Após a chegada do novo governador Luis de Requesens, em 1573 (sendo Arias designado conselheiro), e obtida a paz pelo perdão geral de 6 de Junho do ano seguinte (tardia mas bem acolhida), a estátua foi apeada e fundida. Mas eram medidas que chegavam tarde para restituir o prestígio de Espanha, abalado pelas violentas repressões contra as populações protestantes. É de destacar este ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, defendido por Arias Montano, tão ligado ao historial vetero-testamentário de David, rei-pastor cujas virtudes são a FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compará-lo com o ambiente vivido nas guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas mais indulgentes e a defesa da impunidade dos derrotados (a exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após a entrega do traidor) eram , para os leitores do livro, aspectos que mostravam à época mostrava um evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

                                                           

                                                                            BIBLIOGRAFIA:

Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, vol. II, 2006, pp. 723-750.

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.


Aula virtual sobre a Sociologia da Arte e a História da Arte que se reclama do Marxismo.

16 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

REFLEXÕES EM TORNO DA ACTUALIDADE DA HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E DO MARXISMO COMO ÚTIL INSTRUMENTO DE ANÁLISE.

 

1.      Marx, Engels, Hadjinicolaou

Se a História da Arte não pode confundir-se com a análise da História definida pelo Materialismo Dialéctico, é evidente nos nossos dias que o Marxismo veio conferir à nossa disciplina uma série de postulados relevantes no propósito de saber analisar as obras de arte e os seus discursos estéticos. É frequentemente citado o comentário de V. I. Lénine a respeito da importância da História da Arte como disciplina onde a análise do Marxismo se pode impor com acuidade: «Quanto trabalho existe aqui para um marxista !», teria ele exclamado. Na antologia Marxismo e Arte, Mayna Solomon diz-nos que embora Karl Marx e Friedrich Engels tivessem dedicado tempo às artes literárias no início das suas carreiras, foi sempre a Economia e a Filosofia que mais os ocupou. Por isso, «não existe uma estética marxista ‘original’ para marxistas posteriores aplicarem. A História da Estética marxista tem sido apenas e só a história do desdobramento de possíveis aplicações das ideias e categorias marxistas à arte e à teoria da arte».

O mesmo postulado pode ser aplicado ao campo a História da Arte, que também usou (em autores como Theodor Adorno, Frederick Antal, Tim Clark, por exemplo) a ideia marxista de uma crítica do sistema social e económico ao utilizar esse enfoque no campo das obras de arte para mostrar os mecanismos através dos quais o modo de produção interfere na conduta e na produção de um dado artista, independentemente das épocas em que se situem. De acordo com Karl Marx, a arte é parte da superestrutura e é inevitavelmente determinada pelo modo de produção e pelo sistema económico. O capitalismo produz mercadorias, sendo cada uma delas um “fetiche”, objeto com valor abstracto. Fetichismo é a projeção da natureza humana e dos desejos humanos num objeto externo. Se aceitarmos a proposição de que a arte se transforma em mercadoria (e, sob este ponto de vista, a arte deve ser uma mercadoria numa sociedade capitalista), existem consequências decorrentes de tal afirmação: ou seja, todos os artistas são produtores culturais que trabalham num sistema capitalista em benefício do mercado. Todo o tipo de arte criada dentro desse sistema é uma mercadoria para ser comprada e vendida como objecto de desejo, espécie de projecção dos sentimentos humanos. A obra de arte numa sociedade capitalista deve ser um objeto consumível e, assim sendo, também deve ser um objeto de desejo, um fetiche. O conceito de alienação de Marx é, pois, essencial para se perceber o que uma História da Arte fielmente construída sob signo do marxismo visa analisar.

Assim, a definição de ideologia imagética avançada por Hadjinicolaou (n. 1938) por exemplo, ganha novos sentidos. Nascido em Salonica, Grécia, este historiador de arte seguidor da metodologia marxista, professor no El Greco Centre (Institute of Mediterranean Studies, Rethymnon, Creta) estudou nas Universidades de Berlin, Freiburg e Munich, em 1965 estudou em Paris com o sociólogo daarte Pierre Francastel (École pratique des Hautes Études) e com Lucien Goldmann (1913-1970) e Pierre Vilar (1906-2003). A sua tese La lutte des classes en France dans la production d'images de l'année 1830, inspira em 1973 o famoso livro Histoire de l'art et lutte des classes. Art History and Class Struggle, onde o autor desmonta a tradicional História da Arte formalista (pós-morelliana) e põe a nu os seus limites. Depois de escalpelizar uma linhagem de defensores da «arte pela arte» desde Théophile Gautier a Victor Cousin, corrente essa ainda dominante nos anos 70 do século XX, Hadjinicolaou constrói a sua teoria: as obras de arte reflectem sempre determinados aspectos da ideologia de classe, pelo que a História da Arte devia ser, no essencial, a história das ideologias imagéticas produzidas em contexto de lutas de classes. Inspirado em György Lukács (1885-1971) e na sua History and Class Consciousness, também se reporta ao filósofo Louis Althusser (1918-1990) e a F. Antal. Das teses de Hadjinicolaou sairá, em 1977, um famoso ensaio de Françoise d'Eaubonne (1920-2005) chamado Histoire de l’art et lutte des sexes, estudo interessante em que as lutas de classe e as lutas «de género» se interligam no campo preciso da produção artística.

 

2.              Antal, Hobsbawm

A figura do citado Frederick Antal (1887-1954) é deveras importante no campo da historiografia de arte marxista. Historiador de arte húngaro e militante comunista, Antal é das mais relevantes referências no quadro de uma análise das obras de arte a partir das categorias do materialismo dialéctico. O seu famoso livro Florentine Paintig and its Social Background (trad. A Pintura florentina e seu contexto social: a República Burguesa antes do advento do poder de Cosimo de 'Medici: XIV e início do século XV), saído em Londres em 1948 (reimpressão: Harvard University Press, 1986) atesta o quanto os estudos de arte a partir do conceito de ideologia do mercado, analisado a partir das estratégias ideológicas e das cambiantes de gosto, podem atingir um grau de percepção muito evoluído.

O estudo sobre a pintura em Florença na viragem da Idade Média para o Renascimento e do gosto dos clientes burgueses que encomendam obras aos pintores continua a ser o melhor exemplo da vitalidade do pensamento marxista no campo das artes. Hoje, é consensual aceitar-se que (seja ou não a partir de um ponto de vista marxista) toda a obra de arte se reflecte de alguma maneira, sempre, sobre a sociedade em que foi concebida. Ou seja, o artista é sempre parte integrante da cultura de um dado contexto, e a arte nunca é independente ou absoluta, mas dependente de um ambiente em que a luta de classes se manifesta como dinâmica transformadora.

Como refere o grande historiador Eric Hobsbawm, autor do luminoso ensaio Atrás dos Tempos-declínio e Queda das Vanguardas do Séc. XX (trad. Campo das Letras, 2001), ao analisar a produção artística tardo-novecentista à luz da (im)possibilidade de gerar rupturas vanguardísticas, é possível contrariar os escritores e compositores que aceitaram a produção de massas e a tecnologia da repetição ilimitada, ou os pintores não quiseram renunciar à obra de arte “única”, realizada com as suas próprias mãos. Esta relutância resultou numa série de “vanguardas” pictóricas estéreis que, segundo o autor, estavam de antemão condenadas ao fracasso. Será mesmo assim? Nascido em Alexandria (Egipto), em 1917, Eric Hobsbawm, viveu nas cidades de Viena e Berlim antes de iniciar a sua vida académica em Londres. Considerado um dos mais importantes historiadores da era contemporânea, Hobsbawm, além de militante de Esquerda, utilizou sempre o método marxista para a análise da História a partir do princípio da luta de classes, mas rejeitando o ‘marxismo vulgar’ e tendo defendido o seu compromisso com um certo ideal de comunismo. Sem Eric Hobsbawm não haveria um retrato tão amplo da história dos séculos XIX e XX e dos totalitarismos (e suas razões) nos seus diferentes aspectos. A pós-modernidade e o discurso das artes. Arte, mercado, vanguardas. Novas teorias, métodos e approches pluridisciplinares.

Em tempos difíceis em que os homens vivem a globalização com aspectos plurais e heterogéneos, em que a fisionomia do tempo se redesenha -- a par de um processo em que a desmemória se enraíza, tal como o espaço das grandes diferenças e exclusões se tende a tornar uma coisa banal, em nome da cultura alienante do efémero --, parece importante devolver à História uma das suas linhas operativas de actuação: ver os factos (e as obras de arte são factos artísticos) à luz da sua contribuição o mais possível aproximada, em abordagens que unam o enfoque micro-contextualizado e a dimensão trans-contextual que lhes está imanente. Para a História-Crítica da Arte, revivificada com a crise decorrente do mundo global, o que se coloca é saber re-avaliar o sentido das obras, as ‘antigas’ e as de ‘hoje’ (que são já de ‘ontem’ também), devolvendo-lhes entendimento artístico, a memória do que eram as suas funções, redescobrindo estratégias de sedução que o tempo desvitalizou e refocalizando o caudal de memórias que, afinal, elas nunca deixaram de transportar. Numa cadeira como esta, que busca enfatizar a importância da Teoria da Arte na redefinição da própria metodologia de 'approche' das obras de arte, os vinte autores destacados para análise nas nossas aulas (caso de Hobsbawm) contribuem para delimitar as linhas de pensamento em que a disciplina se debate: a importância do olhar trans-contextual e trans-memorial, o peso da iconologia, a viabilização da Hiastória da Arte como uma antropologia da memória dos códigos artísticos.

Decorrente do facto de o artista ter sido «abandonado por Deus», tal como constata a análise marxista, a arte da Idade Contemporânea pode ser apenas irónica, no sentido sugerido por Friedrich Schiller. Na contemporaneidade, a arte pode apenas exibir a alienação humana. Com nada mais para simbolizar, o simbolismo dá lugar à alegoria. O uso de símbolos abre campo directo a um sentido, mas a alegoria é um agrupamento ou uma colecção indirecta de sentidos. Como resultado da quebra da união dos homens com um sentido de espiritualidade, a arte contemporânea pode ser vista como indirecta e referencial, justamente por estar ligada à ideologia capitalista e ao pensamento burguês, uma ilusão que esconde os factos sobre os quais as crenças são construídas.

 

3.      Marx,  Lukács, Adorno, Dubois, Greenberg

Num ensaio de 1939 chamado Arte de vanguarda e o kitsch, o escritor norte-americano Clement Greenberg (1909-1994) propôs que o socialismo promoveria a liberdade de que o artista de vanguarda necessita, já que o sistema capitalista apenas recompensa o artista que não responde aos anseios da sociedade e que actua, por sua vez, sob a influência de uma dada ideologia dominante. A classe possidente produz uma ideologia em seu próprio benefício, mas avança a ideologia de modo a fazê-la parecer “real”. Ora, longe de ser “natural”, o que a ideologia constrói, sejam crenças ou aquilo aque chamamos «arte», é um acto cultural. É através dos mecanismos de ideologia que o que é cultural se torna natural.

Relações sociais são presumidamente “naturais” e, consequentemente, as pessoas não reconhecem ou não percebem que os meios pelos quais interagem são “culturais”. A ideologia permanece invisível. Uma obra de cultura visual expressa a ideologia dominante, não apenas no que se refere ao que a obra de arte expressa, mas também ao que a obra de arte não diz. A arte possui a marca da história de seu próprio tempo e não é nem atemporal nem transcendente. Longe de ser livre ou independente, o artista de vanguarda é reconstruído, a partir de uma perspectiva marxista, é um intelectual servo do sistema. Como Marx observou, «a burguesia despojou de sua auréola todas as actividades até então veneradas e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio, fez seus servidores assalariados. A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. (…) [os intelectuais] vivem apenas enquanto encontram trabalho, e (…) encontram-no apenas enquanto os seus próprios trabalhos valorizam o Capital. Esses trabalhadores, que têm de vender-se são uma mercadoria como qualquer outro artigo do comércio, e estão consequentemente expostos a todas as vicissitudes da competição e a todas as flutuações do mercado (…)».

Longe de ser um rebelde, o artista é um trabalhador cultural sem “auréola”. O artista que não reconhece os mecanismos da ideologia é cúmplice de um sistema opressor. A partir de uma perspectiva socialista, qual deve ser então o papel de um artista informado e consciente? De acordo com Auguste Comte, a arte erige-se a partir do estudo da natureza e deve facilitar a contemplação de valores morais. A oposição de Comte, para quem a arte é a representação ideal da realidade, é essencialmente a perspectiva académica que prevalecia na sua época. Décadas depois, Proudhon sugere um papel mais específico para o artista em Du Principe de l’art (1865). O realismo e o naturalismo ultrapassaram o Romantismo nos anos 1860 e Proud’hon viu a arte como possuidora de um papel social que deveria subordina-la a fins sociais e políticos. O que distingue a posição de Proudhon é que esses “fins” seriam a crítica social e a denúncia das suas práticas injustas de dominação dos mais pobres.

Agindo como um crítico ou uma crítica de seu próprio tempo, a artista torna-se assim uma espécie de profeta e um combatente que busca um futuro melhor (o caso de Courbet e do realismo francês). De um ponto de vista socialista, o artista, como servo da sociedade, possui o dever moral de revelar os mecanismos da ideologia apontando a verdade. Não é correcto dizer que todos os artistas e escritores realistas eram socialistas (como o foi Courbet), mas sim que a missão dos realistas em França e Inglaterra tinha como objectivo mostrar a vida na sua nudez. Revelações da realidade dos tempos modernos seriam geralmente consideradas como manifestações políticas, justamente pelas forças que funcionam melhor quando tais verdades eram mantidas veladas pela ideologia.

A Segunda Globalização (a primeira fora a da era dos Descobrimentos portugueses e espanhóis) -- abriu campo para conquistas e também para reforço da exploração do homem pelo homem: nova era de esclavagismo, repressão, intolerância religiosa e cobiça desenfreada. Hoje, ao analisar a realidade dos nossos dias em comparação com a do «largo tempo do Renascimento», descobrimos mecanismos com objectivos idênticos destinados à apreensão do mundo, à multiplicação do conhecimento em rede, para afirmação de interesses pretensamente superiores, fossem militares, económicos e mercantis, ou valores religiosos. No seu ensaio Le Bel Aujourd'hui de la Renaissance. Que reste-t-il du XVIe siècle ? (Paris, Seuil, 2001), Claude-Gilbert Dubois estudou esse fenómeno, em singular cotejo com a realidade global do novo milénio, encontrando idênticos pressupostos de acção entre a realidade dos séculos XV-XVI e a do dealbar do XXI no uso e configuração de uma dimensão estética .

O desabar das experiências que «em nome do Socialismo» foram realizadas a Leste com epicentro na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (onde os princípios da Revolução de Outubro, com sua aura emancipadora, descambaram depois na deriva totalitária do estalinismo) colocou o mundo face a desequilíbrios ainda hoje irresolúveis. Num dos últimos ensaios do já referido Eric Hobsbawm, Tempos Interessantes, o historiador analisou este fenómeno e expressou reservas em relação aos modismos históricos recentes, nos contextos do cenário historiográfico exaltando o fim da História e subsequente dependência da cultura à massificação descaracterizadora. Hobsbawm nota como a busca de um vínculo permanente, de uma fertilização mútua entre História, Ciências Sociais e Antropologia Cultural (seguindo o legado de Marx e a sociologia marxista do conhecimento), não tem sido acompanhada no campo dos estudos económicos.

Depois de largo tempo em que o conceito de ‘ideologia’ submergiu numa espécie de limbo de fim de História, outros conceitos operativos utilizados pela História da Arte, como ideologia imagética, polemicamente avançado por Nicos Hadjinicolaou , voltam a emergir, revistos e depurados do lastro de um ‘marxismo vulgar’, como úteis para a percepção do  chamado facto artístico. No campo das artes, Hobsbawm nota como as ideologias imagéticas foram muitas vezes rejeitadas pelo público, que não as entendia ou via com desconfiança, e se voltava para a revalorização das obras clássicas, ou para as ‘artes populares’, transformadas e incorporadas pela indústria cultural. A verdade é que o consumidor de vanguarda sempre se situa nas camadas mais prósperas, intelectualizadas (mas não necessariamente mais cultas ou informadas) da sociedade contemporânea, nas quais encontra símbolos indicadores de status, que deixammarca na vida das comunidades. É notório, nesta nova globalização, o que tem de contraditório e descontrolado, com o ascenso de ‘poderes apátridos’ e em que a exploração do homem pelo homem se acentua, a apreciação estética continua presente e a constituir espaço de cultura. Retomando a definição de George Lukács («Arte e verdade objectiva», Problemas del Realismo, Cidade de México, Fondo de Cultura Económica, 1966, vol. II, pp. 471-472), a apreciação das artes continua a propor reflectir sobre «um mundo essencialmente do plano dos homens que não se confunde com o processo oficializado de ‘estetização’, próprio de uma estética da mercadoria com ênfase no discurso das formas». A globalização, com suas contradições, derivas totalitárias e aplicações distorcidas, deflagrou um facto inequívoco: as novas possibilidades de olhar e de ver o fazer, pois o papel do singular, o regional, o micro-cultural, assumiram essa possibilidade de se projectarem num plano transnacional – o que vem ao encontro desse desejo profundo da História-Crítica da Arte de encontrar no particular o universal – como diriam Warburg e Panofsky, Deus está no pormenor…

Cremos que, no campo específico da História e da Crítica das artes, tal formulação continua a ser válida nos dias globalizados do presente. A produção da arte, apta a explorar novas sensibilidades no mercado da era global, revela um aspecto que Hobsbawm denegou: que as vanguardas de Novecentos, afinal, não esgotaram a criatividade das formas tradicionais. Nesse aspecto, o vaticínio do historiador sobre a crise e esgotamento das vanguardas não foi certeiro.

 

4.      Casos de estudo

O QUARTO STATO, ou Il cammino dei lavoratori,  pintado em 1901 por Giuseppe Pellizza da Volpedo, pintor italiano formado na academia de Brera  e, depois, em Roma e Florença, constitui um testemunho de pintura realista de signo proletário. «En El Cuarto Estado, da Volpedo siguió las teorías de G. Balla sobre el divisionismo. La obra, cuyo nombre ya es significativo (con el cuarto estado se refiere a un nuevo estamento que se uniría a los tradicionales del antiguo régimen en la nueva estructural social posterior a la revolución francesa: el proletariado; el cuarto estado es aquel grupo social que no tiene cabida en los otros estamentos), representa el creciente éxodo rural que llevó a muchos campesinos a las grandes ciudades en busca de un trabajo y para huir de las condiciones precarias de la actividad agraria». O filme ‘Novecento’, de 1976, dirigido por Bernardo Bertolucci, com Robert De Niro y Gérard Depardieu, divulgou muito o quadro de Volpedo.

Eugène Delacroix (1798-1863) é figura-chave da pintura europeia na viragem do neo-classicismo para o Romantismo. Discípulo de Guérin,  segue de seguida Géricault e Gros, na sua busca de uma pintura mais ruptural, socialmente mais interverntiva e plasticamente atraente. Passa a participar nos Salons de Peinture em Paris, a partir de 1824, com Massacres de Scio (Louvre), vai a Inglaterra em 1825, contacta com os  meios artísticos (Constable, Bonington), apaixona-se por Shakespeare. De novo em Paris, convive com Merimée, Stendhal, Dumas, George Sand. Em 1831, expõe Les Barricades (A Liberdade guiando o povo), eco das jornadas de luta revolucionária de 1830, obra que resume de modo claro a sua abertura ao Romantismo, ligando-o muito a Gros e a Géricault, mas com um registo dramático mais largo, mais épico e transcendente. O quadro evoca os acontecimentos de Julho de 1830 em que foi derrubado Carlos X, com a tomada do poder por uma  monarquia burguesa, com Louis-Philippe d’Orléans. Obra polémica, atacada no Salon, Les barricades foi tida como ‘muito radical’ ou como muito ‘realista’ devido ao modo como alegorizou a Liberdade, como tratou o colorido (azul, vermelho, branco, cores da Revolução Francesa), a oposição de luz-sombra, o modelo tomado para compôr as figuras populares em luta, etc. Victor Hugo, no ano seguinte, inspirar-se-á no quadro para começar a escrever um dos seus mais célebres romances, Les Miserables, só editado em 1862. Les Barricades é uma espécie de ‘poster’ político e, por isso, muito aclamado no contexto das Histórias da Arte que se reclamam do Marxismo. Celebra o 28 de Julho de 1830 e o derrube dos Bourbons, ou seja, um movimento onde o pintor interveio. Segundo G. C. Argan, a pintura (que inclui um auto-retrato do intor) seria mesmo a primeira obra de arte ‘engagée’ da pintura moderna. A Liberdade é uma força abstracta, mais do que uma mulher-símbolo, escreveu Argan, e é esse justamente o sentido universal desta Alegoria política.5.      Ainda a ideologia imagética

Um ensaio integrado na colectânea Estudos de Pintura Maneirista e Barroca (Editorial Caminho, Lisboa, Col. Universitária, 1990) reflecte sobre questões de teorização e metodologia da disciplina da História da Arte a partir do conceito de ideologia imagética proposto pelas teses marxistas do referido historiador de arte grego Nicos Hadjinicolao, analisando-se a sua utilidade operativa no caso da História de Arte portuguesa e as vantagens, e também os limites, do seu uso prático.

Já em Rembrandt, que pinta em 1635 o tema do Rapto de Ganimedes para um mecenas calvinista holandês, os matizes eróticos clássicos sofrem uma mudança radical (e mordaz): a águia-Júpiter rapta um menino (quase um querubim) que urina e treme de medo (Museu de Dresden). É uma pintura que critica a homossexualidade de modo explícito.  O historiador de arte marxista Nicos Hadjinicolaou analisou o quadro sob essa perspectiva da ideologia imagética à luz da ideologia do encomendante.

(outros casos de estudo...)


5.      A Micro-História da Arte e a Sociologia da Arte

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista.

É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). Por isso, a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. busca revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo e Carlo Ginzburg na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia).

O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, que se baseia na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas instâncias plurais, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte (Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007). O objecto da História da Arte, como parece estar estabelecido, é o de poder reabrir diálogos com as obras de arte, interrompidos por circunstâncias e razões de gosto, moda, etc, ao alterarem um tecido social e as estratégias de comunicação da obra (ideológicas, materiais,  religiosas, sócio-políticas, iconográficas, iconológicas, trans-contextuais, etc), o que impõe novas formas de as saber avaliar em termos de fascínio perene.  O olhar micro-artístico, ao pôr tónica no estudo integrado da História cultural e da Geografia social, com enfoque na iconologia, contribui assim para um alargamento do comparatismo na nossa prática, deixando ver as obras de arte sem preconceitos académicos ou valorizações subjectivas.

Trazendo à colação historiadores de variada formação e de diversa metodologia, e pondo a tónica na análise globalizante a partir do indício, o historiador de arte José-Augusto França nos lembra que «a historia (da arte) é feita de céu e de terra, e seja qual for a ordem de preferência, a nossa obrigação é procurar num sítio e no outro (mesmo no céu, por inocente utopia) os factos e as crenças que lá estejam, os eventos e os mitos, que eventos são, de outra ordem.»(José-Augusto França, História: Que História?, Lisboa, Edições Colibri, 1996, reed. 2005). Aliás, a questão que se nos coloca é sempre a mesma: dentro da sua dimensão mais ou menos regional (já que todas as obras de arte geradas ao longo da História são fruto de contextos regionais, pois tão frágil se torna definir-se a unicidade da sua permanência ao «centro» de onde emana), o que importa é saber situar e ver as obras de arte -- todas as obras de arte -- como objectos vivos, parcelas de um discurso integral e trans-memorial que interage a níveis históricos, formais, iconográficos, iconológicos, estilísticos e, sempre, estéticos.

O caminho é o da conjugação metodológica de vias: a investigação dos arquivos, a análise laboratorial, a via estilística e comparativa, o re-conhecimento dos dialectos artísticos das obras de per si, na sua dimensão dialéctica de microcosmos de um tempo e de testemunho trans-contextual vivenciado. Também aprendemos isso com José-Augusto França. Recorrendo a alguns «estudos de caso» no campo da pintura portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, analiso aqui várias alegorizações da arte da Pintura e algumas manifestações de vanguarda, de continuidade e de reelaboração, com exemplos de obras entre Lisboa, Viseu, Évora, Santarém e alguns ‘focos’ regionais, que abrem pistas para um estudo globalizante das várias situações de ‘centro relativo’ e de ‘periferismo activo’.

Sem se perder de vista o postulado de Pierre Francastel (1900-1970) ao recomendar como ofício primeiro da História da Arte ‘je propose qu’on cherche’ -- que foi, e é, lema de toda a produção crítica de José-Augusto França, o maior e mais internacional dos historiadores de arte portugueses --, a micro-história da arte coloca o objecto de análise artística num plano superior de exigência, uma questão permanente.

 

Aula virtual  devido ao CoronaVírus 

(Vitor Serrão, 18 de Março de 2020)

 

Bibliografia de N. Hadjinicolaou: Histoire de l'art et lutte des classes. Paris, 1973; Art History and Class Struggle. London: Pluto Press, 1978; El Greco. Rethymnon: Crete University/New Rochelle, NY, 1990, vol. 1. : Documents on his Life and Work, vol. 2. El Greco: Byzantium and Italy. 1990, vol. 3. El Greco: Works in Spain, vol. 4. El Greco: Altarpieces in Spanish Churches. Rethymnon: Crete University Press, 1999; El Greco in Italy and Italian art: Proceedings of the Iinternational Symposium, Rethymnon, Crete, September 1995. Rethymnon, University of Crete, 1999.


Revisão da matéria dada.

11 Março 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Por força das medidas impostas face à epidemia de coronavírus e do fecho temporário das aulas presenciais, envia-se para os alunos material de estudo.