Sumários

Balanço sobre a teoria da arte da Idade moderrna, entre Contra-Reforma e Reforma protestante.

13 Março 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

1.    O conceito de restauro storico: Ad Perpetuam Rei Memoriam VS. Ad Majorem Gloria Dei.

 

     O papel renovador do Concílio de Trento para valorizar o património secular da Igreja Católica assentou e teve ênfase na sua reorganização global, numa prática que teve acento na conservação e reconquista da sua auctoritas, na valorização do cristianismo primitivo, na afirmação litúrgica dos cultos específicos (o culto mariano, dos santos, das relíquias e das imagens sagradas) e a definição de princípios artísticos normativos e de contrôle da ecclesia [1]. Com a última sessão conciliar e o debate sobre as normas de representação, a arte sacra passou a reforçar a primeira linha desse princípio da auctoritas, face aos ataques protestantes.

     As bases doutrinárias do Concílio de Trento encontram-se, nestas vertentes, reflectidas em obras dos Cardeais Cesare Baronio, Carlo Borromeo e Gabriele Paleotti, e outros autores, nos quais a noção de tempo e a noção moderna de História se reforçam em argumentação e pesquisa. Os livros destes autores tridentinos pesaram na refutação das Centurias de Magdeburgo (Basileia, 1559-74), a compilação de teóricos protestantes (como Iliricus Flacius, entre outros) que criticavam Roma pelo desvio do ideal evangélico. A Igreja Católica assume então um moroso caminho de renovação, onde segue um idêntico método de compilação de textos, segundo uma estrutura inovadora, que permitiu fundamentar as bases de um formidável processo de reforma em todas as suas estruturas. Abriu-se uma ‘cruzada apologética’ dos teólogos católicos, como é o caso do padre jesuíta Roberto Belarmino, que estruturou a defesa teológica da Igreja segundo os princípios tridentinos, através das suas Controvérsias Religiosas (1586-1593). Outra figura de peso no campo da renovação da representação e uso imagem sacra foi o Cardeal Gabriele Paleotti, autor do famoso livro De immaginibus sacris et profanis (1582), onde se defende que a arte cristã tem seguir clareza didascálica, decorum, rigorismo e apego à ut ars rhetorica divina [2].

     No campo da arquitectura, o princípio da Restauratio est Rinnovata Creatio veio indicar a subordinação do espaço sacro à liturgia e à necessidade de seduzir as almas (animos impellere). O valor histórico-devocional passa a ser motor da intervenção sobre a preexistência, transformada por necessidades de adaptação (instaurare). São obras como esta que permitem compreender o intrincado processo de restruturação intestina levado a cabo pelos renovadores da Igreja Católica e a atenção que tiveram, nesse contexto, aos aspectos plurais da cultura visual. Seguiu esse caminho, com acento especial no campo do património edificado e nas políticas de restauro storico, o oratoriano Cardeal Cesare Baronio, autor do Martyrologium Romanum, cum notationibus Caesaris Baronii (Roma, 1598), onde se deu destaque ao papel do historiador como investigator veritatis e ao papel das artes como fonte afectiva, documental e pedagógica [3]. Com Baronio, a defesa dos factos históricos através da compilação da História da própria Igreja Católica constitui um pólo de interesses articulados, em que se defendia a análise rigorosa das fontes documentais, filologicamente organizadas, integrando nesse estudo as preexistências arquitectónicas (paleocristãs, românicas e góticas) e seguindo um método de revalorização do património católico em todos os territórios de implantação. As fontes históricas passam a ser objecto de dupla investigação, filológica e patrimonial, abrindo campo dos arquitectos, escultores, pintores e outros artistas para o cumprimento de uma espécie de arte senza tempo pontuando o triunfo de Roma e a autoridade absoluta da Igreja Católica.

     Figura-chave da teoria artística de signo tridentino, o Cardeal Baronio proferiu em San Girolamo della Carità, entre 1564 e 1567, várias leccios sobre a História da Igreja, dando início nesta última data à compilação dos seus famosos Annales, com recurso a informação provinda de toda a Europa e do Médio Oriente e a uma eficaz pesquisa de arquivo. Define-se nessa obra de sólida metodologia, baseada no estudo crítico das fontes, o princípio que deveria regular o restauro storico das velhas igrejas e lugares de culto paleo-cristão e, bem assim, as normas para uma nova arquitectura tridentina senza tempo. Em 1596-1600, nas vésperas do grande Jubileu Católico, o Cardeal Baronio coordena uma tarefa emblemática e que servirá de modelo-âncora para ulteriores intervenções no campo da arquitectura sacra: o restauro da igreja dos Sancti Nereo e Acchileo, em Roma. Aí orienta os trabalhos com pleno respeito pela préexistência e com acento no bom uso desse conceito de restauro storico. Segundo observou oportunamente Gabriella Casella [4], as igrejas paleocristãs e medievais deviam ser vistas, segundo explanava Baronio, como opus antiquitatis, ou seja, como monumentos, pelo que era imperioso restaurar as suas estruturas e decorações em respeito à estratificação do tempo.

     Assim, o conceito de restauro storico em Baronio é sinónimo de encomenda heróica, de acto providencial de agentes tutelares, de intervenção apta a preservar a memória do sítio hierofânico assente em avaliações qualitativas das existências e das próprias intervenções recomendadas. É por isso que a cumplicidade territorial e a memória histórica da Igreja se fundem, como afirma explicitamente nos Annales, numa força identitária cristã que é comum à vastidão dos territórios abrangidos e que vem consolidar a sua própria auctoritas.


[1]  Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1962.

[2]  Anthony BLUNT, op. cit.

[3]  Gabriella Maria CASELLA, O Senso e o Signo. A relação com as préexistências românicas (1564-1700). Contributos para uma História do Restauro Arquitectónico em Portugal, tese de Doutoramento, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005.

[4]  Gabriella Maria CASELLA, op. cit.


Ainda as teses de Bellori e a teoria da arte do Formalismo.

11 Março 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Gian Pietro Bellori (1615-1696) era um abade da Igreja, e presidente da Academia de Roma, e foi Antiquário do Vaticano e bibliotecário da raínha Cristina de Suecia. Publicou as “Descripción de las estancias de Rafael en el Vaticano”. Bellori seguiu a arte da pintura sem sucesso e preferiu dedicar-se à literatura,, sendo amigo de pintores como Poussin e de escultores como Duquesnoy. A obra fundamental é as VITE, de 1672, onde rtomou o exemplo de doze artistas cuja biografia apresenta, à luz das suas maneiras distintas de fazer arte: defende que no início do XVII há duas tendências opostas, o NATURALISMO dos seguidores de Caravaggio e o TARSDOMANEIRISMO do Cavaleiro de Arpino. Critica a esse naturalismo o predomínio da cor, com que só chega às camadas popularers e iletradas. Defende um CONCEITO INTELECTUAL da arte, que define como COSA MENTALE, com tónica no estudo e imitação da natureza. A solução é a que os Carracci ofereceram no início do século XVII: a via do classicismo, assente no desenho e no estudo do Antigo. Por isso elogia tanto os Carracci, Domenichino, Cortona, Reni, Lanfranco, Sacchi, Poussin, Valentin, e os que seguem Rafael, e menos, embora admirados, nomes como Van Dick e Rubens. Emulou a natureza à luz da estética grega. Assumiu uma sólida defesa da “idea da pintura, escultura e arquitectura” e analisou com grande dose de rigor a situação das artes na Itália do seu tempo.

Bom testemunho do pensamento de Giovan Pietro Bellori é a conferência feita na Accademia di San Luca de Roma em 1664; aí, o escritor enunciou a sua própria teoria Isegundo a qual é preciso retornar-se à NATUREZA como fonte primeira de inspiração dos artistas, no que constitui uma clara oposição às teorias artísticas do Maneirismo, que defendia uma recriação mental e ideal da natureza. Ferozmente anti-maneirista, prefere o classicismo de Rafael à ‘maniera’ de Miguel Ângelo. Assim, defende a prevalência dos cànones da estatuária greco-romana e as linhas apolíneras da  VENUSTÁ rafaelesca, como coordenadas de qualidade em torno das quais de organiza a sua "idea del bello". Retoma as teses neoplatónicas do Renascimento em defesda da Alegoria e da Mitologia, segundo os cânones da verosimilhança. No caso de representações de cenas ambientadas em realidades históricas – como em cenas de santos e martírios, etc – defende uma ‘visione idealizzante e intellettuale del mondo sensibile’. Nesta viagem metafórica pela descoberta de Roma, Bellori destaca o papel de Annibale Carracci, a Morte dos Inocentes de Guido Reni (de 1611), a  Caça de Diana (gal. Borghese) do Domenichino e artistas estrangeiros como Poussin e Dusquesnoy. Durante esta viagem encontram-se também obras de pintores de gosto não classicista -- Caravaggio, Rubens, van Dyck – que Bellori destaca em atenção ao seu destacado papel inovador. 

A viagem por Roma proposta por Bellori mostra-nos o Hércules de Annibale Carracci (Museo nazionale di Capodimonte), elogio do naturalismo convertido à impressão all’antico romana,  com a presença da estatuária e das ruínas, e a presença da virtù que indica a via, as transparências das vestes no Vício e os tecidos vermelhos e celestes da Virtude. O itinerário prossegue com Caravaggio e os caravagescos, e a lição do claro-escuro quase cinematográfico é exaltada, pela descoberta da realidade: "Molti furono quelli che imitarono la sua maniera nel colorire dal naturale, chiamati perciò naturalisti..." Cita a propósito Ribera, Bartolomeo Manfredi (Jesus e os mercadores do Templo), Valentin de Boulogne, Gherardo delle Notti, etc. Mas Bellori prefere o classicismo amaneirado e altamente simbólico de Domenichino. A caça de Diana (Roma, Galleria Borghese) inspira-se num confronto"intelectual" com as fontes antigas, como a ‘Eneida’ de Virgílio. O S. Silvestre e o dragão de Giovanni Lanfranco (Caprarola, Santa Maria degli Zoccolanti), é uma composição escalonada, menos clássica, com retomas rafaelescas e cores ‘pontormescas’, a contrário do que era usual no ‘lirismo’ desse pintor. Destaca a Madalena levada ao céu por anjos (Napoli, Museo Nazionale di Capodimonte).

Nascido do BEL CO MPOSTO de Bellori, o Gesamtkunstwerk, ou Obra de arte total, é um conceito estético oriundo do Romantismo alemão do século XIX. Geralmente associado ao compositor Richard Wagner, o termo refere-se à conjugação de música, teatro, canto, dança e artes plásticas numa única obra de arte. Wagner acreditava que na antiga tragédia grega esses elementos eram uníssono, mas em algum momento separaram-se. O compositor era muito crítico do estado da ópera do seu tempo, em que toda ênfase era dada à música, em detrimento da qualidade do drama. O termo é usado com frequência, principalmente na Alemanha, para descrever qualquer integração de diferentes formas de expressão artística. Na construção de seu teatro em Bayreuth, Wagner deu grande importância a elementos que proporcionassem ao público uma total imersão no mundo da ópera - como o escurecimento do teatro, efeitos sonoros, rebaixamento da orquestra e reposicionamento dos assentos para focar a atenção no palco. Esses conceitos foram revolucionários na época e hoje fazem parte da maioria das produções operísticas.



O «Bel Composto» de Bellori e o conceito de Obra de arte Total.

6 Março 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

.Ut Pictura Poesis: a ‘idea del Bello’ no Barroco seiscentista romano: o tratado de Giovan Pietro Bellori (1613-1696) e o elogio do Classicismo.

Giovan Pietro Bellori (1613-1696) foi a mais alta autoridade da cultura artística do seu tempo. Assim o consideraram escritores, artistas, mecenas e intelectuais em toda a Europa do século XVII. Foi o primeiro autor, depois de Vasari, a determinar o carácter da literatura nas artes e a explorar o estudo da simbologia artística. Com base neoplatónica, Bellori contribuíu para a chamada ‘fortuna histórica’ e para o conhecimento da História antiga, através da arqueologia e da numismática, antecipando novas metodologias de escavação e de pesquisa de campo. Mas o que impressiona é que escreve com uma visão europeia, uma perspectiva de conjunto, como um crítico atento que compara, selecciona e sintetiza. Definiu o conceito de BEL COMPOSTO como princípio de globalidade: a obra de arte total. As biografias que introduz nas VITE (1672) são doze, e o critério de escolha foi o da fidelidade ao Classicismo, à tradição do Clássico – para ele o protótipo da arte qualificada. Procurou também servir o público e os visitantes, propondo percursos, sem deixar de inventariar recheios de palácios e galerias, de descrever decorações de jardins, etc. Giovan Pietro Bellori foi o grande divulgador das grandezas de Roma. Bellori manteve contactos com França e Inglaterra, serviu a raínha Cristina da Suécia, colaborou com Charles Errand, directorr da Academia de França em Roma, encasrregado de Luís XIV para o affaire da Colonna Trajana (cujas gravuras seriam editadas com anotações de Bellori), e conviveu muito com o pintor Carlo Maratti,  tendo acompanhado o restauro dos frescos de Rafael Sanzio nas Câmaras Vaticanas, a respeito das quais escreveu, bem como sobre a Loggia Farnesina. Como Superintendente das Antiguidades Pontifícias desde 1670, Bellori trabalhou com Pietro Santi Bartoli na reconstrução e restauro de sítios arqueológicos a fim de preservar a sua memória e documentar os seus contextos. Tem importante papel nos estudos de Arqueologia, Numismática e História da Arte moderna, com o livro Vite de'pittori, scultori, architetti moderni. Nas pinturas que elogia apresenta-se como um 'semplice traduttore’, mas além de interpretar as obras e descrever os seus elementos também se deleita no estudo dos seus ‘sentidos’, p. ex. no caso da 'allegoria’. A sua ‘retórica do silêncio’ não é uma mera postura de espectador neutro, mas sim o desejo de emular a superioridade das artes através da ELOQUÊNCIA. Compara a Poesia com a Pintura, reune parangonas com Nicolas Poussin, e desenvolve um discurso que (ao contrário do tratadismo francês do tempo) tenta analisar os princípios das Obras-Primas e os fundamentos da Pintura à luz da Natureza e da tradição clássica.

Foi a mais alta autoridade da cultura artística do seu tempo. Assim o consideraram escritores, artistas, mecenas e intelectuais em toda a Europa do século XVII. Foi o primeiro, depois de Vasari, a determinar o carácter da literatura nas artes e a explorar o estudo da simbologia artística. Com base neoplatónica, Bellori contribuíu para a chamada ‘fortuna histórica’ e para o conhecimento da História antiga, através da arqueologia e da numismática, antecipando novas metodologias de escavação e de pesquisa de campo. Mas o que impressiona é que escreve com uma visão europeia, uma perspectiva de conjunto, como um crítico atento que compara, selecciona e sintetiza. As biografias que introduz nas VITE (1672) são doze, e o critério de escolha foi op da fidelidade ao Classicismo, à tradição do Clássico – para ele o protótipo da arte qualificada. Procuraa também servir o público e os visitantes, propondo percursos, sem deixar de inventariar recheios de palácios e galerias, de descrever decorações de jardins, etc. É o grande divulgador das grandezas de Roma.



Benito Arias Montano, a Reforma católica e o conceito de ‘ideia’: A tese da bondade das artes e a teorização estética ao serviço dos valores do Humanismo.

4 Março 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu com as suas ideias e as suas escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte, defendendo as harmonia, o rigor doutrinário mas também a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de um largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis.

Publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica, e temas eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), Discurso del valor y correspondencia de las monedas e Monumenta humanae salutis (1571). Deixou poesia em latim, Hymni et saecula (1593), em castelhano, inspirada em Fr. Luís de León (escrevendo, como este, uma versão do Cântico dos Cânticos). Erudito prestigiado, formado nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo (Escorial), adepto da Família da Caridade, amigo pessoal de Filipe II e falecido em Sevilha em 1598, é conhecido dos estudiosos pela famosa Bíblia Poliglota, a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou o projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, revendo provas, escolhendo estampas e redigindo prólogos, é a amizade com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e Philippe Galle, entre outros. Ainda não foram alvo de análise os contributos de Arias Montano como humanista do ‘largo tempo do Renascimento’ para a teoria das artes do tempo e o curso da arte portuguesa, que foi significativo, mas se mantém subestimado. Descendia de uma família de conversos; seu pai era notário da lnquisição. Cursou Filologia e Teologia nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares. Destacou-se pelo talento em interpretar a Bíblia e dominar línguas orientais. Por volta de 1569, ingressa na Ordem de Santiago e segue para Trento com Pérez de Ayala. Ao regressar, escreve o Comentario a Doce Profetas. Filipe II, que o estimava, propôs-lhe realizar, com Christophe Plantin, a edição monumental da referida Bíblia Políglota. Seu supervisor, seguiu o projecto e passa meses em Antuérpia a ver provas, escolhe estampas, redige prólogos. Vai a Roma reunir com o Papa Gregório XIII (depois de Pio V impedir a sua saída), expôe os objectivos da obra, impressa em oito volumes em 1572. Manteve estreita amizade com Plantin e ainda com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse e Rembert Dodoens. Adquiriu livros, instrumentos astronómicos, mapas, pintura e antiguidades para nobres como Juan de Ovando. Escreveu Hymni et saecula, Rhetoricorum libri IV, Monument humanae salutis, e uma Naturae Historia. Bibliotecário do Mosteiro do Escurial, aí organiza o acervo por línguas e temas em 74 matérias distintas. Dois anos depois de saír a Políglota, o professor de Salamanca León de Castro denunciava Arias na Inquisição, mas o apoio do rei e o respeito que grangeava permitiram a circulação da obra. Oito anos após a morte, porém, o Index proibiu a circulação de algumas das suas obras, que só voltariam a ter voga no final do século XVII.

 Entre as estâncias em Sevilha, em Roma, Antuérpia ou em El Escorial, e os tempos que passa no seu retiro da Peña de Aracena (um verdadeiro locus amoenus renascentista), Arias dividiu a sua existência. A casa que fez erigir na Peña, sítio de meditação piedosa, tertúlias de humanae litterae, debates teológicos e all’antico, com a sua biblioteca e obras de arte, o seu bosque com rovine, a álea de plátanos, as suas fontes, tornou-se nos últimos anos de vida o refúgio privilegiado do humanista. As suas ideias sobre a concepção das artes, o valor pedagógico das imagens, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso plástico, mostram  que não esteve alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónicaAmigo do editor Plantin, dos pintores-gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke, chamado Palludanos, e Jacques Jonghelinck, Arias Montano nunca deixou de ser um instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo da sua responsabilidade o modelo composicional usado por estes estampistas flamengos. Conhece-se a influência dos livros de Arias em pinturas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada. O seu interesse pela estampa de livro, cuja criação acompanhou de perto, e o pendor por um pensamento de tolerância, mostram-no sempre muito atento ao poder das gravuras de ilustração nas suas relações com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos morais.

Quando retornou de Itália, retirou-se para a quinta em Aracena, mas Filipe II convoca-o em 1568 para supervisionar a nova versão poliglota da Bíblia, contando no projecto com a colaboração de intelectuais e gravadores de valia. A obra foi lançada pela editora de Cristophe Plantin (1572) sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum. A erudição e sensibilidade de Benito Arias Montano para a linguagem das artes foi estimulada pelo contacto com seu mestre Jacobus Vasquus e pelo seu amigo pintor sevilhano Pedro Villegas Marmolejo. Em nome de uma visão de paz no campo religioso, usa as imagens bíblicas como exemplo e advertência, mas sempre à luz da tolerância. O seu conhecimento como crítico de arte foi usado na definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota, etc) e empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial. Como inspirador de gravuras junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências. Arias contava entre os seus amigos íntimos com Pedro Villegas Marmolejo, pintor que mereceu receber uma lápide com homenagem imortalizada por uma poesia latina do próprio Arias. Este pintor realizou obras para o humanista, algumas para a quinta de Aracena, o seu locus amoenus, onde era famosa a biblioteca e a colecção de antigualhas, estudadas por Sylvaine Hansel e Juan Gil.

Perante o fim do antropocentismo renascentista, a barbárie e o caos, um mundo e uma  ordem que se desfazem, a  melancolia e a skize que se impõem como estados de espírito Arias propõe uma renovação ecumenista do cristianismo. A época debate-se face ao humor melancholicus (atestado em pinturas de Lucas de Heere, Albrecht Durer, Vasco Fernandes, Hans Holbein...), e os sintomas saturnianos da crise generalizada vivida na Europa do pleno século XVI, à luz dos conflitos religiosos e da desagregação dos valores do Renascimento. A ordem, estabilidade, harmonia, tolerância, dignidade, utopia do antigo, antropocentismo, a perspectiva, o sentido regulador de uma ‘geometria do mundo’, dão lugar a um estado generalizado de descrença...

Tem-se atribuído a Arias a concepção do malfadado monumento a Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, 3º duque de Alba (1507-1582), em Antuérpia, erguido após a  vitória de Jengum, em 1568, com esculturas de Jacques Jonghelinck (figura de bronze) e de Willem van den Broek ou Paludanus (o pedestal). Ambos eram amigos de Arias. A violência demonstrada pelo Duque de Alba nas campanhas da Flandres grangeou inimigos, tanto nos Países-Baixos, incluindo ods círculos católicos, como na corte de Espanha. É certo que, após a chegada do novo governador Luis de Requesens, em 1573 (sendo Arias designado seu conselheiro), e obtida a paz pelo perdão geral de 6 de Junho do ano seguinte (tardia, mas bem acolhida), a estátua foi apeada e fundida. Mas eram medidas que chegavam tarde para restituir o prestígio de Espanha, abalado pelas repressões contra as populações protestantes submetidas. O Duque foi ilustre militar castelhano que se notabilizou nas campanhas de Navarra, Flandres, Itália e Portugal, primeiro ao serviço do Imperador Carlos V e depois de Filipe II. Após a conquista de Lisboa (1581) foi nomeado Condestável de Portugal. Desde 1547 lutou contra os protestantes da liga de Esmalcada (Schmalkaldischer Bund) e comandou os terços espanhóis, com os famosos arcabuzeiros, na batalha de Muhlberg e na repressão dos vencidos. Venceu o príncipe-eleitor Johann Friederich de Saxónia, protector do luteranismo, e tomou parte no cerco de Wittenberg, que a princesa Sybilla de Cleves defendia. Forçou os vencidos a assinar a capitulação de Wittenberg (1547), em que parte do território da Saxónia passou a seu primo Maurício von Sachsen. Até 1573, quando foi substituído no governo da Flandres por Luís de Requesens com gestão mais tolerante (perdão geral de 6 de Junho de 1574, bem aceite embora tardio), a opinião sobre o Duque dividia-se entre o ódio dos povos flagelados e o prestígio que as suas vitórias militares proporcionaram (vitória contra os protestantes de Nassau em Jemgum).

Numa das estadias em Roma (em 1572 e em 1575-76) para explicar e discutir os princípios da Bíblia Poliglota nos círculos papais, Arias relacionou-se com Johannes Battista Raimundos, matemático, autor de globos terrestres e de um mapa da China, e do nobre Tommaso de Cavallieri, que fora discípulo de Miguel Ângelo, que lhe fizera sonetos e lhe dedicara, em 1532, o famoso desenho Rapto de Ganímedes. Testemunho ambíguo do amor erótico e homossexual e do triunfo do Amor Divino, o desenho seria ofertado ao Dr. Arias Montano, talvez porque a sua defesa dos valores da Família da Caridade e os conceitos do Amor Divino de Arias tenham sugerido a Cavallieri um presente condigno com a fama do grande humanista andaluz... Na mitologia greco-romana, Ganimedes era o mais belo dos homens e despertou, por isso, o desejo de Júpiter, que o raptou, assumindo a forma de águia, e o levou para seu pagem. O tema é descrito por Ovídio nas Metamorfoses. A relação entre Júpiter e Ganimedes reflecte também a sexualidade grega: Júpiter, o parceiro mais velho, e o pastor Ganimedes o parceiro passivo; Miguel Ângelo desenhou o Rapto de Ganimedes em 1532 quando conheceu o jovem nobre romano Tommaso De Cavalieri, para quem também escreveu sonetos e com quem se correspondia. No desenho, Júpiter, em forma de águia, rapta Ganimedes. Trata-se, para além da sua carga erótica, da evocação da beleza ideal segundo parâmetros gregos. O tema, raro na iconografia do tempo, dada a sua ambiguidade, teve variações sobre o modelo miguel-angesco. No início do século XVII, o pintor-escritor Francisco Pacheco recebeu o «debuxo de Ganimedes de mano de Micael Angel cuyo original yo tengo, que fué del Dr. Benito Arias Montano», que lhe serviria de mote para uma das cenas pintadas no Palácio de Hércules em Sevilha, aí com comedimento no desnudo. Em 1758, insatisfeito pela falta de representações do mito, Winckelmann promoveu o falso achado arqueológico do mural Ganimedes e Júpiter (1758-59) de Antón Raphael Mengs, como autêntico. Era outro o sentido do desenho nas mãos de Arias, obviamente.

Como todos os intelectuais do seu tempo, Arias Montano desaconselhou o uso do  nu senão em composições onde o sentido da alegoria cristã ou ecumenista justificassem o recurso a figuras e temas de sensualidade. Em nome do decorum tridentino e dos seus valores de rigorismo e de clareza didascálica, também ele não entendia bem a licenciosidade, o falso dogma, a luxúria, a venalidade e a imoralidade, senão pornografia, de muitas estampas e imagens produzidas no contexto do Maneirismo italiano e nórdico. Arias Montano entrou nestas polémicas. Em nome do seu racionalismo exegético, foi pionero em conciliar a arquitectura revelada com a arquitectura do paganismo clássico. Arias, ao contrário de Villalpando, defendeu a ideia de que o Templo de Salomão e o que sonhou Ezequiel eram distintos, sendo o primeiro similar ao que mais tarde reconstruíram Zorobabel e Herodes. A planta do Templo inspira-se claramente na de Maimónides, ainda que, diz Juan Antonio Ramírez, possa ter havido fonte intermédia. O desenho é frágil, inferior à vista de conjunto e sem qualquer comparação com a altíssima qualidade dos gravados de Villalpando. Como Maimónides, parece diluir ainda mais nos patios cruciformes das cozinhas dentro dos seus pátios concêntricos. Durante a segunda metade de Quinhentos do século XVI produziram-se tratados sobre o Templo de Jerusalém, alguns deles à revelia do estudo da Bíblia e, por isso, muito discutidos nos círculos intelectuais. Espanhóis, milaneses, flamengos e portugueses intervieram nesse debate, em tempo de Filipe II.

As ilustrações do Templo de Ezequiel do teólogo-helenista protestante Sèbastien Castellion ou Châteillon (1515-63), defensor da tolerância religiosa e opositor de Calvino, defendem a centralidade radial com o Santuário no centro do átrio interior. A porta ocidental substitui o edifício que a Bíblia situa atrás do Sancta Sanctorum, favorecendo a simetria do conjunto. O átrio exterior divide-se em quatro espaços quadrados com os pátios das cozinhas em cada esquina, fazendo uma cruz perfeita, o que se favorece a idea renascentista de que o Templo de Jerusalém prefigurava a Igreja fundada por Cristo. Também fez uma ilustração do Templo de Salomão com o Santuário, considerando que o exterior era igual ao de Ezequiel. A discussão sobre a traça do Templo de Salomão ou sobre a origem das ordens clássicas preocupou Arias e levou-o a acesas discussões contra Villalpando e os seus sequazes. Arias conheceu em Roma o pintor-escritor Pablo de Céspedes (Córdoba, 1538-1608), cuja discussão sobre o Templo, entre as correntes montanista e villalpandista, gerou um Discurso sobre el Templo de Salomón, primeiro capítulo do seu Tratado de Pintura de 1599, em que segue Arias nas ideias sobre a origem das colunas coríntias, e contra as ideias de Villalpando. O jerónimo português Fr. Heitor Pinto (1525-1584) escreveu os In Ezechielem Prophetam Commentaria sobre a profecía em visão simbólica, à luz das ideias de Arias Montano, com desenho esquemático do Templo segundo Ricardo de S. Victor (F. Hectoris Pinti lusitani hyeronimi In Ezechielem prophetam commentaria / omnia iudicio et correctioni Sanctae Romanae & universalis Ecclesiae subiecta sunto. Antuerpiae: in aedibus Viduae & haeredum Ioannis Stelsii, 1570 (1ª ed, Salmanticae, 1568, fol.; Antverp, 1570, 1582; Lugduni, 1581, 4to; Ibid. 1584, fol.; Colon., 1615, 4to). O protestante Matthias Hafenreffer publica em 1613 em Tübingen o livro Templum Ezechielis, onde defende a interpretação luterana da Bíblia, mas a respeito do quadrado de Ezequiel e do Templo volta a seguir as teses de Arias, com a fachada do Santuário em influência provável de El Escorial; na geometria seguiu os matemáticos e astrónomos protestantes Michael Maestlin e Johannes Kepler (Helen Rosenau, Vision of the Temple: the Image of the Temple of Jerusalem in Judaism and Christianity, pp. 93 y 106, London, 1979).     Quando se admira A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, gravado por Cornelis Cort (1533-78) segundo desenho de Frederico Zuccaro, estampa aberta em 1577-78 em Roma, vemo-la acompanhada pelo poema latino onde Arias enfoca o papel emotivo e pedagógico da arte. A gravura (no Staatlische Museum, Berlim) recorre à alegoria clássica e a conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia das Artes a admirar a Fraga de Vulcano com as Fúrias, a Inveja, o Concílio dos Deuses, Ceres, Vénus, Baco, Hércules, divindades fluviais, Pan, Diana, Marte, Pomona, Saturno, Tétis, Neptuno, num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante.

     Não são muitos os contactos directos do Dr. Arias Montano com Portugal: em 1578, é enviado por Filipe II a Lisboa para convencer D. Sebastião de desistir da malograda empresa de Marrocos que iria conduzir, meses depois, à tragédia de Alcácer Quibir; em 1580, tem um papel decisivo, junto ao rei, para a elaboração das teses de Tomar que confirmariam a Monarquia Dual; e poderá ter tido um papel relevante de consultor na programação da Joyeuse Entrée em Lisboa em 1581 (a que todavia não assistiu), a crer no relato do simbolismo das decorações escrito pelo Dr. Afonso Guerreiro. A obra de Arias Montano (of. Cristopher Plantin, ed. Antuérpia, 1575), com quarenta e oito emblemas desenhados por Crispin van den Broeck e gravados por Philippe Galle, sob o título David . Hoc Est Virtutis Exercitatissimum Probatum Deo Spectaculum, ex David Pastoris Militis Ducis Exulis ac Prophetae Exemplis, explorou o carácter polissémico atribuído ao rei-pastor do Antigo Testamento, no contexto das guerras fratricidas na Flandres ao  tempo do Governador D. Luis de Requesens. É de destacar este ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, defendido por Arias Montano, tão ligado ao historial vetero-testamentário de David, rei-pastor cujas virtudes são a FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compará-lo com o ambiente terrível nas guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas mais indulgentes e a defesa da impunidade dos derrotados (a exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após a entrega do traidor) eram, para os leitores, aspectos que mostravam à época um evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

     Uma obra portuguesa poucos anos posterior à edição antuerpiana do David de Arias-Galle (1575) foi a decoração do tecto da Câmara de David e Golias (vulgarmente chamada Sala de David e do Gigante Golias) no Paço de Vila Viçosa, encomenda do 7º Duque de Bragança D. Teodósio II, em que os mesmos valores da tolerância e bom governo se destacam, à luz do texto vetero-testamentário, através de um programa inspirado directamente nas gravuras do livro. Foi pintada cerca de 1603 aquando do casamento deste Duque com D. Ana de Velasco e Girón, por Tomás Luís. O Paço Ducal de Vila Viçosa, sede da Casa de Bragança, o mais poderoso ramo da nobreza lusa, vive no século XVI uma fase de esplendor com os Ducados de D. Teodósio I (1532-63), D. João I (1563-83) e D. Teodósio II (1583-1630). A influência do David. Virtutis Exercitatissimae Probatum Deo Spectaculum, (ed. Antuérpia, 1575) e as gravuras de Philippe Galle, expressa-se na arte portuguesa do tempo da Monarquia Dual: o programa iconográfico de uma das salas do Palácio Ducal de Vila Viçosa, encomendado no início do século XVII ao pintor de fresco Tomás Luís pelo 7º Duque D. Teodósio II. A Sala de David e do Gigante Golias, uma das «casas novas» mandadas decorar nos preparativos do casamento do Duque D. Teodósio II com D. Ana de Velasco y Girón, da Casa de Medina Sidónia (de onde nasceria o 8º duque D. João II, mais tarde D. João IV, rei Restaurador), apesar de carecido de restauro, segue com fidelidade os gravados de Galle (edição de Antuérpia, 1575). A utilização por Tomás Luís dessas gravuras é exemplo da via de influência das ideias e gostos do Dr. Montano. A sanca representa cenas mitológicas de temário ovidiano em quadri riportati (Triunfo de Apolo, Perseu matando Medusa e a libertar Andrómeda, Belorofonte domando Pégaso, Apolo, Metamorfose de Daphne em loureiro, «países», trechos agrícolas e campestres) junto a retratos em busto (podem representar o ilustre visitante Duque de Parma D. Rainúcio, e seu pai, o falecido Alessandro Farnese), a envolver o brasão teodosino. É de crer que a pintura da sanca possa ser coeva da visita da embaixada parmense de 1601, em que o Paço se engalanou para receber D. Rainúcio.


                 BIBLIOGRAFIA:

 Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, coord. José María Maestre Maestre, Eustaquio Sánchez Salor, Manuel Antonio Diaz Gito, Luis Charlo Brea, Pedro Juan Galan Sánchez, vol. II, 2006, pp. 723-750.

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.

 

 

 

 

 

 

 

 


O Concílio de Trento, o 'decorum' e a pedagogia pela imagem sacra.

27 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     O controle da representação das «imagens sagradas» assumiu, com a XXXVª sessão do Concílio de Trento, em 3 e 4 de Dezembro de 1563, um especial acento ideológico e programático que terá largos efeitos até ao pleno século XVIII. «A Igreja apoderou-se nesse período do comando da arte religiosa, a fim de a expurgar das notas tidas por censuráveis e de promover uma iconografia de combate, de testemunho e de catequese», como diz Flávio Gonçalves, grande especialista no campo da iconografia sacra [1], dando corpo, assim, à vasta reacção contra os ataques da Reforma protestante e os seus efeitos. As directivas tridentinas nesta matéria tiveram imediato acolhimento no seio do mercado intestino das artes, fossem os encomendantes ou os artistas envolvidos na produção destinada ao culto, uns e outros dependentes de uma vasta estrutura de controlo a que as Constituições Sinodais dos Bispados deram corpo de lei e os visitadores da Igreja prática de censura, quando não repressiva [2]. Apesar de essa nova situação ser de absoluto controlo das liberdades criativas, é certo que também foi estimuladora de um novo espírito de solenidade e eficiência dos resultados artísticos, acentuando-se uma significativa melhoria nas condições estatutárias dos pintores e demais artistas portugueses que trabalham para o mercado religioso [3].

     Tal como estabeleceu o Concílio de Trento na sua derradeira sessão, as imagens sacras servem para «anatemizar os principaes erros dos Hereges do nosso tempo», e por isso buscou adequar a sua representação a uma finalidade de combate contra a heresia iconoclasta do calvinismo e de reafirmação do sentido tradicional do culto em afirmação catequética. Retomando directrizes do velho Concílio de Nicéia II, proibe-se «que se exponha imagem alguma de falso dogma». Defende-se o papel das imagens sacras como intermediárias de fé e a multiplicação nos locais de culto de imagens de Cristo, da Virgem e dos santos, numa acção clarificada face a qualquer espécie de idolatria, ou seja, não para se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas reforçando o seu papel salvífico como intermediárias de oração. Define, também, a necessária qualidade, imprescindível para a eficiência das reproduções artísticas dos mistérios da fé, tornando-as credíveis no sentido de as adequar a objectivos pedagógicos junto das populações. Abre-se, também por isso, uma frente de combate contra as chamadas «imagens de falso dogma» e de «formosura dissoluta», em muitos casos alvo de alterações impostas ou de destruição pura e simples. Afirma-se a intenção de ensinar que a divindade não é percebível pelos sentidos nem através de cores ou formas, mas que estas são demasiado importantes pois concorrem para abrir os olhos da alma [4]. É por isso que as normas tridentinas no campo da arte sacra foram tão marcantes em Portugal (mesmo antes de as directrizes conciliares terem sido aceites como lei do Reino na regência do Cardeal D. Henrique, por decreto de 12 de Setembro de 1564). De facto, tiveram ressonância em todo o «mundo português», ainda que a penetração da doutrina protestante não fosse significativa. No nosso caso português, foram alvo de vigilância maior os cristãos-novos, alegadamente envolvidos em actos de iconoclastia anti-católica, e determinados círculos de resistência do humanismo de inspiração erasmiana, mais atreitos a uma tradição libertária que os novos ventos inquisitoriais vivamente desaconselhavam.

     Tomamos como ponto de partida para uma análise desta situação o modo como, com as normas do Concílio de Trento, se assumiu a busca de uma espiritualidade renovada na representação artística. Apesar de não ser devida a artista português, mas de um grande pintor de Badajoz, o facto de ele ter trabalhado amiúde para o mercado nacional, e de ter aqui assumido grande e duradoira influência artística (o «gosto moralesco»), justifica que se recorra a uma obra exemplar, o painel Cristo meditando sobre a Paixão, para discorrer sobre esta nova expressão da arte tridentina. Trata-se de um Cristo coroado de espinhos, em meditação sobre o destino sacrificial, despojado da túnica e rodeado de símbolos da Paixão. Pintado por Luís de Morales, el Divino (c. 1515-c.1591), por volta de 1560, trata-se de uma peça de excelência absoluta, de pequeno formato (66 x 44 cm) e destinada a oratório de culto doméstico, que se conserva no Institute of Arts de Minneapolis (EUA) [5]. O artista, um dos nomes maiores do Maneirismo peninsular, inspirou-se aqui na célebre Melancolia de Albrecht Durer para compor este singular Jesus Cristo merencoroso, que testemunha na sua pose entre o solene recolhimento e a meditação interior um novo tipo de imagem alegórica da Paixão, tão ligada afinal às teses do dominicano Frei Luís de Granada sobre as postrimerías, à margem do itinerário narrativo do Novo Testamento. O que se pretendeu nesta encomenda foi promover a oração individual em torno do tema da redenção pelo sacrifício, seguindo os conceitos e estratégias discutidos em Trento [6]. O princípio da previsão do juízo e o elogio da meditação devocional defendidos nos textos de Frei Luís de Granada encontraram nas obras de Luís de Morales um fidelíssimo intérprete. O pintor, homem de vasta cultura e ligado, pelo círculo de protectores e encomendantes, a um complexo mundo espiritual ligado ao pensamento cristão renovador, conhecia o Libro de la oración y de la consideración (1554) e o Guia de pecadores (1556) de Frei Luís de Granada, obras onde se defendia o Juízo Particular como a forma de redenção que, com a Morte, se transforma na primeira postrimería, exortando por isso à virtude e ao enriquecimento da vida interior, os valores essenciais que esta pintura assume no seu discurso plástico. Ela esclarece-nos bem sobre o sentido de uma Pintura para ser vista com os «olhos da alma», tal como promulgavam os princípios de Trento [7].

     É preciso, já o dizia o historiador de arte Giulio Carlo Argan [8], saber olhar e saber ver, e nessa dimensão valorativa do papel das obras de arte sob signo da fé decorreu a célebre sessão de Trento em Dezembro de 1563. Na verdade, sentia-o Argan, História e crítica da Arte são faces da mesma moeda, discorrem sobre obras que devem ser consideradas sempre contemporâneas, aptas para a fruição integral do e no nosso tempo – sem se perder de vista o contexto mental preciso em que foram geradas. Todos somos fruidores comprometidos: dedicamos às obras de arte um olhar que anseia por integralidade, tal como o fez Zeri a respeito de Scipione Pulzone e de Giuseppe Valeriano, típicos produtores tridentinos da arte senza tempo [9], variação amadurecida da arcana Bíblia Pauperum da Idade Média [10]. A arte tem capacidade de assumir essa sempre renovada dimensão trans-contemporânea, de surpreender pelas infinitas possibilidades de suscitar olhares críticos (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas, que os valores de cada época alteram ou promovem e, nesse sentido também, as propostas de Trento acentuaram as dimensões catequética, emotiva e espiritual das obras enquanto intermediarização [11].

     Vem isto a propósito do notabilíssimo quadro de Luís de Morales em Minneapolis, onde a ideia profunda, o ritmo dos planos articulados, a sobriedade da cor, a sedução do estilo, o carisma da expressão mística, as perspectivas cruzadas, o discurso em busca de coerências ideológicas, formam textos com todo o sentido. Assim, à luz dos princípios tridentino, tudo adquire sentido, é plausível perceber e, no campo da fé, é possível crer – e nessa dimensão agiram os teólogos conciliares quando pensaram na renovação da arte sacra nos termos em que o fizeram. Abriram-se, ao mesmo tempo, saberes históricos, estéticos, iconográficos e ideológicos no discurso das imagens artísticas. A específica ordem do tempo, da razão, gosto e encomenda, veio conferir sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam.


[1] Flávio GONÇALVES, Breve Ensaio sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal, sep. de Belas-Artes – Revista da Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa, 1973, p. 13.

[2] IDEM, História da Arte. Iconografia e Crítica, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1990 (colectânea póstuma de estudos deste especialista), pp. 111-127.

[3] Ottavio NICOLI, Vedere com gli occhi del cuore. Alle origine del potere delle immagini, ed. Laterza, Roma, 2011.

[4] Vítor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

[5] Carmelo Sóliz RODRÍGUEZ, Luis de Morales, Fundación Caja de Badajoz, 1999, pp. 266-267.

[6]  G. Rodríguez de CEBALLOS, «El mundo espiritual del pintor Luís de Morales», Goya, nº 196, 1987; e Fernando MARÍAS, El Largo Siglo XVI. Conceptos fundamentales para la historia del arte español, ed. Taurus, Madrid, 1988.

[7] Vítor SERRÃO, «Ver e Crer. Os Cinco Sentidos da Arte da Pintura», Invenire – Revista dos Bens Culturais da Igreja, nº 2, Janeiro-Junho de 2011, pp. 10-12.

[8] Giulio Carlo ARGAN, A tarefa da crítica. in: Arte e crítica da Arte, ed. portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1988.

[9]  Federico ZERI, Pittura e Controrriforma. L'arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, Turim, Einaudi, 1957.

[10]  Cf. Giordano VIROLI, «I luoghi della continuità e del mutamento dalla Controriforma al naturalismo del Seicento. Intenzioni e inclinazioni nella pittura in Romagna», Bíblia Pauperum. Dipinti dalle diocesi di Romagna, 1570-1670, Nuova Alfa Editrice, Ferrara, 1992, pp. XXIX-LXIX.

[11]Cita-se um trecho do poeta José Tolentino de Mendonça: «a Igreja precisa dos artistas para que as representações de Deus não fiquem sequestradas pela racionalidade, mas possam tocar aqueles reservatórios de mistério e de sensibilidade que é o coração do homem».