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Benito Arias Montano, a Reforma católica e o conceito de ‘ideia’: A tese da bondade das artes e a teorização estética ao serviço dos valores do Humanismo.

25 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu com as suas ideias e as suas escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte, defendendo as harmonia, o rigor doutrinário mas também a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de um largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis. Publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica, e temas eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), Discurso del valor y correspondencia de las monedas e Monumenta humanae salutis (1571). Deixou poesia em latim, Hymni et saecula (1593), em castelhano, inspirada em Fr. Luís de León (escrevendo, como este, uma versão do Cântico dos Cânticos).

Erudito prestigiado, formado nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo (Escorial), adepto da Família da Caridade, amigo pessoal de Filipe II e falecido em Sevilha em 1598, é conhecido dos estudiosos pela famosa Bíblia Poliglota, a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou o projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, revendo provas, escolhendo estampas e redigindo prólogos, é a amizade com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e Philippe Galle, entre outros. Ainda não foram alvo de análise os contributos de Arias Montano como humanista do ‘largo tempo do Renascimento’ para a teoria das artes do tempo e o curso da arte portuguesa, que foi significativo, mas se mantém subestimado. Descendia de uma família de conversos; seu pai era notário da lnquisição. Cursou Filologia e Teologia nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares. Destacou-se pelo talento em interpretar a Bíblia e dominar línguas orientais. Por volta de 1569, ingressa na Ordem de Santiago e segue para Trento com Pérez de Ayala. Ao regressar, escreve o Comentario a Doce Profetas. Filipe II, que o estimava, propôs-lhe realizar, com Christophe Plantin, a edição monumental da referida Bíblia Políglota. Seu supervisor, seguiu o projecto e passa meses em Antuérpia a ver provas, escolhe estampas, redige prólogos. Vai a Roma reunir com o Papa Gregório XIII (depois de Pio V impedir a sua saída), expôe os objectivos da obra, impressa em oito volumes em 1572. Manteve estreita amizade com Plantin e ainda com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse e Rembert Dodoens. Adquiriu livros, instrumentos astronómicos, mapas, pintura e antiguidades para nobres como Juan de Ovando. Escreveu Hymni et saecula, Rhetoricorum libri IV, Monument humanae salutis, e uma Naturae Historia. Bibliotecário do Mosteiro do Escurial, aí organiza o acervo por línguas e temas em 74 matérias distintas. Dois anos depois de saír a Políglota, o professor de Salamanca León de Castro denunciava Arias na Inquisição, mas o apoio do rei e o respeito que grangeava permitiram a circulação da obra. Oito anos após a morte, porém, o Index proibiu a circulação de algumas das suas obras, que só voltariam a ter voga no final do século XVII. Entre as estâncias em Sevilha, em Roma, Antuérpia ou em El Escorial, e os tempos que passa no seu retiro da Peña de Aracena (um verdadeiro locus amoenus renascentista), Arias dividiu a sua existência. A casa que fez erigir na Peña, sítio de meditação piedosa, tertúlias de humanae litterae, debates teológicos e all’antico, com a sua biblioteca e obras de arte, o seu bosque com rovine, a álea de plátanos, as suas fontes, tornou-se nos últimos anos de vida o refúgio privilegiado do humanista. As suas ideias sobre a concepção das artes, o valor pedagógico das imagens, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso plástico, mostram  que não esteve alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónicaAmigo do editor Plantin, dos pintores-gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke, chamado Palludanos, e Jacques Jonghelinck, Arias Montano nunca deixou de ser um instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo da sua responsabilidade o modelo composicional usado por estes estampistas flamengos. Conhece-se a influência dos livros de Arias em pinturas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada. O seu interesse pela estampa de livro, cuja criação acompanhou de perto, e o pendor por um pensamento de tolerância, mostram-no sempre muito atento ao poder das gravuras de ilustração nas suas relações com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos morais. Quando retornou de Itália, retirou-se para a quinta em Aracena, mas Filipe II convoca-o em 1568 para supervisionar a nova versão poliglota da Bíblia, contando no projecto com a colaboração de intelectuais e gravadores de valia. A obra foi lançada pela editora de Cristophe Plantin (1572) sob o título Biblia sacra hebraice chaldaice, graece et latine, Philippi II regis catholici pietate et studio ad sacrosanctae Ecclesiae usum. A erudição e sensibilidade de Benito Arias Montano para a linguagem das artes foi estimulada pelo contacto com seu mestre Jacobus Vasquus e pelo seu amigo pintor sevilhano Pedro Villegas Marmolejo. Em nome de uma visão de paz no campo religioso, usa as imagens bíblicas como exemplo e advertência, mas sempre à luz da tolerância. O seu conhecimento como crítico de arte foi usado na definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota, etc) e empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial. Como inspirador de gravuras junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências.

Arias contava entre os seus amigos íntimos com Pedro Villegas Marmolejo, pintor que mereceu receber uma lápide com homenagem imortalizada por uma poesia latina do próprio Arias. Este pintor realizou obras para o humanista, algumas para a quinta de Aracena, o seu locus amoenus, onde era famosa a biblioteca e a colecção de antigualhas, estudadas por Sylvaine Hansel e Juan GilPerante o fim do antropocentismo renascentista, a barbárie e o caos, um mundo e uma  ordem que se desfazem, a  melancolia e a skize que se impõem como estados de espírito Arias propõe uma renovação ecumenista do cristianismo. A época debate-se face ao humor melancholicus (atestado em pinturas de Lucas de Heere, Albrecht Durer, Vasco Fernandes, Hans Holbein...), e os sintomas saturnianos da crise generalizada vivida na Europa do pleno século XVI, à luz dos conflitos religiosos e da desagregação dos valores do Renascimento. A ordem, estabilidade, harmonia, tolerância, dignidade, utopia do antigo, antropocentismo, a perspectiva, o sentido regulador de uma ‘geometria do mundo’, dão lugar a um estado generalizado de descrença...

Tem-se atribuído a Arias a concepção do malfadado monumento a Fernando Álvarez de Toledo y Pimentel, 3º duque de Alba (1507-1582), em Antuérpia, erguido após a  vitória de Jengum, em 1568, com esculturas de Jacques Jonghelinck (figura de bronze) e de Willem van den Broek ou Paludanus (o pedestal). Ambos eram amigos de Arias. A violência demonstrada pelo Duque de Alba nas campanhas da Flandres grangeou inimigos, tanto nos Países-Baixos, incluindo ods círculos católicos, como na corte de Espanha. É certo que, após a chegada do novo governador Luis de Requesens, em 1573 (sendo Arias designado seu conselheiro), e obtida a paz pelo perdão geral de 6 de Junho do ano seguinte (tardia, mas bem acolhida), a estátua foi apeada e fundida. Mas eram medidas que chegavam tarde para restituir o prestígio de Espanha, abalado pelas repressões contra as populações protestantes submetidas. O Duque foi ilustre militar castelhano que se notabilizou nas campanhas de Navarra, Flandres, Itália e Portugal, primeiro ao serviço do Imperador Carlos V e depois de Filipe II. Após a conquista de Lisboa (1581) foi nomeado Condestável de Portugal. Desde 1547 lutou contra os protestantes da liga de Esmalcada (Schmalkaldischer Bund) e comandou os terços espanhóis, com os famosos arcabuzeiros, na batalha de Muhlberg e na repressão dos vencidos. Venceu o príncipe-eleitor Johann Friederich de Saxónia, protector do luteranismo, e tomou parte no cerco de Wittenberg, que a princesa Sybilla de Cleves defendia. Forçou os vencidos a assinar a capitulação de Wittenberg (1547), em que parte do território da Saxónia passou a seu primo Maurício von Sachsen. Até 1573, quando foi substituído no governo da Flandres por Luís de Requesens com gestão mais tolerante (perdão geral de 6 de Junho de 1574, bem aceite embora tardio), a opinião sobre o Duque dividia-se entre o ódio dos povos flagelados e o prestígio que as suas vitórias militares proporcionaram (vitória contra os protestantes de Nassau em Jemgum). Numa das estadias em Roma (em 1572 e em 1575-76) para explicar e discutir os princípios da Bíblia Poliglota nos círculos papais, Arias relacionou-se com Johannes Battista Raimundos, matemático, autor de globos terrestres e de um mapa da China, e do nobre Tommaso de Cavallieri, que fora discípulo de Miguel Ângelo, que lhe fizera sonetos e lhe dedicara, em 1532, o famoso desenho Rapto de Ganímedes. Testemunho ambíguo do amor erótico e homossexual e do triunfo do Amor Divino, o desenho seria ofertado ao Dr. Arias Montano, talvez porque a sua defesa dos valores da Família da Caridade e os conceitos do Amor Divino de Arias tenham sugerido a Cavallieri um presente condigno com a fama do grande humanista andaluz... Na mitologia greco-romana, Ganimedes era o mais belo dos homens e despertou, por isso, o desejo de Júpiter, que o raptou, assumindo a forma de águia, e o levou para seu pagem. O tema é descrito por Ovídio nas Metamorfoses. A relação entre Júpiter e Ganimedes reflecte também a sexualidade grega: Júpiter, o parceiro mais velho, e o pastor Ganimedes o parceiro passivo; Miguel Ângelo desenhou o Rapto de Ganimedes em 1532 quando conheceu o jovem nobre romano Tommaso De Cavalieri, para quem também escreveu sonetos e com quem se correspondia. No desenho, Júpiter, em forma de águia, rapta Ganimedes. Trata-se, para além da sua carga erótica, da evocação da beleza ideal segundo parâmetros gregos. O tema, raro na iconografia do tempo, dada a sua ambiguidade, teve variações sobre o modelo miguel-angesco. No início do século XVII, o pintor-escritor Francisco Pacheco recebeu o «debuxo de Ganimedes de mano de Micael Angel cuyo original yo tengo, que fué del Dr. Benito Arias Montano», que lhe serviria de mote para uma das cenas pintadas no Palácio de Hércules em Sevilha, aí com comedimento no desnudo. Em 1758, insatisfeito pela falta de representações do mito, Winckelmann promoveu o falso achado arqueológico do mural Ganimedes e Júpiter (1758-59) de Antón Raphael Mengs, como autêntico. Era outro o sentido do desenho nas mãos de Arias, obviamente.  

Como todos os intelectuais do seu tempo, Arias Montano desaconselhou o uso do  nu senão em composições onde o sentido da alegoria cristã ou ecumenista justificassem o recurso a figuras e temas de sensualidade. Em nome do decorum tridentino e dos seus valores de rigorismo e de clareza didascálica, também ele não entendia bem a licenciosidade, o falso dogma, a luxúria, a venalidade e a imoralidade, senão pornografia, de muitas estampas e imagens produzidas no contexto do Maneirismo italiano e nórdico. Arias Montano entrou nestas polémicas. Em nome do seu racionalismo exegético, foi pionero em conciliar a arquitectura revelada com a arquitectura do paganismo clássico. Arias, ao contrário de Villalpando, defendeu a ideia de que o Templo de Salomão e o que sonhou Ezequiel eram distintos, sendo o primeiro similar ao que mais tarde reconstruíram Zorobabel e Herodes. A planta do Templo inspira-se claramente na de Maimónides, ainda que, diz Juan Antonio Ramírez, possa ter havido fonte intermédia. O desenho é frágil, inferior à vista de conjunto e sem qualquer comparação com a altíssima qualidade dos gravados de Villalpando. Como Maimónides, parece diluir ainda mais nos patios cruciformes das cozinhas dentro dos seus pátios concêntricos. Durante a segunda metade de Quinhentos do século XVI produziram-se tratados sobre o Templo de Jerusalém, alguns deles à revelia do estudo da Bíblia e, por isso, muito discutidos nos círculos intelectuais. Espanhóis, milaneses, flamengos e portugueses intervieram nesse debate, em tempo de Filipe II. As ilustrações do Templo de Ezequiel do teólogo-helenista protestante Sèbastien Castellion ou Châteillon (1515-63), defensor da tolerância religiosa e opositor de Calvino, defendem a centralidade radial com o Santuário no centro do átrio interior. A porta ocidental substitui o edifício que a Bíblia situa atrás do Sancta Sanctorum, favorecendo a simetria do conjunto. O átrio exterior divide-se em quatro espaços quadrados com os pátios das cozinhas em cada esquina, fazendo uma cruz perfeita, o que se favorece a idea renascentista de que o Templo de Jerusalém prefigurava a Igreja fundada por Cristo. Também fez uma ilustração do Templo de Salomão com o Santuário, considerando que o exterior era igual ao de Ezequiel. A discussão sobre a traça do Templo de Salomão ou sobre a origem das ordens clássicas preocupou Arias e levou-o a acesas discussões contra Villalpando e os seus sequazes. Arias conheceu em Roma o pintor-escritor Pablo de Céspedes (Córdoba, 1538-1608), cuja discussão sobre o Templo, entre as correntes montanista e villalpandista, gerou um Discurso sobre el Templo de Salomón, primeiro capítulo do seu Tratado de Pintura de 1599, em que segue Arias nas ideias sobre a origem das colunas coríntias, e contra as ideias de Villalpando. O jerónimo português Fr. Heitor Pinto (1525-1584) escreveu os In Ezechielem Prophetam Commentaria sobre a profecía em visão simbólica, à luz das ideias de Arias Montano, com desenho esquemático do Templo segundo Ricardo de S. Victor (F. Hectoris Pinti lusitani hyeronimi In Ezechielem prophetam commentaria / omnia iudicio et correctioni Sanctae Romanae & universalis Ecclesiae subiecta sunto. Antuerpiae: in aedibus Viduae & haeredum Ioannis Stelsii, 1570 (1ª ed, Salmanticae, 1568, fol.; Antverp, 1570, 1582; Lugduni, 1581, 4to; Ibid. 1584, fol.; Colon., 1615, 4to). O protestante Matthias Hafenreffer publica em 1613 em Tübingen o livro Templum Ezechielis, onde defende a interpretação luterana da Bíblia, mas a respeito do quadrado de Ezequiel e do Templo volta a seguir as teses de Arias, com a fachada do Santuário em influência provável de El Escorial; na geometria seguiu os matemáticos e astrónomos protestantes Michael Maestlin e Johannes Kepler (Helen Rosenau, Vision of the Temple: the Image of the Temple of Jerusalem in Judaism and Christianity, pp. 93 y 106, London, 1979). Quando se admira A verdadeira Inteligência (Idea) inspira o Pintor, gravado por Cornelis Cort (1533-78) segundo desenho de Frederico Zuccaro, estampa aberta em 1577-78 em Roma, vemo-la acompanhada pelo poema latino onde Arias enfoca o papel emotivo e pedagógico da arte. A gravura (no Staatlische Museum, Berlim) recorre à alegoria clássica e a conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia das Artes a admirar a Fraga de Vulcano com as Fúrias, a Inveja, o Concílio dos Deuses, Ceres, Vénus, Baco, Hércules, divindades fluviais, Pan, Diana, Marte, Pomona, Saturno, Tétis, Neptuno, num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. O quadro em que trabalha o pintor é a FRAGA DE VULCANO. À direita, vêem-se as FÚRIAS. Sob Apolo, a INVEJA numa gruta. Eis toda uma síntese da teoria estética de Arias Montano e dos princípios do Humanismo cristão que defendia.

     Não são muitos os contactos directos do Dr. Arias Montano com Portugal: em 1578, é enviado por Filipe II a Lisboa para convencer D. Sebastião de desistir da malograda empresa de Marrocos que iria conduzir, meses depois, à tragédia de Alcácer Quibir; em 1580, tem um papel decisivo, junto ao rei, para a elaboração das teses de Tomar que confirmariam a Monarquia Dual; e poderá ter tido um papel relevante de consultor na programação da Joyeuse Entrée em Lisboa em 1581 (a que todavia não assistiu), a crer no relato do simbolismo das decorações escrito pelo Dr. Afonso Guerreiro. A obra de Arias Montano (of. Cristopher Plantin, ed. Antuérpia, 1575), com quarenta e oito emblemas desenhados por Crispin van den Broeck e gravados por Philippe Galle, sob o título David . Hoc Est Virtutis Exercitatissimum Probatum Deo Spectaculum, ex David Pastoris Militis Ducis Exulis ac Prophetae Exemplis, explorou o carácter polissémico atribuído ao rei-pastor do Antigo Testamento, no contexto das guerras fratricidas na Flandres ao  tempo do Governador D. Luis de Requesens. É de destacar este ideal do príncipe cristão benigno e tolerante, defendido por Arias Montano, tão ligado ao historial vetero-testamentário de David, rei-pastor cujas virtudes são a FIDES, PIETAS, PRUTENTIA e TEMPERANTIA, e compará-lo com o ambiente terrível nas guerras de religião da Flandres. A proposta de políticas mais indulgentes e a defesa da impunidade dos derrotados (a exemplo da piedade que a cidade bíblica de Abel-Bet-Maaká demonstrara após a entrega do traidor) eram, para os leitores, aspectos que mostravam à época um evidente contraste face às barbaridades cometidas pelo Duque de Alba contra os protestantes de Malines e Haarlem...

     Uma obra portuguesa poucos anos posterior à edição antuerpiana do David de Arias-Galle (1575) foi a decoração do tecto da Câmara de David e Golias (vulgarmente chamada Sala de David e do Gigante Golias) no Paço de Vila Viçosa, encomenda do 7º Duque de Bragança D. Teodósio II, em que os mesmos valores da tolerância e bom governo se destacam, à luz do texto vetero-testamentário, através de um programa inspirado directamente nas gravuras do livro. Foi pintada cerca de 1603 aquando do casamento deste Duque com D. Ana de Velasco e Girón, por Tomás Luís. O Paço Ducal de Vila Viçosa, sede da Casa de Bragança, o mais poderoso ramo da nobreza lusa, vive no século XVI uma fase de esplendor com os Ducados de D. Teodósio I (1532-63), D. João I (1563-83) e D. Teodósio II (1583-1630). A influência do David. Virtutis Exercitatissimae Probatum Deo Spectaculum, (ed. Antuérpia, 1575) e as gravuras de Philippe Galle, expressa-se na arte portuguesa do tempo da Monarquia Dual: o programa iconográfico de uma das salas do Palácio Ducal de Vila Viçosa, encomendado no início do século XVII ao pintor de fresco Tomás Luís pelo 7º Duque D. Teodósio II. A Sala de David e do Gigante Golias, uma das «casas novas» mandadas decorar nos preparativos do casamento do Duque D. Teodósio II com D. Ana de Velasco y Girón, da Casa de Medina Sidónia (de onde nasceria o 8º duque D. João II, mais tarde D. João IV, rei Restaurador), apesar de carecido de restauro, segue com fidelidade os gravados de Galle (edição de Antuérpia, 1575). A utilização por Tomás Luís dessas gravuras é exemplo da via de influência das ideias e gostos do Dr. Montano. A sanca representa cenas mitológicas de temário ovidiano em quadri riportati (Triunfo de Apolo, Perseu matando Medusa e a libertar Andrómeda, Belorofonte domando Pégaso, Apolo, Metamorfose de Daphne em loureiro, «países», trechos agrícolas e campestres) junto a retratos em busto (podem representar o ilustre visitante Duque de Parma D. Rainúcio, e seu pai, o falecido Alessandro Farnese), a envolver o brasão teodosino. É de crer que a pintura da sanca possa ser coeva da visita da embaixada parmense de 1601, em que o Paço se engalanou para receber D. Rainúcio.

 

 

 

                                                            BIBLIOGRAFIA:

Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, coord. José María Maestre Maestre, Eustaquio Sánchez Salor, Manuel Antonio Diaz Gito, Luis Charlo Brea, Pedro Juan Galan Sánchez, vol. II, 2006, pp. 723-750.

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.

 

 

 

 

 

 


Semiótica e História da Arte: o exemplo de Omar Calabrese.

20 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


A LINGUAGEM DA CRÍTICA DE ARTE

 - No primeiro capítulo do livro analisado de Omar Calabrese, subdividido em problemas de fundo e crítica dos críticos, explicita o conceito de crítica de arte. - Privilegia a função de programas universitários vocacionados para a crítica de arte, versando literatura sobre o tema, produzida desde a Antiguidade Clássica - Reforça a proximidade entre a crítica de arte, a história da arte e a história da sorte crítica [leia-se da fortuna crítica], esclarecendo que esta última veicula “«discursos sobre as artes», partindo dos tratados antigos e modernos até se chegar às teorias sobre a arte contemporânea, entrando mesmo no campo da estética (pelo menos no atinente à estética como teoria do discurso sobre a arte e como sistema de avaliação.” (p. 10) Distingue na crítica de arte contemporânea a ligação à especificidade dos seus métodos de avaliação, às práticas sociais e institucionais e às relações da arte com o mercado. Articula a crítica de arte com a prática do historiador.


Aplicação do modelo semiótico ao conceito de estilo: -  “I) aquilo a que chamamos «estilo» é formado por variações no plano da expressão que correspondem a efeitos de conteúdo; - II) estes efeitos são motivos a que, na sequência de uma tradição antiga, poderíamos chamar «estilemas», isto é, configurações discursivas relevantes, tanto na dimensão semântica como na sintáctica; - III) os «estilemas» funcionam como marcas do actor, individual ou colectivo, que os produziu [autor, sociedade] e dão ao enunciado que os contém o estatuto de enunciado informativo tendente ao reconhecimento cognitivo do próprio actor como actor «estetizante» - IV) portanto, o estilo pertence à dimensão cognitiva da estética.”

- É nesta linha teórico-interpretativa que Calabrese escolhe como análise-modelo “Os Embaixadores” de Hans Holbein, o Jovem. - Aplica a esta obra “o princípio específico de coerência textual que, em semiótica, se define como «intertextualidade»” (p. 38). Refutando o conceito de linguagens artísticas «específicas», defende que “o novo ponto de vista obriga a prescindir definitivamente da possível tentação de entender a semiótica da arte como disciplina autónoma e totalizadora” (pp. 37-38), preferindo o recurso à teoria de Greimas e fazendo corresponder níveis de leitura aos tipos de isotopias, “coexistentes e com conexões que permitem o salto de um nível para outro” (pp. 37-43). Assim, começa por, numa primeira etapa, praticar um exercício teórico a partir de uma abordagem empírica, circunscrita a um primeiro olhar interpretativo ingénuo e confinado, tão só, à descrição do visível. - É precisamente a força e a globalidade do aspecto eidético de todo o quadro que obriga a procurar a regra de transformação daquela única figura não eidética em figura eidética. O choque entre as figuras é um choque entre formas que não aparece e que pode ser e não ser o que parece; portanto, entre figuras que podem tornar-se verdadeiras ou enganadoras e uma forma que pode ser falsa ou secreta. Em termos de modalidades verídicas, a situação é exprimível num contraste de posições no interior do quadro da veridicidade: verdade  ser  parecer   segredo  mentira não-parecer       não-ser  falsidade”   (pp. 44-46) - Omar Calabrese estabelece nove percursos de análise da obra, os quais denomina “Estádios”:

1º. Estádio centrado na percepção do observador, “o quadro interpela o espectador, dado que o obriga a encará-lo e, como tal, descobre-lhe minuciosamente a «verdade» da pintura. No entanto, ao mesmo tempo, o quadro desafia o interlocutor precisamente enquanto o observa: nega-lhe, no ponto canónico, a decifração de um elemento. Desta forma convida-o a entrar num jogo com ele (…) a realidade somente pode captar-se através de um espelho deformante e a pintura não é mais do que uma máscara, sendo necessário deslocar-se para além dela a fim de se conhecer a verdade (…) em termos semióticos (…) o pólo representado pela anamorfose qualifica-se automaticamente como segredo e não como falsidade (…) a alusão à anamorfose (nível arquitextual) é também, ao mesmo tempo, um discurso sobre a essência da representação figurativa (nível metatextual) (…) em que nos introduz uma oposição teórica (…) homóloga, igualmente, da oposição: máscara vs «por detrás da» máscara (…)” (pp. 47-50).

2º. Estádio acham-se no quadro notas e indicações que desvendam e aludem a dados biográficos precisos das personagens representadas – no punhal, figura da esquerda, 29 anos, e no livro da figura da direita, 24 anos. No mapa-mundi a pequena cidade de Polisy é a cidade natal e de residência de “uma conhecida personagem da corte do rei Francisco I de França, que, justamente em 1533 (também data do quadro) estava como embaixador em Londres quando também Holbein se encontrava lá. Outra referência: Jean de Dinteville (com vinte e nove anos em 1533) traz ao pescoço uma medalha da Ordem de S. Miguel, com que realmente o jovem diplomata fora condecorado por Francisco I, pouco tempo antes.” Para além destes, outros códigos com fortes implicações textuais ressaltam da superfície do quadro: “as cifras relativas às idades das duas personagens (…) a medalha da ordem de S. Miguel é sua porque a tem ao pescoço; os mapas-mundi e os objectos astronómicos, musicais, matemáticos e literários são seus porque estão dispostos junto dele.” (pp. 50-52)

3º. Estádio descreve-se os objectos localizados entre ambas as personagens e a respectiva significação: “Portanto instrumentos científicos e culturais agrupáveis segundo as (…) disciplinas (…) geometria, aritmética, música e astronomia. Ter-se-á reconhecido imediatamente o quadrívio (…) resumamos a cena. Duas personagens de poder laico e eclesiástico (…) O poder configura-se como uma arquitectura do saber moderno (…) este nível simbólico é também acompanhado por indícios que confirmam o nível anterior, o da biografia das personagens. (…) Outras referências no texto ou encaixadas nos textos (…) levam-nos a aprofundar, por uns momentos, o tipo de metáfora da ciência e da cultura instituído por Holbein (…) através do complexo sistema de referências e de referências nas referências, vemos aparecer no retrato toda a série de nomes do novo humanismo do séc. XVI (…) Portanto lado a lado a Reforma científica e a Reforma religiosa.” (pp. 54-56)

4º. Estádio intitulado A Amizade, Omar Calabrese remete para as duas categorias de retratos inseridos na obra – “Duas delas estão fisicamente presentes no quadro, as outras estão citadas, de diversas formas. (…) O retrato por objectos e não por pessoa física tornar-se-á quase canónico na época da natureza-morta, por exemplo na forma do «canto de estudo» onde se amontoam os objectos-personagens daquele que se quer manifestar no retrato, ocultando o seu próprio corpo (…) os Embaixadores são um retrato de grupo, um retrato de amizade (…).” (pp. 57-59)

5º. Estádio designado A Política, corresponde ao estabelecimento e ao desvendar do trama subtil de relações de segredos de que os dois embaixadores estavam oficial e secretamente encarregados de viabilizar. Calabrese interpreta de um ponto de vista simbólico a presença de dois elementos que encara como indícios passíveis de descodificação: o alaúde de 10 cordas, uma das quais quebrada, e a especificidade do tratamento do rosto de Georges de Selve, cruzando-os com outros dados provenientes da investigação histórica e biográfica das personagens e do pintor, tudo isso em articulação com o plano conceptual de segredo: “o segredo não é algo que não se sabe, mas algo que apenas se conhece em determinadas condições; e, para que seja verdadeiramente segredo, deve estar marcado como segredo”, e é aqui que a caveira anamórfica se enquadra, como “delimitador global de segredo”. (p. 61)

6º. Estádio correspondente a A Pintura, incide no nível de “distribuição no quadro de referências a outros textos, que não apenas se citam, mas que também estão colocadas entre aspas. Trata-se de objectos e técnicas de representação que, portanto, assumem aqui um valor metalinguístico ou metatextual. Calabrese estabelece mesmo um paralelismo entre a construção perspéctica do quadro, exercício de trompe-l’oeil, e a velha luta entre Zêuxis e Parrásio, que alimenta o mito da pintura como engano dos olhos, contrapondo depois tais falsas aparências a uma segunda verdade – “Resumindo: pintura como máscara que cobre a verdade com o seu próprio aspecto verosímil, mas enganador. Então, chegamos ao primeiro significado possível da anamorfose da caveira: ao lado da mentira da pintura enganadora (trompe-l’oeil), há a possibilidade de uma segunda verdade (anamorfose), como ao lado da falsa beleza se pode colocar a única verdade representável, a morte (sendo Deus, por Sua natureza irrepresentável, a outra verdade). Deste modo, Holbein insere na mesma mesa os dois modos coincidentes e opostos da representação: trompe-l’oeil e anamorfose.” (p. 63)

7º. Estádio trata de O Jogo Linguístico, desenvolvido em torno da representação do tema da caveira. As três representações que do objecto se fazem no quadro correspondem a leituras, significados e mensagens diferentes. Uma “caveira principal de grandes dimensões no meio da mesa”, funcionado como anamorfose principal, contém dentro dela “uma segunda caveira mais pequena. (…) além das duas anamorfoses, oculta-se minuciosamente no quadro uma terceira caveira: o alfinete do toucado de Jean de Dinteville (…) precisamente o distintivo do embaixador francês, cujo lema era memento mori.” (pp. 64-65)

8º. Estádio intitulado A Autobiografia, alude-se ao sistema de auto-referências do pintor Holbein e ao nível de coerência dessas auto-referências, “cujo elo de ligação é a sua assinatura” e em que “o mais autobiográfico de todos é precisamente o tema da morte e do seu símbolo mais claro, a caveira (…) Sob o signo da morte está, de facto, a Declaração sobre a incerteza, a vacuidade e os abusos das ciências e das artes” (pp. 65-67).

9º. Estádio A Filosofia, fecha-se o ciclo, pois regressa-se ao ponto de partida, ao segredo descoberto, sendo este simultaneamente a chave para desvendar os muitos segredos contidos no quadro. “A ideia da morte como verdade que ultrapassa a aparência e o engano da pintura constitui-se como nível final de leitura.”

Porém, o exercício teórico não se detém apenas nesta dimensão. A relação entre a pintura e a representação é acima interpretada sob um outro prisma, o da compreensão da adversidade do conhecimento verdade/falsidade: “Este é o último segredo filosófico do quadro (…) Oculto na última prega à esquerda do cortinado há um crucifixo de prata, em perspectiva de perfil, com o braço curto da luz voltado para nós. Simulacro do irrepresentável, de Deus. Ponte e passagem para o além da representação. (…) Se acreditarmos na representação, estaremos fatalmente condenados à mentira; mas, se não crermos na representação, estaremos inevitavelmente condenados ao segredo. A verdade e a falsidade não existem, pelo menos nesta dimensão: está noutro lugar, para além do cortinado que cobre o horizonte, isto é, na nossa própria possibilidade de ver e de saber.” (pp. 67-68) Por outras palavras, o que está em causa neste quadro, é também a questão da certeza humana, a possibilidade de acesso do Homem aos mistérios da verdade, e daí o peso que Calabrese atribui à intertextualidade, na leitura da obra.


- Em resumo, a obra em análise transporta um conjunto de enunciados significativos que informam sobre a interpretação de Omar Calabrese com o pensamento semiológico. - Discurso fluente, quando coloca questões inerentes à interrogação da obra de arte, adensa-se perante a polissemia subjacente à interpretação. - Do seu contributo teórico-conceptual [presente na obra “como se lê uma obra de arte”] para o desbravar de metodologias de abordagem da obra, destacamos: - A leitura do quadro como processo de um olhar consciente, responsável e competente, apetrechado da utensilagem adequada à descodificação do texto em análise. - Atitude de visão global face à totalidade da obra, conhecedora não só da utopia que habita cada momento de abordagem, mas também do significado da Fortuna Crítica e do espaço existencial do presente.- Articulação dos diferentes tempos face à discursividade da leitura. - Estruturação de circuitos de olhares virtuais e possíveis, direccionados para o conjunto de signos alinhados na superfície plástica, implicando escolhas múltiplas e relativas e refutando a linearidade irreversível. - Soberania da consciência face à parcialidade que antecipa a visão unitária, perspectivada a partir de três comportamentos fundamentais: perceptivo, estruturante e memorizante. - Equivalência do quadro a uma matriz de linhas, cores e valores, na qual cada geração inscreve a sua própria leitura. - Concepção do quadro como sistema, onde se cruzam conjuntos de olhares, de percursos, de elementos ligados entre si por diferentes graus de constrangimento e provocação, suscitando na descodificação dos códigos picturais a coerência interna e orgânica inerente à obra em análise e às suas referências conotativas e denotativas, sublinhadas na oposição regra/transgressão/significado pictórico.- Importância da aplicação do modelo característico da semiologia pictural à pintura, entendida como linguagem estruturada e autónoma.

- Em resumo, Omar Calabrese pertence a uma nova geração de críticos de arte cujos pressupostos teóricos se afirmam na década de 90 e onde se incluem nomes como Victor I. Stoichita, Marc Bayard, David Freedberg, Georges Didi-Hubermen, Hans Belting, etc. - No discurso teórico de Calabrese transparece toda uma utensilagem metodológica alimentada por conceitos operativos fundamentais para a descodificação do processo comunicativo, no qual ocupa lugar privilegiado a linguagem artística e, naturalmente, o discurso pictórico. Assim se compreende a alusão, nas suas análises, a termos como estratégia discursiva, narratividade, metáfora, signo, unicidade, memória, autenticidade, totalidade, alegoria, trans-semioticidade, contextualidade, cruzamento… propondo uma verdadeira taxonomia.Do ponto de vista crítico, a grande abertura expressa por Calabrese relativamente ao processo de análise da obra de arte, é bem o espelho da sua atitude de humildade, patente no seu reconhecimento de que a mensagem da obra não se esgota no signo, enquanto substituto significante de qualquer coisa. Daí o apelo do autor a elementos exteriores ao conteúdo, sejam eles dados biográficos, informação histórica, relações do artista com a sociedade, domínio da iconologia, etc., os quais embora excluídos do processo comunicacional, completam o entendimento da globalidade da obra de arte.

Muitas das questões colocadas por Calabrese relativamente ao universo comunicativo da produção artística continuam em aberto, pois no actual estado do debate teórico nada está definitivamente encerrado. A obra de arte oferece-se à interrogação, e a abordagem semiótica não a esgota; as áreas cruzadas com a semiologia, designadamente no domínio das ciências humanas, a interdisciplinaridade, a aproximação metodológica a outras linguagens da crítica, constituem recursos que tornam inesgotável o processo de inteligibilidade da obra. Assim, “Como se lê uma Obra de Arte” é uma obra de qualidade inquestionável para estudiosos, críticos e historiadores da arte, com destaque para o seu contributo semântico, o qual justificaria o melhoramento da qualidade de reprodução das imagens reproduzidas e, bem assim, do teor de informação veiculada pelas respectivas legendas.


BIBL. : OMAR CALABRESE, “Como se Lê uma Obra de Arte”, Edição em língua portuguesa de Edições 70, Lisboa, 1997, ISBN 972-44-0963-5, 144 pp. (125 de texto). Título original: “Cómo se lee una obra de arte”, Ediciones Cátedra, S.A., 1993.


O conceito de Artworld e o alargamento dos « géneros » da História da arte: o caso do Feminismo.

18 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

ARTE NO FEMININO - CASOS DE ESTUDO NO CONTEXTO DA ARTWORLD

 

1.   Olhemos o Cartaz We Can Do It !, de J. Howard Miller (1943), primeiro grande ícone da luta das feministas nos EUA, e na Europa. Esta imagem de uma trabalhadora com lenço na cabeça, que arregaça as mangas e assume a força necessária para as actividades convencionadas como sendo exclusivas dos homens, nasce ironicamente no contexto da última Grande Guerra, no seio da fábrica Westinghouse Electric Corporation, sem traço reivindicativo e apenas com o fito de incentivar as mulheres americanas a colaborarem no esforço militar. Só muito mais tarde, quando descontextualizada, se tornou ícone do Feminismo. Pensemos também no papel de Mary Wollstonecraft (1759-1797), notável escritora, filósofa e militante dos direitos das mulheres, que foi uma defensora contestada do voto universal e da igualdade de géneros. E vejamos como a História da Arte bem pensante, académica, tantas vezes fechada na sua torre de marfim, esqueceu as suas protagonistas mulheres, erradicando-as dos museus e das páginas dos seus livros…

     Ou seja, existe ainda uma arte sem História que precisa de ser reescrita, de ser pesquisada a sério: aquela que foi produzida por artistas mulheres, e que a História tradicional tem sempre colocado num plano subalterno e negligenciado. Vejamos a arte portuguesa. Salvo o caso de Josefa de Óbidos, que sempre mereceu a estima da crítica, ainda que num elogio subordinado ao aspecto «feminil» e «doméstico» da sua arte, própria de uma «molher donzela que nunca cazou», que se sabe de tantas outras artistas nacionais ? Que se sabe, por exemplo, de Inácia da Costa de Almeida, escultora de madeira, barro e cera, autora de um bom Senhor da Cana Verde em terracota policromada, assinado e datado de 1654, que existe no antigo Dormitório do Convento de Cristo em Tomar, e que foi, à época, considerada «exímia» ? Que se sabe da freira pintora Soror Joana Baptista, autora de miniaturas sacras, activa na segunda metade do século XVII, e que gozou de certa consideração ? Que se sabe da nobre Maria de Guadalupe de Lencastre e Cardenas (1630-1715), duquesa de Aveiro, Maqueda y de Arcos, letrada e pintora, que chegou a ser ‘juíz’ (presidente) da Irmandade de São Lucas, em 1658 ? Que se sabe de largas dezenas de mulheres que, nos século XVII e XVIII, praticaram desenho, caligrafia, debuxo, douramento ou mesmo pintura de pincel, à sombra de conventos ou de estirpes aristocráticas, e que estiveram inscritas na referida Irmandade de São Lucas ? E de outras que, já no XIX, tiveram aprendizado parisiense, caso da tão infeliz Josefa Greno (1850-1901) ? Na verdade, sabemos muito pouco sobre estas e outras mulheres artistas.

 

2.  Duas historiadoras de arte tiveram papel de maior relevo na afirmação de uma História da Arte recente em que as mulheres artistas passaram a contar em plano de paridade com os seus colegas homens. Trata-se de Griselda Pollock (1949-), docente da University of Leeds, especialista em estudos de género e em arte feminista, autora de Old Mistresses: Women, Art and Ideology (1985), e de Linda Nochlin (1931-2017), professora do Institute of Fine Arts (University de New York), reputada como curadora das célebres exposições Women Artists: 1550-1950, que decorreu em Los Angeles County Museum of Art, em 1976, e Global Feminisms, no Brooklyn Museum, de 2007.

     Ambas contribuíram para mudar o curso da História da Arte com as perguntas ‘porque é que não existem grandes mulheres artistas ?’ e ‘se existem, porque não têm o devido destaque ?’  Nochlin respondeu-lhes em Janeiro de 1971 no ensaio ‘Why have there been no great women artists ?’ (Artnews), em que, percorrendo a História, registou as convenções sociais que sempre impediram as mulheres de terem destaque nas artes, e contrariou a ideia da genialidade artística como um talento inato exclusivo dos homens. A sua crítica incisiva obrigou a História da Arte a reformular as suas próprias regras: redefiniram-se os conceitos de genialidade e reconheceu-se o talento de artistas mulheres que só o preconceito de género fizera secundarizar ou esquecer. A força legitimadora do saber exposto em programas de ensino, museus e exposições tornara ‘natural’ a ausência de mulheres artistas; ora, se elas não estavam lá, se não líamos sobre elas nem as víamos nas paredes dos museus, é porque não existiam, ou não tinham ‘qualidade’ para lá estar…

     Os casos de comportamentos lesivos da dignidade da mulher artista multiplicam-se e seria útil um recenseamento de casos, antigos e recentes. Quase sempre em casos de casais de artistas a subalternização da mulher é implícita e atinge por vezes contornos gravosos. Ainda na recente Lição de Jubilação da Profª. Margarida Calado (FBAUL) foi lembrado que até um grande artista como José de Almada-Negreiros manifestou preconceitos homofóbicos em relação às mulheres em geral e à sua mulher artista Sarah Afonso em particular: «é preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens» !

     A visão feminista, irónica e provocadora, do livro de Nochlin Women, Art and Power and Other Essays, 1991), revolucionou a História da Arte, até aí assente no preconceito de que só os homens podiam ser artistas destacados. Esta nova História da Arte mostrou que, afinal, ‘elas’ existiam, e eram muitas mais do que se imaginaria. Ficaram expostos os mecanismos de exclusão que tinham criado a sua histórica invisibilidade; e inverteu-se a questão posta – aquilo que era extraordinário é que, apesar de tantas resistências e obstáculos, houvesse mulheres que tivessem tido brilhantes carreiras artísticas, e que fossem tantas! Assim se desconstruíram as bases ideológicas de uma História de Arte de raíz homofóbica e xenófoba, num contexto histórico de anos 70 em que o pensamento feminista estava a transformar os paradigmas e linguagens das ciências humanas, inserindo a sua perspectiva crítica em todas as vertentes: porque é que as mulheres artistas não tinham sido estudadas, coleccionadas, expostas, restauradas, valorizadas ?

 

3. A História da Arte começava finalmente a falar com toda a naturalidade da arte feita por mulheres, contribuindo para que passasse a ser, como diz Filipa Lowndes Vicente, uma arte com história. As abordagens feministas contribuíram decisivamente para uma consciência crítica dos mecanismos ideológicos de inscrição na História da Arte e para refutar os processos de segregação de género na produção artística, tão bem ilustrada pelo famoso poster do grupo feminista Guerrilla Girls: «Terão as mulheres que estar nuas para entrar no Metropolitan Museum ? Menos de 5% dos artistas expostos na secção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos»... 

     Todavia, neste campo de resgate da arte no feminino, antes muito desconsiderada pela História, existe uma dificuldade maior, a de encontrar documentos, escritos ou visuais, sobre o trabalho de mulheres artistas, permanecendo muitas “páginas em branco” sobre as suas obras. A este respeito, dar voz plena às mulheres silenciadas impõe alargar a pesquisa a reservas de museu, colecções privadas e arquivos de família (tarefa mais difícil, do que quem investiga as fontes primárias tradicionais), restando a possibilidade de questionar criticamente os mecanismos (re)produtores destes silêncios, caso a caso, e a forma como os saberes foram elaborados, validados e instituídos pela História. O livro Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, de Ana Vicente, e o excelente ensaio de Filipa Lowndes Vicente intitulado Fora dos cânones: mulheres artistas e escritoras no Portugal de princípio do séc. XX, questionaram as possibilidades que podiam ter as mulheres portuguesa em se dedicarem profissionalmente à pintura ou à escrita. Pintar e escrever eram práticas femininas aceites e até encorajadas entre as elites dos séculos XVI ou XVII, se dentro do recato do lar, mas existiam fronteiras entre fazê-lo no espaço privado da domesticidade ou no espaço público, expondo ou publicando. Quando o sufragismo e o feminismo eram ideias que circulavam a nível trans-nacional, como é que as portuguesas com acesso à escrita, ou à pintura, se posicionavam face a esses debates? Ora nem sempre o acesso à publicação e à exposição se traduzia numa consciência feminista.

     Citam-se sem dificuldade, percorrendo serenamente a evolução das artes ao longo da Idade Moderna e Contemporânea, casos de inquestionável superioridade artística de mulheres pintoras como Artemisia Gentileschi (1593-c. 1653), ‘caravagesca’ de méritos reconhecidos no tempo, tal como Barbara Longhi (1552-1638), Catharina van Hemessen (c.1527-1560), Levina Teerlinc (c.1520-1576), Lavinia Fontana (1552-1614), Clara Peeters (1594-1657), Louise Moillon (1610-1696), Judith Leyster (1609-1660), Elizabetta Sirani (1638-1665), etc, e podemos alargar o rol de nomes, por exemplo, até ao caso icónico da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Todas muito elogiadas, apesar de serem mulheres e, como tal, vistas à luz de um certo ‘recato doméstico’... Mas temos também, no plano oposto, uma Camille Claudel (1864-1943), grande escultora, discípula de Rodin, que apesar do talento incontestável faleceu na obscuridade, e cuja obra só veio ganhar reconhecimento várias décadas após a morte.

 

4.  Em Portugal, o caso mais mediático e notável, na época barroca, é o de Josefa de Ayala e Cabrera, a famosa Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630-Óbidos, 1684), filha e discípula do grande pintor Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), já louvada por Damião de Froes Perym, no Theatro Heroino (1734), não pelas qualidades artísticas propriamente ditas mas pelas ‘virtudes morais’ e pelo ‘decoro’ dessa ‘mulher que nunca casou’ e que pintava «por curiosidade»... Seja como for, o talento de Josefa impõs-se, face à alta qualidade da sua vasta obra de pintora sacra, bodegonista, miniaturista e retratista, como se infere de tantos textos laudatórios, desde Félix da Costa Meesen a Cyrillo Volkmar Machado, Cunha Taborda ou Almeida Garrett, e constitui um caso àparte no panorama da nossa História da Arte – uma mulher pintora com história… Nos nossos dias, Josefa é uma pintora que, a nível internacional, se aprecia imenso, tal como seu pai Baltazar, justamente pela inovação com que ambos encheram o nosso Barroco seiscentista, tanto nas naturezas-mortas como numa pintura sacra onde perpassa, muitas vezes, uma ambígua veia erótica (vejam-se as suas arrebatadas telas de 1672 para o convento de frades carmelitas de Cascais). 


5.      Afinal, tudo começa no corpo e no preconceito que lhe subjaz. O desejo e o tacto, os sentidos, o teatro, a pose, as motivações narcisistas, a força do imaginário estético. O corpo é luz espelhada, festa, luxo, etiqueta, revolta, graça, retórica, afirmação insubmissa, liberdade, pecado, ícone religioso, maternidade, retrato de aparato, simbolismo, sensualidade, amor, fé ardorosa, alegoria, espiritualização, fonte de prazer – e assim foi, desde sempre, objecto de criação artística, exaltante apego a formas palpitantes. Nele existe grazia e repulsa, obsessão saturniana e euforia, schize melancólica e venustà imaginizada, antropocentismo e ambiguidade, fé e descrença, indizível e efémero. De tudo isto nos fala o Corpo, na pena dos poetas, na descrição dos escritores, no escopro dos escultores, no pincel dos pintores... Mas quando o corpo se torna matéria de arte por parte das mulheres-artistas, a linguagem é ou não distinta – ou melhor, a visão que dele temos é ou não distinta ? A verdade é que o monopólio de uma História da Arte grandiosa, ocidentalizada, masculina, cristã, branca, rácica, imperialista, marcada pelo preconceito e a exclusão, ainda não se finou e ainda faz sentir a sua força…

     Um contributo para uma tipologia neste campo permite-nos assumir: o corpo como alegoria moral (como testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais); o corpo como magia de Eros (a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas); o corpo como equívoco (testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros); o corpo como pecado (a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a brevidade); o corpo como pretexto, sempre… (tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para os artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico). Erotismo e sensualidade, fé e religião, paragona dos amores profanos e divinos, Eros e Anteros, tacto carnal e arrebatamento místico, pureza e volúpia, luz divina e sensorialidade sexual, eis um caminho de linhas comuns e opostas, cruzamentos e conjuras heterogéneas. Em Jacopo Tintoretto (1519-1594), genial pintor veneziano, católico mas nem por isso conservador, toma-se exemplo, com Susana e os Velhos, dessa fé e sensualidade que coabitam, sempre, na representação do nu feminino.

     Mas falar do corpo feminino é também falar de censura, actos iconoclásticos, repressão directa ou interposta... Reportamo-nos, assim, ao caso da mulher-diabo desnuda no painel renascentista O arcanjo São Miguel combatendo o demónio da igreja monacal de São Francisco de Évora, pintado por Garcia Fernandes, cerca de 1530. Como se sabe, poucos anos depois, já em contexto de Contra-Reforma, o quadro foi alvo de polémica e o diabo-mulher, por ser considerado «de formosura dissoluta» e, como tal, impróprio de figurar num lugar de culto, mandado cobrir por uma nuvem espessa. Tal constitui sintomático exemplo de uma atitude censória homofóbica em que, através da ocultação de uma imagem, se visou anular os efeitos incontroláveis da beleza do corpo, facto que tornava essa obra de arte tão incómoda e subversiva...

 


O conceito de Mundo da Arte face ao mercado e face à liberdade criadora.

13 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

• Eppure si muove…: reflexões sobre arte e globalização. 


É uma análise parcelar e uma reflexão sem fim: percebem-se contornos, diagnosticam-se problemas, mas é difícil definir rumos no dealbar sob a realidade da globalização. Quais os quadros de referência e bases instituídas que possam dinamizar o ‘mundo das artes’ ? A análise de Eric Hobsbawm, pelo que contém de polémico (mas, por essa mesma razão, luminoso), pareceu uma abertura plausível para ensaiar uma reflexão sobre o sentido das vanguardas activas nas artes de hoje e, principalmente, sobre o grau de intervenção da História-Crítica da Arte, submetida a um mundo globalizado . •Face a inusitada ascensão da História global, dispomos hoje de bases genuínas para analisar a especificidade da civilização europeia ou atlântica, realidades decorrentes do pós-colonialismo, a ascensão do capitalismo ultra-liberal agressivo e sem regulação, num mundo desideologizado e, por isso, mais vulnerável aos efeitos da exploração sem peias. As artes, todavia, continuam a fluir. Nunca o ‘mundo da arte’ se mostrou um espaço tão interventivo, globalizado, apto a repensar o papel de identidade-memória e intervenção-sinal. Se pensarmos em termos de que são «os homens (que) fazem a sua própria história», verificamos que durante gerações, foram muitas as comunidades e sistemas sociais que buscaram a estabilização e a reprodução criando mecanismos para prevenir o futuro, acautelando os perigos do desconhecido (os grandes saltos nas brumas do futuro incerto) e criando a resistência às transformações. A globalização veio agitar, com as suas contradições, riscos, ‘etapas’ desreguladas e consumismo insano, novos ‘saltos no escuro’ que estimulam o auto-conhecimento, a criação artística e as dinâmicas que podem criar uma cidadania de valores. Quero crer que a produção artística ganha novos estímulos, os equipamentos de crítica nova frescura de debate, os objectos de estudo novas possibilidades de investigação, as incidências do mercado das artes novas dinâmicas de crescimento. Principalmente, esse Artworld definido por Danto ganha um espaço plural de redefinição. Face à imprevisibilidade dos amanhãs, a produção das artes, e a História-Crítica que a analisa, estuda, valoriza e promove, continuam firmes. Criam obra, exprimem ideias, agitam o ‘mundo das artes’, conferem-lhe qualidade. Oferecem a imagem de um espaço operativo reforçado – porque útil, socialmente interventivo, capaz ainda e sempre de gerar emoções. 

A tese Liberdade Artística e Mercado, de Júlio Francisco Ribeiro da Costa (ISCTE-INDEG, Mestrado em Mercados da Arte) analisou bem a liberdade de criação, produção e exposição do artista face às contingências do mercado contemporâneo no seio do chamado artworld, ‘mundo da arte’, tal como o caracterizou Arthur C. Danto, e no quadro da globalização mundializada. Esta secção do mercado é vista na perspectiva das possibilidades e limites colocados à liberdade criadora e ao estatuto social dos artistas. Analisam-se conceitos operativos como o valor de uso e o paradigma do sistema da arte contemporânea, para que a reflexão possa ser o mais abrangente possível. Questões como ética, alienação, valor de mercadoria, flutuações de gosto, critérios de avaliação, comportamentos deontológicos nas relações entre mercado e artista, merecem atenção numa abordagem que, sendo transversal na articulação entre o mundo da arte e a criação, não deixa de destacar os valores que fundamentam o sistema actual da arte contemporânea. Trata-se, em síntese, de uma reflexão em torno da posição da obra de arte e dos artistas no vasto mundo da arte influenciado pelo mercado. É possível defender que a qualidade artística rima com liberdade…. 

DEFENDER A QUALIDADE É LUTAR PELA LIBERDADE


O Conceito de ARTWORLD e o contributo de Arthur C. Danto para a Teoria das Artes.

11 Fevereiro 2019, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


Visto que a criação ex-nihilo está reservada aos deuses - categoria em que o artista não se enquadra --- o homem comum não cria a partir do nada. Como tal, existe toda uma história por detrás de toda a criação artística. Sendo o nosso foco temporal de reflexão o período contemporâneo, e, principalmente, a arte realizada nos dias que correm, abrimos a abordagem vendo a posição que a arte tem neste mesmo período, partindo do conceito de Artworld, o “mundo da arte”, tal como o definiram e caracterizaram Arthur C. Danto e que noutros autores é completado, procurando definir a natureza da obra de arte, ou seja, chegar às determinações que vigoram hodiernamente.

“Entendo aqui, por útil, o conceito operatório (Artworld) utilizado pelo antropólogo e crítico de arte Arthur C. Danto para caracterizar as teias relacionais entre artistas, agentes, galeristas, mecenas, críticos de imprensa, fotógrafos, leiloeiros e demais promotores da indústria e do mercado das artes, técnicos de conservação e restauro, museólogos, curadores de exposições, sociólogos, historiadores de arte e os públicos.” (Serrão, 2016: 585)

A partir de Danto percebemos que não existe, a priori , nenhuma barreira formal à apresentação de obras ao mundo. A categoria de Artworld tem importância maior do que as concepções de outros autores. Ela engloba em si todas as formas de arte, pois não há nada que impeça teoricamente o cruzamento das artes. A divisão de George Dickie (Public Artworld) diz-nos que cada área tem elementos e regras específicas, o que não é de todo mentira. Contudo, no pensamento hodierno essa divisão cada vez se torna mais ultrapassada. Certo está Howard Becker (Mundos da Arte) quando realça a carga de cooperação entre os vários Mundos da Arte, e através dele conseguimos vários elementos para pensar a produção artística. Ao ponto na vida prática do artista, ponto em que decide expor, chamamos: momento de exposição. O juiz só falará depois de exposto o caso; para o réu se defender tem de contratar advogado e em cooperação terão de construir os seus argumentos. O artista, antes de sair para o mundo, forma a sua identidade, busca, obtém parcerias, procura formação, desenvolve técnicas. De forma leviana se afirma que o artista pode fazer o que bem entender e só depois terá sucesso em função do mundo da arte. Interessa-nos explorar esse tempo que o artista percorre até chegar ao momento de exposição.

A filosofia da arte, a estética e a teoria da arte em geral desempenham um papel de relevo no estabelecer dos critérios de Becker. No entanto, falam só do que é visto, abordam aquilo que, em diferentes intensidades, já existe e se encontra no mundo da arte. A sua teoria é muito interessante por tentar chegar ao pano de fundo do mundo da arte. Ao contrário de Danto, que filosoficamente define uma categoria universal para compreender o estado da arte no mundo contemporâneo, Becker fá-lo sociologicamente, dividindo e analisando cada parte desse mundo artístico nesta mesma era. Dessa forma, surge a pluralização: mundo(s) da arte, analisada com carga empírica forte. Para ele não existe só um mundo da arte. Becker encaixa nos mundos da arte o fabricante de lápis, o crítico, o fabricante de tintas, o pintor, o cineasta; fazendo variar o grau e o impacto da intervenção de cada entidade. Os Mundos da Arte não são só os intervenientes directos, também os indirectos têm papel relevante (Becker, 2010). O importante destas ideias é a interação entre os indivíduos e entidades que formam estes mundos, as relações que fazem a arte surgir e evoluir, como processo constante, acrescente-se: dialético, englobando muitas contradições, sendo o progresso o resultado da resolução dessas contradições.“…temos uma noção da organização dos mundos da arte que parte do mero bom senso: eles existem de tal modo que alguns dos seus membros são considerados pela maioria das pessoas interessadas como mais habilitados que outros para falar em nome desse mundo da arte. As pessoas interessadas são as que participam nas actividades cooperativas onde as obras desse mundo são produzidas e consumidas. Os membros deste modo habilitados podem ser considerados como tais em virtude da sua experiência, porque possuem um dom inato para reconhecer a arte, ou porque aquele é o seu trabalho e porque devem estar bem preparados para o saber. Pouco importa a razão. O que lhes permite estabelecer e afirmar a distinção é a autoridade que os participantes lhes reconhecem de comum acordo.” Outro nome relevante da teoria institucional, paralelamente a Danto, George Dickie define o mundo da arte como o framework, o contexto, ao qual a obra de arte é submetida ou criada para. Ao contrário de Danto, para Dickie, o artworld é dividido em vários mundos da arte também não se pode dizer que esta divisão é a mesma de Becker. Contudo, também este autor ressalva a importância de um mundo exterior ao artista para a validação da obra de arte. Ou seja, a própria definição de obra de arte decorre dessa realidade e existe em função desse mundo: «A work of art is an artifact of a kind created to be presented to an artworld public» (Dickie, 1989: 204). E reforça a ideia: «Whenever art is created there is, then, an artist who creates it, but an artist always creates for a public of some sort» (Dickie, 1989: 201).

“Os filósofos tendem a argumentar a partir de exemplos hipotéticos, e o ‘mundo da arte’ de que falam Dickie e Danto só tem consistência necessária para garantir as suas demonstrações. Nenhum dos que participou neste debate abarcou os mundos da arte em toda a sua complexidade organizacional como se faz aqui, mesmo se o nosso ponto de vista não é incompatível com aquela tese.” (Becker, 2010: 141).(Becker, 2010: 142).

O capitalismo tornou banal o conceito de “arte”: falar de mundo da arte é falar de mercado da arte. Passa a ser neste que a vida do artista se desenvolve, ou desaparece. As concepções filosóficas de Danto e Dickie são relevantes para pensar em função da teoria da arte os artistas e obras que surgem. Porém, a vida real é o mundo do homem que produz bens para sobreviver. Becker percebeu este aspecto: o artista não é excepção à regra, precisa de beber, comer, dormir, abrigar-se, comprar tintas ou rolos para a máquina fotográfica. Para o fazer na sua actividade artística, a obra ganha carácter de mercadoria.  A hierarquia da obra de arte contemporânea começa no mercado e acaba igualmente neste. Ao abranger a totalidade das determinações do mundo da arte, não nos podemos desligar de critérios mercantis e economicistas. Mesmo a teoria da arte e a crítica estão envoltas nesse espectro financeiro – não tivessem os seus agentes o poder de elevar ou rebaixar um artista.

Diga-se que a arte é uma mercadoria; feita pelo homem (Dickie e Hadjinicolaou), resultado de cooperações várias (Becker), com o intuito de integrar um mundo da arte onde é reconhecida ou não como parte do mesmo (Danto e Dickie). Não é de todo redutora esta concepção. Ao pensarmos a obra de arte como mercadoria, estamos a trazer a obra de arte para um esquema complexo, cujas regras são de difícil percepção. O que leva à concepção de uma obra e ao reconhecimento como tal não é de todo linear, e seguem-se critérios vários consoante a posição ocupada na hierarquia dos mundos da arte. Esta hierarquia é feita, principalmente, segundo princípios financeiros. Esses princípios é que dão o estatuto e poder às várias entidades. Contudo, o inverso também não se pode afirmar como falso. Os estatutos sociais e culturais da obra de arte misturam-se com o seu estatuto económico. É em função do mercado – logo na obra de arte como mercadoria – que as liberdades e restrições artísticas devem ser refletidas, esta relação complexa dita a sua forma fenoménica, a forma como elas nos aparecem na imediatez...

Vamos ao encontro à teoria de Becker que nos diz que a produção artística depende de uma cooperação no seio dos Mundos da Arte. Esta cooperação nem sempre é pacífica, e depende de imensas condicionantes que vão fazer a obra vir à luz do dia de uma maneira e não de outra…“Também nos apercebemos de que os mundos da arte acabam frequentemente por aceitar obras que haviam rejeitado num primeiro momento. De onde se pode deduzir que a diferença não reside nas obras em si, mas sobretudo na capacidade que um mundo da arte tem de acolher as obras e os seus autores”. (Becker, 2010: 196).


• DANTO, Arthur C., After the End of Art. Contemporary art and the Pale of History, Philadelphia, 1987. 
• IDEM, The Transfiguration of the Commonplace, Cambridge, Harvard University Press, 1981. 
• Raymonde Moulin,  La sociologie des arts, Paris, Éd. La Documentation française, 1986.
  Idem, Le marché de l’art. Mondialisation et nouvelles technologies, Paris, Flammarion, coll. Champs, 2003.