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Balanço da matéria dada: a Teoria da História da Arte na encruzilhada.

17 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Balanço da matéria dada: a Teoria da História da Arte na encruzilhada.


Cripto-História da Arte: as obras fragmentárias e destruídas perdem a sua aura ?

15 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 Cripto-História da Arte: as obras fragmentárias e destruídas perdem a sua aura ?

No corpo de instrumentos de trabalho de que dispõem a História da Arte e as Ciências do Património conta-se o conceito operativo de Cripto-História de Arte, que assenta precisamente no estudo das obras de arte fragmentárias e mortas, ou seja, no papel que cabe aos indícios (mesmo de todo desaparecidos) para a caracterização histórica, artística, cultural, e estilística, dos vários «tempos» patrimoniais. Parte-se do princípio de que esta disciplina científica não deve ser restringida ao estudo das obras vivas, ou seja, os grandes monumentos, edifícios classificados e peças de valia museológica, mas também ao estudo daquelas muitíssimas obras que já desapareceram, por incúria ou destruição.

Acresce a utilidade de se estender esta análise dialéctica assente na noção de fragmento à essência de todo o património visto na sua máxima globalidade, ao estudo daquele que persiste truncado e, até, a projectos artísticos que quedaram inacabados ou não chegaram mesmo a realizar-se. Conceito com útil verificação prática pela comunidade científica, insere-se dentro de um quadro de pesquisa definido em vários níveis de abordagem (cripto-analítico, dedutivo, reconstitutivo, ‘encreativo’). Trata-se de visão alargada em termos teórico-metodológicos, assente na base de dados inventariais como instrumento maior, integrando as perdas patrimoniais no ‘corpus’ exaustivo de bens, ainda que fisicamente já não existam  . Tal como a prescrutação micro-artística integrada (recorrendo-se a Carlo Ginzburg), à dimensão de existências em contexto periférico, o conceito alarga este esforço de revalorização ao atentar na valência específica das franjas da paisagem construtiva em espaços de periferismo, incluindo a esfera dos patrimónios a preservar na dimensão desvalorizada das micro-produções artísticas e evitando muitas das inexoráveis perdas que se sucedem no tempo.

Enquanto noção operativa provida de franca utilidade para o alargamento das práticas da H. Arte, a CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE assenta as suas bases de pesquisa cripto-artística em cinco vertentes simétricas e convergentes, a saber:

1 --- a abordagem criptoanalítica; A vertente da cryptoanalysis (ciência que decifra a mensagem em código sem nenhum conhecimento prévio da sua chave) permite à H. da Arte desvendar os ‘indícios’ sem ter aparentemente dados complementares a seu respeito. Obras que foram destruídas (deliberadamente ou por efeito de calamidades) ou tiveram vida efémera podem de algum modo ser reavaliadas através de indagações cripto-artísticas alargadas. Bom exemplo é o projecto de decoração funerária «ao romano» que António Campelo realizou cerca de 1572 para a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, aquando das exéquias de trasladação dos ossos de D. Manuel I para a nova capela-panteão de D. Catarina de Áustria. Só resta, para a abordagem criptoanalítica, o desenho do mesmo Campelo, inspirado num fresco de Polidoro da Caravaggio em San Silvestro al Quirinale em Roma, que representa a Alegoria à Morte (M.N.A.A). O método de abordagem permite alargar conhecimentos e entretecer uma via lógica de interpretação de como era organizado um programa artístico efémero que a voragem dos tempos de todo destruíu.

2 --- a abordagem dedutiva; A vertente dedutiva, isto é, o enfoque de obras já desaparecidas no conjunto de um ciclo artístico ou na produção geral de um dado artista,  decorre da forma dada pela análise visual, documental, estilística, iconográfica, etc, de outras obras do conjunto que subsistiram no presente. O recurso às descrições memoriais e à fotografia antiga, p. ex., apoia o exercício cripto-artístico e assegura a plausível eficiência da análise proposta: veja-se o caso do retrato de D. Violante Gomes, a formosa judia Pelicana, mãe de D. António, Prior do Crato, o malogrado candidato ao trono na crise de 1580, pintado pela oficina de Diogo Teixeira, c. 1578-80, no desaparecido cadeiral do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Almoster.

3 --- a abordagem increativa; O termo metafísico de incriação,ou seja, estudo da obra incriada --  uma obra que foi concebida mas não realizada --, é outra vertente da análise cripto-artística. Trata-se do estudo de obras de arte que fisicamente nunca existiram mas cujos fundamentos e bases programáticas podem ser re-conhecidos a partir de desenhos, fotografias, textos, uma descrição, ou de um outro indício. A coerência de um inquérito histórico-artístico organizado segundo estas vertentes carreia o alargamento da metodologia geral da História da Arte em novas bases. 

4 --- a abordagem  reconstitutiva; A análise do fragmento ou parte de uma obra parcialmente inexistente, utilizando todas as fontes ao dispôr do historiador de arte, define a via da abordagem reconstitutiva e permite desvendar a possível estrutura inicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA).

5 --- e a abordagem cripto-iconológica. Enfim, é à luz da lição da ICONOLOGIA que a pesquisa criopto-artística ganha a sua maior

dimensão: sendo a Iconologia a vertente da H. Arte que desvenda significados e razões ocultas dos programas estéticos, torna-se fundamental na pesquisa iconológica a reconstituição, a dedução, a análise da ‘increação’ e a cripto-análise a partir dos ‘indícios’, caminho necessário para que as obras de arte sejam mais e melhor iluminadas no processo do seu estudo integral.

O sentido dos códigos e dos signos – dos ‘indícios’ – com os seus níveis de significação diversos, abre inesgotáveis possibilidades à fascinação do ver e sentir as obras de arte, tal como elas se nos apresentam hoje, quase sempre truncadas de qualquer coisa que, apesar de tudo, pode ser percebível... É de lembrar que o estudo e revalorização do FRAGMENTO remonta à consciência dos chamados antiquários do Renascimento, como André de Resende e Francisco de Holanda no nosso caso, em torno da descoberta de um primeiro sistema de prova documental baseado na análise e valorização dos INDÍCIOS (aplicados à Numismática, à Epigrafia, etc). 


Arte, mercado, mitificações: a lenda do Grão Vasco face à auisência de uma teoria e de uma metodologia de estudo das artes...

10 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     A partir do pós-Renascimento, existiu no mercado de arte nacional aquilo a que podemos chamar um gosto em português, segundo o qual o recheio artístico das casas se organiza. Entre os séculos XVI e XIX, domina nas colecções um equilíbrio entre a presença de peças ítalo-flamengas e de origem nacional (colonial): hibridismo, exótico e nacional português estão juntos de modo coerente. Figuras como D. João de Castro, vice-rei da Índia, que possui na quinta da Penha Verde (Sintra) tanto arte renascentista como estelas hindus, ou D. Fernando de Castro, 1º conde de Basto, que reúne no paço eborense um acervo polivalente de arte flamenga, italiana, chinesa, indiana e do Japão, assumem tal vertente ímpar de coleccionismo luso.

     O termo accrochage de arte (colecção artística) implica estratégias estruturadas na compra e gosto do mentor, na lógica e sentido de exibição das peças. Julius von Schlosser (Leipzig, 1908), ao estudar a colecção do arquiduque Ferdinando II do Tirol, em Ambras, Innsbruck, abriu campo aos estudos do Coleccionismo. O seu livro (reeditado por Patricia Falguières) destaca as peculiaridades históricas das câmaras de maravilhas da Idade Moderna, embrião do museu contemporâneo. Em nome dessa singularidade, podem ser estudados os gabinetes de opulência dos mecenas, do século XVI ao XIX. Mas há que distinguir as situações de mera ostentação casuística, daquelas em que é pela especialização que se cria uma lógica de colecção. Tal estudo de género impõe uma via pluri-disciplinar e um olhar estético, sem esquecer as inconstantes de gosto, as curvas de fama, efemeridade e sobrevivência que acompanham o gosto, o peso do exotismo, a novidade pelo outro, a sua definição como factor social distintivo (que é dialecticamente mutável e que depende de conjunturas breves), e os ritmos trans-memoriais com retomas e novas corporalidades.

 

Origens do mito Grão Vasco.

     Cedo ganhou força a ideia de que o estilo Grão Vasco era insuperável e tal estimulou formas de seguidismo e aclamação. Já em 1607 os pintores de Viseu afirmavam ser impossível substituir o famoso painel São Pedro da Sé, considerando «grande erro mandar fazer outra pintura» por «ser da mão de Vasco frz» e não ser possível «fazer outra tam boa, tam perfeita e bem acabada»… O célebre São Pedro Patriarca da capela de São Pedro da Sé de Viseu, c. 1530 (Museu Grão Vasco), muito elogiado como «oitava maravilha do mundo», vai originar muitas réplicas, eruditas e regionais, facto visto como prova maior da fama do seu autor A análise das obras atribuídas ao Mito Grão Vasco existentes em colecções nacionais e estrangeiras oferece-nos excelente forma de iluminar as mais-valias do coleccionismo português. Depois do escritor Botelho Pereira, que em 1630 elogia o «grande e insigne Vasco», será o pintor Pietro Guarienti, em 1753, na edição do Abecedario Pictorico de Orlandi (Veneza), a fortalecer o mito: «Vasco, chamado no reino de Portugal com o titulo de Gran Vasquez pelas muitas e insignes pinturas por elle feitas e por todo aquelle reino dispersas», dizendo que fora discípulo de Perugino em Itália, e destaca oito tábuas que possuía o Marquês de Valença. Trata-se do retábulo da Vida da Virgem, admirado em 1843 por Raczynski na colecção Palmela e que se sabe hoje ser, não de Grão Vasco mas sim da «parceria» Garcia Fernandes-Cristóvão de Figueiredo. Outra obra atribuída a Grão Vasco que sai para colecção estrangeira no século XIX, são as predelas duas predelas com Santas mártires, hoje identificadas como obras de Gregório Lopes, que pertenciam ao retábulo da igreja do Paraíso, tendo sido levadas para Poznan (Polónia) por Raczynski como testemunhos do «estilo Grão Vasco», depois de Guarienti (1753) também assim as considerar…

    Entre outros autores que se referem ao mito Vasco, cita-se Roland de Virloys, no Dictionnaire d’architecture (Paris, 1771), que fala de «Vasco, qui vivait vers 1480, appellé au Portugal le grand Vasquez à cause du grand nombre de belles oeuvres de peinture qu’il a fait en plusieurs lieux de ce royaume…», e William Beckford (1760-1864), viajante romântico inglês, ao visitar o Mosteiro da Batalha, em 1835, ao elogiar um quadro de São Tomás de Aquino «by  a very ancient Portuguese artist named Vasquez, attracted my minute attention». Também José da Cunha Taborda (1815), Cyrillo Volkmar Machado (1823), o Cardeal Saraiva e outros destacam a fama do misterioso Grão Vasco, autor de toda a boa pintura antiga existente em Portugal ! É ao Conde Atanazy Raczyński (1788-1874) que se deve o início da destruição do mito, embora, ao mesmo tempo, fosse o peso da sua autoridade que o fortaleceu e divulgou na opinião pública europeia… O diplomata prussiano e connoisseur foi autor de dois famosos livros aquando da estada na Península em 1842-1848: Les arts en Portugal (Paris, 1846) e  Dictionnaire historico-artistique du Portugal (1847). Terá papel relevante na popularização do mito ao defender que «Grão Vasco mais não seria do que um mito, a quem a tradição portuguesa atribuía toda a boa pintura antiga em madeira existente no país» (…). «No fundo, Grão Vasco é apenas um mytho; porquanto, posto que tenhamos descoberto Vasco Fernandes pintor, e de merito, e visto as suas obras em Vizeu, e posto que um auctor contemporaneo o tenha julgado grande, não é todavia a elle que este sobrenome compete de direito, porque nenhum dos auctores que escreveram acerca de Grão Vasco e julgaram do seu merito (Guarienti, Cyrillo, Taborda) viu as obras dse Vasco. O que é attribuido a Grão Vasco, não se sabe porquê, é a eminente quantidade de quadros gothicos, pintados sobre madeira, que se acham espalhados em todo o Portugal, nenhum dos quaes, excepto os de Vizeu, é de Vasco Fernandes. No fundo, eis o que isto he: há um verdadeiro Vasco Fernandes que Pereira com razão julgou um grande pintor e Fr. Agostinho chamou insigne, mas há outro Grão Vasco mytho, de que ninguem tem conhecido, nem a vida nem as obras».

     O sentimento patrimonial que nasce com as Luzes e, sobretudo, os valores nacionalistas e patrióticos do Liberalismo incentivam o mito Grão Vasco. Com Raczynski, e as informações confusas do Visconde de Juromenha, Grão Vasco passa a merecer o estudo do ilustre connoisseur. Embora note que, em termos cronológicos e de estilo, era impossível que todas as obras dadas a Vasco fossem de um mesmo pintor, a verdade é que o mito prevalece (há autores, como Oliveira Berardo, que elencavam centenas de obras, em Lisboa, Tomar, Viseu, Évora…). Em 1844, Raczynski conheceu o pintor António José Pereira (1821-1895) ao visitar Viseu, a mando da Sociedade Artística e Científica de Berlim, para estudar a obra atribuída a Grão Vasco na Sé. Encomenda então a Pereira a cópia de uma das predelas de Vasco na Sé, o São Jerónimo, para levar para a Prússia. Aliás, Pereira pintou outras cópias de Vasco, hoje em colecções particulares. É neste contexto que aparece em 1857 o tríptico Cook, que será levado por Francis Cook para Londres em 1875, o que mais irá divulgar os «primitivos portugueses» à escala europeia: constitui exemplo maior do fascínio internacional pela obra de Grão Vasco, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga (em depósito no Museu Grão Vasco, Viseu), assinado VASCO FRZ e datável de c. 1520. Procede de um convento beirão (talvez São Francisco de Orgens), pertenceu a António José Pereira, que o vendeu por 600.000 réis a Francis Cook, para a sua casa de Richmond, sendo oferecido pelos herdeiros, em 1945, ao Estado português. A descoberta de António José Pereira (1857) foi alvo de desconfiança por estudiosos como o historiador de arte Joaquim de Vasconcelos (1848-1936), que duvidou da autenticidade da assinatura e, em texto agressivo, chega a dizer que Pereira vivia «à sombra de Grão-Vasco agenciando os seus pequenos negócios de copista e plagiário, com que deleitou differentes inglezes, alguns fidalgos devotos, várias beatas ricas e venerandas confrarias e irmandades do districto de Viseu»…

    

 O auge do mito Grão Vasco.

     O grãovasquismo impôs-se no coleccionismo dos séculos XVIII e XIX; nesta comunicação referem-se peças de estilo Grão Vasco em várias colecções nacionais (Penalva, Borba, Cook, Arroyo, Burnay, Ameal, Palmela), essenciais para reforçar o mito e reconhecer autonomia a uma Escola portuguesa capaz de ombrear com as grandes 'escolas' europeias da Renascença  Caso interessante é o Pentecostes (27 x 19 cm) de início do século XVI que a abadessa do mosteiro da Madre de Deus ofereceu a John Charles Robinson (1824-1913) em Outubro de 1869. Como escreveu, a tábua foi-lhe oferecida “in acknowledgment of a contribution towards the funds of that once wealthy and celebrated, but now impoverished, establishment”. Este «primitivo», então dado a Grão Vasco, é afinal obra da oficina coimbrã Vicente Gil-Manuel Vicente. Vera Mariz pensa que Robinson veio a Portugal adquirir obras para Francis Cook: um dos quadros que entra nesse ano na colecção de Richmond é descrito como um Pentecostes da “Early Portuguese School (Sixteenth Century)”. Robinson também veio a Portugal estudar a nossa arte antiga e publica em 1868, bilingue, A Antiga Escola Portugueza de Pintura, onde valoriza as obras atribuídas a Grão Vasco em Viseu, Coimbra e Lisboa. Sabemos que Robinson comprou uma Virgem com o Menino num leilão da Christie's que julgava ser do Grão Vasco (nº 749). Teria pertencido antes a Lord Acton. Ignoramos onde páram hoje essas duas pinturas…  Registam-se obras atribuídas a Grão Vasco nas melhores colecções. Na colecção do Conde de Ameal, João Maria Ayres Correia do Amaral (1847-1920), com dois mil lotes leiloado em 1921, havia tábuas atribuídas a Grão Vasco (que hoje se sabem ser de outros artistas, Cristóvão de Figueiredo, Garcia Fernandes, etc). Na Colecção do 5º Marquês de Penalva, D. Estêvão José de Meneses, sabemos que em 1758 Francisco Vieira de Matos, Vieira Lusitano (1699-1783), avalia a alto preço vários painéis atribuídos a «Grão Vasco – estillo portugues antigo». Nessa célebre colecção havia 250 quadros, estimados em 9.249.620 rs: Rafael, Andrea del Sarto, Ticiano, Parmigianino, Tintoretto, Veronese, Durer, Greco, Bartolomeu Spranger, e Grão Vasco, Fernão Gomes, Marcos da Cruz e Diogo Pereira entre os portugueses.

     Nos inventários após a exclaustração das casas religiosas de Évora, há uma menção a Grão Vasco relativa ao convento de São Bento de Cástris feita em 1845 por Cunha Rivara e João Rafael de Lemos: «Baptista no deserto em madeira alt. 48 larg. 58 Tem varios grupos de figuras ao perto e ao longe Grão-Vasco É admiravel». Sabe-se hoje que, afinal, esse belíssimo quadro maneirista (hoje no M.N.A.A.) data de 1550-1554 e é de… Diogo de Contreiras !  Também sabemos hoje que Diogo de Contreiras trabalha para a igreja de São João das Lampas (Sintra) c. 1555 e pinta um retábulo de que fazia parte o Baptismo de Cristo ainda hoje na igreja e uma Visitação da Virgem que desapareceu em meado do século XX, vendida como «primitivo Grão Vasco». Encontrava-se c. 1950 numa colecção da Alemanha e ignora-se hoje o seu destino. A antiga Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro foi criada por D. João VI em 1816, e passou em 1890 a Escola Nacional de Belas Artes. A sua colecção de arte forma em 1975 o Museu D. João VI com os acervos mais antigos, sobretudo o legado do coleccionador Engº Jerónimo Ferreira das Neves (Rio de Janeiro, 1854-1918), que reuniu notável colecção de arte e livros que leva para o Brasil. Tinha-os adquirido a António Maria Fidié, fornecedor de obras de arte de D. Fernando II, adquiridas após a extinção das ordens religiosas. Foi ele quem vendeu a Ferreira das Neves um Metsys e quatro painéis «primitivos Grão Vasco» hoje no MJVI. A proposta autoral foi rebatida em 1999, quando se provou que a autoria das quatro tábuas se deve à «parceria» Cristóvão de Figueiredo-Garcia Fernandes, os Mestres de Ferreirim, c. 1525-1530.

 

O declínio do mito Grão Vasco e a lenta reposição da verdade.

     Existe um novo universo de problemas que obriga os historiadores de arte a estudar a fortuna crítica de muitas obras portuguesas hoje perdidas em colecções estrangeiras sem que haja conhecimento do seu historial: existem «primitivos portugueses» em colecções fora do país, que daqui saíram no século XIX como Grão Vascos.

     Um Santo André é especialmente importante: trata-se de tábua vendida em Viseu em 1888, de que se desconhece o paradeiro. Informação de Claudie Ressort (Musée du Louvre) deu a conhecer esse painel da oficina de Vasco Fernandes: estava em Março de 2012 numa colecção em Bonn, por morte do proprietário foi posto à venda, e ignora-se o seu destino. Pertenceu ao coleccionador Émile Pacully, cujo acervo, abundante em pintura espanhola, foi vendido em 1903 na Galérie Georges Petit, em Paris. A foto mostra similitudes de estilo com os painéis de Cassurrães e Pindo, o que aponta para a última fase de actividade de Vasco Fernandes. Nas reservas do Museu Grão Vasco encontra-se uma cópia deste Santo André pintada por António José Pereira em 1880, oferta de José Augusto Pereira, seu filho, em 1929. Em carta de 1934 é referido o interesse na aquisição da tela, «pois era uma cópia de um original de Grão Vasco que se encontrava desaparecido».

       O declínio do mito começa em 1897 com as pesquisas de Maximiano d’ Aragão (1853-1929) no Arquivo da Diocese de Viseu, reunidas em 1900 no livro Vasco Fernandes o Grão Vasco, pintor vizeense, principe dos pintores portuguezes. Pela primeira vez alguém recorre a fontes primárias, o que lhe permite falar com toda a objectividade de uma ‘escola de Viseu’. Ao revelar a existência histórica de Vasco Fernandes, a História da Arte passa do registo pitoresco e lendário para a solidez científica. A historiografia da arte descobre com este livro de Maximiano d’Aragão a utilidade de se embrenhar nos arquivos e assentar bases em levantamentos sistemáticos. A verdadeira identidade do mítico Grão Vasco, que começara a ser entrevista com a descoberta da assinatura do tríptico Cook (detectada em 1857 por António José Pereira no painel central, mas então considerada uma falsidade), só terá confirmação em 1924 com o achado das primeiras firmas documentais, descobertas pelo historiador de arte Vergílio Correia (1888-1944) num dos contratos do retábulo da Sé de Lamego (1506-1511). O livro Vasco Fernandes mestre do retábulo da Sé de Lamego (Coimbra, 1924) torna-se fundamental para apuramento da autoria das primeiras obras identificadas de Vasco Fernandes, lançando luz sobre o misterioso Grão Vasco e definindo pela primeira vez a obra. Vergílio Correia continua a ser incontornável para o estudo da arte do Renascimento e o entendimento da relação entre comitente e artista no processo criativo.

     Só no início do século XX começa a desvanecer-se o mito Grão Vasco, que levara a atribuír a uma nebulosa identidade toda a pintura antiga em tábua que aparecia em igrejas, museus e colecções do país. Pensara-se que Vasco seria um iluminador de D. Afonso V (Juromenha), ou um viseense nascido em 1552 (Berardo); Raczynski defendeu que era uma mitificação criada para legitimar uma «escola de pintura portuguesa». Ora os documentos revelados por Maximiano d'Aragão (1900), Sousa Viterbo (1903) e Vergílio Correia (1924) clarificaram a questão – passou a saber-se  que houve mesmo um Vasco Fernandes pintor activo em Viseu de 1501 a 1542. A discutida assinatura do tríptico Cook, que pertenceu a António José Pereira (1857 a 1875) e foi comprado por Francis Cook em 1875 para a sua casa de Richmond (Londres), até 1944, data em que o Estado português dele toma posse (expõe-se no MNAA), é enfim autenticada com a descoberta das assinaturas dos contratos de 1506-1511. O famoso livro de Vergílio Correia permitiu ao filho de António José Pereira escrever um desagravo em memória do pai no artigo «A propósito de Grão Vasco»: «A descoberta da assinatura do pintor Grão Vasco, pelo Dr. Vergílio Correia, desfaz uma calúnia de Joaquim de Vasconcelos acerca da assinatura do quadro vendido pelo falecido pintor visiense Antonio José Pereira» (A Voz da Verdade, 16-II-1924). A obra de Vergílio Correia constituiu o maior impulso no fim do «Mito Grão Vasco», identificando as primeiras obras seguras do mestre viseense. Em sua sequência, Luís Reis-Santos (1898-1967) será autor, em 1946, do grande ‘corpus’ da obra de Vasco Fernandes e seus discípulos e colaboradores Gaspar Vaz, António Vaz, e os seguidores anónimos. Partindo de uma série de obras absolutamente identificadas (vinte e nove tábuas), o Grão Vasco passa a contar, doravante, com um acervo de cerca de noventa pinturas seguramente adstritas ao seu pincel.

     Para explicar o fenómeno do mito Grão Vasco, é destacado justamente o peso reverencial com que os coleccionadores e entendidos de pintura antiga continuaram em sucessivas gerações a olhar a obra tutelar de Vasco na Sé de Viseu. Apurava-se que o genial pintor renascentista criou um gosto com estilemas muito apreciados. Como diz Dalila Rodrigues, «Vasco Fernandes marcou em profundidade todos os pintores que trabalharam com ele», criando uma sequência «com maior ou menor grau de dependência relativamente à sua linguagem personalizada, sob a forma de assimilação, recriação e imitação». Tal explica o extraordinário mito que, à medida que a verdadeira identidade se apagava, cresceu nos séculos XVII a XIX...

      Em suma: o mito Grão Vasco constituiu o maior fenómeno patriótico de auto-legitimação envolvendo a antiga arte portuguesa, o que explica a vasta fortuna crítica que acompanhou um desmesurado coleccionismo que envolveu tantas obras, atribuídas ao seu estilo, presentes nas melhores colecções dos séculos XVIII e XIX, bem como o esforço de ilustres estrangeiros em adquirir outras junto às paróquias e fundos de extintos conventos. Se o Vasco Fernandes histórico não se confunde mais com essa lendária nebulosa, tendo readquirido, com o trabalho da História da Arte, os contornos da justa reabilitação, a lenda do grãovasquismo não deixou de reflectir aquilo que esteve, no fundo, na sua génese: um surdo desejo de internacionalização do nosso património artístico, que desde o século das Luzes ganhava expressão. 


A Escola de frankfurt, a obra de theodor Adorno e a teoria das artes influenciada pelo marxismo.

8 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     A Escola de Frankfurt (Frankfurter Schule), de que a figura mais ilustre será Theodor Adorno, foi uma escola de teoria social interdisciplinar, dse perfil neomarxista, associada ao Instituto para a Pesquisa Social da Universidade dessa cidade. A escola reunia na origem filósofos e cientistas sociais que que acreditavam que alguns dos seguidores de Karl Marx tinham abastardado e limitado as suas teses, levando à ortodoxia. Muitos desses teóricos admitiam que a tradicional teoria marxista não podia explicar adequadamente o turbulento e inesperado desenvolvimento de sociedades capitalistas no século XX. Críticos tanto do capitalismo e do estalinismo, as obras desta escola apontaram para a possibilidade de um caminho alternativo para o desenvolvimento social. Apesar de todas as dificuldades e alinhamentos, os teóricos da Escola de Frankfurt usaram um paradigma comum, compartilhando assim os mesmos pressupostos e preocupando-se com questões similares. A fim de preencher as omissões do marxismo tradicional, recorreram outras escolas de pensamento, usando ensaios de Sociologia anti-positivista, Psicanálise, Filosofia Existencialista, Estética e outras disciplinas. Assim, as principais figuras da escola aprenderam e estudaram o pensamento de Kant, Hegel, Marx, Freud, Weber, Lukács, etc. Seguindo Marx, estavam preocupados em perceber as condições que permitiam as mudanças sociais e o estabelecimento de instituições racionais. A sua ênfase na componente crítica da teoria derivou significativamente da sua tentativa de superar os limites do positivismo, do materialismo e do determinismo, retornando às bases da Filosofia crítica de Kant e aos seus sucessores no idealismo alemão, principalmente a filosofia de Hegel, com sua ênfase na dialéctica e contradição como propriedades inerentes da realidade. Desde a década de 1960, a teoria crítica da Escola de Frankfurt tem sido guiada pelo trabalho de Jürgen Habermas na razão comunicativa, inter-subjectividade linguística, estética, e aquilo a que Habermas chama "discurso filosófico da modernidade". Mais recentemente, teóricos críticos como Nikolas Kompridis seguiram, como oposição a Habermas, a ideia de que ele tinha minado as aspirações à mudança social que originalmente davam propósito a vários projectos de teóricos críticos - por exemplo, o problema de que razão deve denotar, a análise e a ampliação de "condições de possibilidade" para a emancipação social plena e a crítica ao capitalismo moderno.

     Interessa-nos avaliar o legado desta escola de pensamento no campo da arte e da estética, em que o pensamento de Adorno foi especialmente original. «Todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas, o que sempre irritou a teoria da arte», disse. Desenvolveu os conceitos de incognoscível, de instável, de «determinação do indeterminado», na sua abordagem do fenómeno artístico, a partir da ideia de que «a arte não é um puro objecto hermenêutico».

 

Verdenor Wiesehngrund (Adorno) nasceu em Frankfurt, filho de Oscar Alexander Wiesengrund (1870-1941), judeu, negociante alemão de vinhos, convertido ao protestantismo, e de Maria Barbara Calvelli-Adorno, cantora lírica italiana e católica. Theodor passou a abreviar o último nome, utilizando o nome de solteira da mãe como sobrenome (Theodor W. Adorno, ou Theodor Adorno). Estudou música com a meia-irmã, Agathe. Frequentou o Kaiser-Wilhelm-Gymnasium, onde se destacou. Ainda na adolescência teve aulas de composição com Bernhard Sekles e leu Immanuel Kant com o seu amigo Siegfried Kracauer, especialista em Sociologia do Conhecimento. Mais tarde, diria que deveu mais a essas leituras que a qualquer de seus professores na Universidade. Na Universidade de Frankfurt (actual Universidade Johann Wolfgang Goethe) estudou Filosofia, Estética, Musicologia, Psicologia e Sociologia. Completou os estudos, defendendo em 1924 a tese sobre Edmund Husserl (A transcendência do objecto e do noemático na fenomenologia de Husserl), orientado pelo Prof. Hans Cornelius. Diz Adorno que essa tese foi muito influenciada por seu orientador. No fim da graduação conhece já dois de seus principais parceiros intelectuais, Max Horkheimer e Walter Benjamin.

Entre 1921 e 1923 publicou cerca de cem artigos sobre crítica e estética musical e conhece Vilma, com quem casaria. A sua carreira filosófica começa em 1933 com a publicação da tese sobre Kierkegaard. Em 1925 conhece um dos filósofos que mais o influenciaram, o jovem Lukács que, sendo crítico de Kierkegaard, decepcionará o jovem Adorno e o leva a renegar a sua obra de juventude (A Teoria do Romance, por completo, e a História e Consciência de Classe, em parte). Essas obras são pilares do pensamento de Adorno, que travará polémicas com Lukács por seus "desvios" de pensamento em prol do partido. Outro filósofo que influenciará Adorno de forma crucial foli Walter Benjamin, a ponto de Adorno afirmar que, em determinado momento de suas produção filosófica a sua maior intenção era traduzir Benjamin em termos académicos. Com o fim da Segunda grande Guerra, Adorno é um dos que mais desejam o retorno do Instituto para a Pesquisa Social a Frankfurt, tornando-se seu director-adjunto e seu co-director em 1955. Com a aposentadoria de Hokheimer, Adorno torna-se o seu novo director.

 

Últimos anos e morte. Próximo de sua morte, em 1969, Theodor Adorno envolve-se em polémica com o seu companheiro e amigo da Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse, por não ter apoiado os estudantes que, em 31 de Janeiro desse ano, interromperam a aula, tentando continuar, dentro do Instituto, os protestos que tomavam as ruas das capitais da Europa. Adorno chamou a polícia... Marcuse posicionou-se a favor dos estudantes e, numa série de cartas, repreendeu severamente o amigo, dizendo de maneira clara que "em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são actos legítimos de protesto político (...). Na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, através do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extra-parlamentar torna-se a única forma de contestação: desobediência civil, acção directa". Famosas foram ainda suas polémicas com Arnold Gehlen, filósofo e sociólogo conservador, um dos representantes, ao lado de Hamns Frever e Helmut Schelsky, da Escola de Leipzig. Adorno faleceu, por problemas cardíacos, no dia 6 de agosto de 1969. Está sepultado em Hauptfriedhof,Frankfurt am Maim, Hesse (Alemanha). Ao visar a produção em série e a homogeneização, a técnica de reprodução sacrifica a distinção entre o carácter da própria obra de arte e do sistema social. Por conseguinte, se a técnica passa a exercer imenso poder sobre a sociedade, tal ocorre, segundo Adorno, graças em grande parte ao facto de que as circunstâncias que favorecem tal poder são arquitectadas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Assim, a racionalidade da técnica identifica-se com a racionalidade do próprio domínio. Essas considerações evidenciariam que não só o Cinema como também a Rádio não devem ser vistos como arte... O facto de não serem mais que negócios, escreve Adorno, basta-lhes como ideologia”. Enquanto negócios, os seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. Tal exploração Adorno chama de “indústria cultural”.

 

    Indústria Cultural. O termo Indústria Cultural foi empregue pela primeira vez em 1947, quando da publicação da Dialéctica do Iluminismo, de Horkheimer e Adorno. Numa série de conferências de rádio, em 1962, explicou que a expressão “indústria cultural” visa substituir “cultura de massas”, pois esta induz ao engodo que satisfaz os interesses dos detentores dos veículos de comunicação de massa. Os defensores da expressão “cultura de massa” querem dar a entender que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. Para Adorno, que diverge frontalmente dessa interpretação, a indústria cultural, ao aspirar à integração vertical de seus consumidores, não apenas adapta seus produtos ao consumo das massas, mas, em larga medida, determina o próprio consumo. Interessada nos homens apenas enquanto consumidores ou empregados, a indústria cultural reduz a humanidade, em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, às condições que representam os seus interesses.

  A indústria cultural transporta todos os elementos característicos do mundo industrial moderno e nele exerce um papel específico, o de portadora da ideologia dominante, que outorga sentido a todo o sistema. Adorno fala acerca da ideologia capitalista, e sua cúmplice, a indústria cultural, que contribui eficazmente para falsificar as relações entre os homens, bem como dos homens com a natureza, de tal modo que o resultado final se torna uma espécie de anti-iluminismo. Considera que o iluminismo teve como a finalidade libertar os homens do medo, tornando-os senhores e libertando o mundo da magia e do mito, e admitindo que essa finalidade pode ser atingida por meio da ciência e da tecnologia, tudo levaria a crer que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre a ciência e a técnica. Ao invés disso, liberto do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Esse progresso transformou-se em poderoso instrumento utilizado pela indústria cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A indústria cultural nas palavras de Adorno, “impede a formação de indivíduos autónomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo na sua forma mais avançada, a diversão e o lazer se tornam um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para se colocarem de novo em condições de a ele se submeterem. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem, nos tempos livres, e sobre a sua felicidade, determinando tão completamente a fabricação dos produtos para distracção, que ele não tem acesso senão a cópias e reproduções do seu próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que uma pálida fachada: o que lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando a ele o ócio“.

   A Filosofia de Theodor Adorno, considerada das mais complexas do século XX, fundamenta-se na perspectiva da Dialéctica. Uma das suas obras marcantes, a Dialética do Esclarecimento, em colaboração com Max Horkheimer durante a Segunda Grande Guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo (uma crítica, fundada numa interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista, que Adorno chama “indústria cultural"). Também é uma crítica à sociedade de mercado que não tem outro fim senão o progresso técnico. A actual civilização técnica, surgida do espírito do Iluminismo e do seu conceito de razão, não representa mais que um domínio racional sobre a natureza, que implica ao mesmo tempo um domínio (irracional) sobre o homem; os diferentes fenómenos de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam mais que a pior atitude autoritária de domínio sobre o outro (neste caso Adorno recorre a outro filósofo alemão, Nietzche). Na Dialéctica Negativa, intenta mostrar o caminho de uma reforma da razão em si mesma, com o fim de libertá-la deste lastro de domínio autoritário sobre as coisas e os homens, lastro que ela carrega desde a razão iluminista. Opõe-se à filosofia dialéctica inspirada em Hegel, que reduz ao princípio da identidade ou a sistema todas as coisas através do pensamento, superando suas contradições (crítica também do Positivismo Lógico, que deseja assenhorar-se da natureza por intermédio do conhecimento científico), o método dialéctico da “não-identidade", de respeitar a negação, as contradições, o diferente, o dissonante, o que chama também de inexpressável: o respeito ao objecto, enfim, e a recusa do pensamento sistemático. A razão só deixa de ser dominante se aceitar a dualidade sujeito / objecto, interrogando (e interrogando-se) sempre o sujeito diante do objecto, sem saber sequer se pode chegar a compreendê-lo por inteiro. Tal admissão do irracional (pensar no irracional é pensar nas categorias tradicionais que supõem uma reafirmação das estruturas da sociedade) leva-o a valorizar a arte, sobretudo a de vanguarda, já por si problemática (como a música atonal de Arnold Schonberg, p. ex.), porque supõe uma total independência face ao que representa a razão instrumental. Adorno vê na Arte um reflexo mediado do real.

     Da Crítica da Razão, Adorno chega também à crítica da linguagem. Toda a linguagem conceptual produz alguma forma de violência cognitiva, pois nunca podemos conformar totalmente as palavras aos objetos e sentimentos tal como eles são (contradição do não-idêntico). Como alternativa e complemento à linguagem conceptual, valoriza a linguagem artística, que consegue expressar irracionalidades, contradições e medos sem os violentar por meio de conceitos. Ao erigir os seus próprios significados, a obra de arte cria um mundo interno sem necessidade de se espelhar em objetos externos e incorrer em violência cognitiva. Para Adorno, a postura optimista de Walter Benjamin em respeito à função mais revolucionária do cinema desconsidera certos elementos fundamentais. Embora deva a maior parte de suas reflexões a Benjamin, Adorno mostrou a falta de sustentação de algumas teses, que não trazem à luz o antagonismo que reside no próprio interior do conceito de “técnica”. Segundo Adorno, passou despercebido a Benjamin que a técnica define-se em dois níveis: primeiro “enquanto coisa determinada intra-esteticamente” e, segundo, “enquanto desenvolvimento exterior às obras de arte”. O conceito de técnica não deve ser pensado de maneira absoluta: ele possui uma origem histórica e pode desaparecer.


Karel van Vander e o pensamento nórdico do século XVI, e um estudo de caso à luz mista da iconologia e do formalismo.

3 Abril 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Uma NATUREZA MORTA de Jacob van Es: um 'estudo de caso' à luz mista da iconologia e do formalismo. O contributo dos escritores flamengos, como Karel van Mander, para a biografia de artistas e a teoria das artes. Antuérpia e o mercado das artes. um mundo específico para as obras de arte; Rede de correspondentes estrangeiros: Paris, Amsterdão, Frankfurt, Viena, Veneza, ,Génova e Madrid; • Mercado de arte em Antuérpia com rigoroso controle de qualidade técnica; • Coleccionadores” liefhebbers” registados na Guilda de S.Lucas desde 1600; • Valorização da realidade e autenticidade; os grandes nomes; • Rubens, Diego Duarte e António van Leyen; • Emanicipação da pintura “artes liberias” : Academia de Antuérpia 1663; • Especialização em Antuérpia; • Flutuação de gostos : Naturezas Mortas. •Desenvolvimento do gosto pelos produtos comerciais agrícolas ; •Gosto pela abundância; • •Crescente interesse pelo tema de alimentação e do abastecimento de géneros; • Alimentos de luxo;banquete-espectáculo; •Introdução do açúcar; • •Frutos do mar bem alimentar muito apreciado; •Ontbijtjes : exibição de luxos culinários e aviso a abundância; Estudo obsessivo dos objectos da sua qualidade de material de excessivo meticulosidade;  Estética visual e efeitos de luz sobre a cor dos objectos. O exemplo de um quadro de Jacob van es (fal. 1666).