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Rudold Wittkower e a transmigração das imagens.

11 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

RUDOLF WITTKOWER (Berlim, 1901-Nova York, 1971) foi um grande historiador de arte alemão, que se destacou como profundo conhecedor da arte do Renascimento  e do Barroco; também se dedicou à Psicologia da Arte, ao inconsciente criativo e aos traumas ligados à criação artística; orientou os seus estudos segundo a iconologia de Aby Warburg, e de Panofsky, e as formas simbólicas de Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras de arte. Estudou um ano Arquitectura em Berlim, para seguir depois História de Arte na Universidade de Munique, com Heinrich Wölfflin, e em Berlim, com Adolph Goldschmidt. Perito em arte italiana, recebeu a influência crescente da Iconologia warburghiana, e demarcou-se cedo do Formalismo de Wölfflin. 

No livro Born Under Saturn (de 1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a Psicologia da Arte, sobre o humor merencoricus, a psique criadora e a evolução da condição social do artista, assim como o seu carácter e a sua conduta. Um pioneiro da Psicologia da Arte foi o Dr. Robert Burton (1577-1640). Era bibliotecário do Colégio de Christchurch, em Oxford, e dedicou toda a sua vida a escrever um único livro, The Anatomy of Melancholy (1621), sucessivamente acrescentado, sobre os comportamentos merencorosos do homem, as suas causas, sintomas, derivas criadoras, tipologias, génio, etc. O tema é o chamado humor melancholicus como sinal de utopia e fonte de criação desenfreada. «A melancolia amorosa, a que Avicena chama ilishi, e a licantropia, a que chama cucubuth, incluem-se por hábito na melancolia da cabeça. Mas falarei em separado da última, a que Gerardo de Solo chama amorosa, e das melancolia cavalheirescas, com a melancolia religiosa, e outros tipos de melancolia amorosa. Estes três tipos são o tema deste discurso, que dissecarei através das suas causas, sintomas, curas, juntos e em separado; de modo que todos os que estiverem afectados de algum modo por esta doença possam saber como examiná-la em si e aplicar-lhe o remédio». Considerado um clássico em língua inglesa, a Anatomia da Melancolia é um livro «filosófico, médico e histórico» sobre a natureza da melancolia e os estados da depressão. Pese a natureza da matéria, Burton é muitas vezes irónico («escrevo sobre a melancolia por estar ocupado a evitar a melancolia»), garantindo que uma das fontes da melancolia é a ociosidade. A obra descreve e classifica diferentes tipos de melancolia, as curas para a melancolia como estado clínico, e os tipos de melancolia abordados pela literatura, como os de natureza amorosa ou religiosa.

Trabalhou no Instituto Warburg, em Hamburgo e em Londres. Entre outras publicações, cabe destacar: Principios arquitectónicos na época do Humanismo (de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de 1958), Born Under Saturn (1963) e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico. Segundo o iconólogo Rudolf Wittkower, nessa sua obra póstuma, colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes: 1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14. Interpretation of Visual Symbols.

Cabe à lição iconológica, estádio avançado da História da Arte, desvendar as perenidades temáticas, as constantes codificadas, as trocas culturais (entre o Ocidente e o Oriente, p. ex.), os confrontos entre paganismo e racionalismo, as permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que estes símbolos possam estar afastados no espaço geográfico e no tempo histórico. Por exemplo, os temas mais explorados na arte do tempo do Humanismo do Renascimento revelam-se, muitas vezes, ecos de longínquas culturas, do Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não deixe de perdurar no seu discurso formal, iconológico e simbólico.


A Micro-História da Arte

9 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A MICRO-HISTÓRIA DA ARTE - A LEITURA MICRO-ARTÍSTICA E A EFICÁCIA TEÓRICO-METODOLÓGICA DA NOSSA DISCIPLINA.

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista. É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). É por isso que a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. 

É preciso, pois, revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo (Roma, n. 1929) e Carlo Ginzburg (Turim, n. 1939) na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia). O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Reavalia-se assim, no campo da teoria e da prática doméstica da nossa disciplina, a grande mais-valia que decorre do uso do conceito de Micro-História, utilizado por Enrico Castelnuovo e por Carlo Ginzburg na análise do facto artístico (no caso da arte italiana) à luz do estudo de conjunturas globalizantes e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada.

O enfoque dado às situações específicas do tecido social, em contraponto a uma historiografia assente na «narrativa grandiosa» (quase sempre alheada de qualquer dimensão antropológica), confere novas valências à perspectiva micro-histórica já que, «ao atentar nos rostos individuais esquecidos no meio da multidão» (para citar a imagem utilizada em O Queijo e os Vermes), este método permite revalorizar, num mesmo tempo, as suas produções na esfera das artes, conferindo-lhes uma importância que a falta de enfoque havia totalmente desmemorizado. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, baseada na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas plurais instâncias, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte.

O objecto da História da Arte, como parece estar estabelecido, é o de poder reabrir diálogos com as obras de arte, interrompidos por circunstâncias e razões de gosto, moda, etc, ao alterarem um tecido social e as estratégias de comunicação da obra (ideológicas, materiais,  religiosas, sócio-políticas, iconográficas, iconológicas, trans-contextuais, etc), o que impõe novas formas de as saber avaliar em termos de fascínio perene. O olhar micro-artístico, ao pôr tónica no estudo integrado da História cultural e da Geografia social, com enfoque na iconologia, contribui assim para um alargamento do comparatismo na nossa prática, deixando ver as obras de arte sem preconceitos académicos ou valorizações subjectivas.

Como demonstraram Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo em Centro e periferia (1979), tanto a resistência como o atraso coexistem na periferia com graus e significados distintos, já que, se este último reflecte uma postura subordinada, passiva, aquela mostra, pelo contrário, uma atitude activa, interligada a uma certa noção consistente de resistência. No campo artístico nacional, verifica-se como o mercado das artes esteve sempre apto a reelaborar contraposições e alternativas ao estímulo que do «pólo central» se ofereceu, resistindo a modelos de novidade não só porque os recursos necessários para os gerar pareciam inatingíveis mas também porque a «periferia» possui reservas de identidade que crê suficientemente atractivas para que certas soluções continuem a prevalecer. 

    Recorrendo na aula a alguns «estudos de caso» no campo da arquitectura, escultura e pintura portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, analisam-se aqui várias alegorizações da arte da Pintura e algumas manifestações de vanguarda, de continuidade e de reelaboração, com exemplos de obras entre Lisboa, Viseu, Évora, Santarém e alguns ‘focos’ regionais, que abrem pistas para um estudo globalizante das várias situações de ‘centro relativo’, de ‘periferismo passivo e de ‘periferismo activo’.  Sem se perder de vista o postulado de Pierre Francastel ao recomendar como ofício primeiro da História da Arte ‘je propose qu’on cherche’ -- que foi, e é, lema de toda a produção crítica de José-Augusto França, o maior e mais internacional dos historiadores de arte portugueses --, a micro-história da arte coloca o objecto de análise artística num plano superior de exigência, uma questão permanente.



BIBL.:

Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, «Centro e periferia», in Storia dell’arte italiano, Einaudi, Turim, 1979 (trad. portuguesa, Carlo Ginzburg, A Micro-História e outros ensaios, Difel, Lisboa, 1989).

Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007).

Peter Burke, (trad. brasileira: O que é História Cultural ?, Rio de Janeiro, ed. Zahar, 2005, pp. 60-61).


Conceito de Micro-História da Arte.

9 Fevereiro 2021, 14:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A MICRO-HISTÓRIA DA ARTE - A LEITURA MICRO-ARTÍSTICA E A EFICÁCIA TEÓRICO-METODOLÓGICA DA NOSSA DISCIPLINA.

O uso do conceito de Micro-História da Arte na análise da produção artística, ao iluminar ‘zonas’ de periferismo, i. e., fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, obriga a ver o tecido artístico – autores, oficinas, clientes, programas, públicos, e fruidores – numa ampla perspetiva comparatista. É esse ponto de vista que deixa perceber as linhas de ruptura e continuidade, o sopro de originalidade, as linhas de vanguarda e anacronismo, conformismos, e demais valências envolvidas – seja qual for a situação analisada ou o peso relativo dos artistas analisados. A História da Arte portuguesa, tão rica de fenómenos de descontinuidade e permanência dadas as relações de miscigenação lusófonas, pode tirar partido deste conceito (que não se confunde com meras listagens de artistas, artífices e obras regionais, mas com um comparatismo alargado que ilumine as situações em apreço). É por isso que a Micro-História da Arte, ao devolver uma consciência plural aos fenómenos de criação e recepção artística, vem justificar a prática de um olhar microscópico sem arrogância nem preconceitos. 

É preciso, pois, revalorizar e promover, no campo da teoria e prática dos historiadores de arte, a aplicação do conceito de Micro-História, utilizado pela primeira vez por Enrico Castelnuovo (Roma, n. 1929) e Carlo Ginzburg (Turim, n. 1939) na análise do facto artístico segundo uma conjuntura globalizante e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada (História Cultural, Geografia, Antropologia, Sociologia da Arte, Iconologia). O uso por parte dos historiadores de arte deste conceito de análise microscópica das artes ilumina melhor a produção que emana em situações de periferismo, fora dos ‘pólos’ e ‘centros’ como tal considerados, e impõe um olhar integrado sobre o tecido artístico – artista, oficina, clientes, programas artísticos, públicos, e fruidores no seu conjunto – numa mais ampla perspectiva, que deixa perceber as linhas de ruptura e de continuidade, o sopro original e os anacronismos, o vanguardismo e os conformismos, independentemente do tempo e do espaço em que se situe a conjuntura artística em apreço. Reavalia-se assim, no campo da teoria e da prática doméstica da nossa disciplina, a grande mais-valia que decorre do uso do conceito de Micro-História, utilizado por Enrico Castelnuovo e por Carlo Ginzburg na análise do facto artístico (no caso da arte italiana) à luz do estudo de conjunturas globalizantes e uma visão trans-contextual e comparatista mais alargada.

O enfoque dado às situações específicas do tecido social, em contraponto a uma historiografia assente na «narrativa grandiosa» (quase sempre alheada de qualquer dimensão antropológica), confere novas valências à perspectiva micro-histórica já que, «ao atentar nos rostos individuais esquecidos no meio da multidão» (para citar a imagem utilizada em O Queijo e os Vermes), este método permite revalorizar, num mesmo tempo, as suas produções na esfera das artes, conferindo-lhes uma importância que a falta de enfoque havia totalmente desmemorizado. Estamos dentro das possibilidades de uma leitura microscópica aplicada ao campo das artes, i. e., uma História vista de baixo (utilizando o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da circularidade cultural percepcionada por Ginzburg e Castelnuovo. Correndo sempre o risco de esta opção de pesquisa, baseada na complementaridade de testemunhos artísticos sobreviventes, ser algo de fragmentário (até pela aceitação implícita do carácter conjectural dos dados recolhidos), é inegável que uma análise muito alargada e transversal dos comportamentos colectivos num dado momento histórico permite observar com outra objectividade o que se passou e passa no campo da produção das artes nas suas plurais instâncias, na dialéctica entre reaccionarismo e inovação -- o que só por si justifica e recomenda a prática da Micro-História da Arte.

O objecto da História da Arte, como parece estar estabelecido, é o de poder reabrir diálogos com as obras de arte, interrompidos por circunstâncias e razões de gosto, moda, etc, ao alterarem um tecido social e as estratégias de comunicação da obra (ideológicas, materiais,  religiosas, sócio-políticas, iconográficas, iconológicas, trans-contextuais, etc), o que impõe novas formas de as saber avaliar em termos de fascínio perene. O olhar micro-artístico, ao pôr tónica no estudo integrado da História cultural e da Geografia social, com enfoque na iconologia, contribui assim para um alargamento do comparatismo na nossa prática, deixando ver as obras de arte sem preconceitos académicos ou valorizações subjectivas.

Como demonstraram Carlo Ginsburg e Enrico Castelnuovo em Centro e periferia (1979), tanto a resistência como o atraso coexistem na periferia com graus e significados distintos, já que, se este último reflecte uma postura subordinada, passiva, aquela mostra, pelo contrário, uma atitude activa, interligada a uma certa noção consistente de resistência. No campo artístico nacional, verifica-se como o mercado das artes esteve sempre apto a reelaborar contraposições e alternativas ao estímulo que do «pólo central» se ofereceu, resistindo a modelos de novidade não só porque os recursos necessários para os gerar pareciam inatingíveis mas também porque a «periferia» possui reservas de identidade que crê suficientemente atractivas para que certas soluções continuem a prevalecer. 

    Recorrendo na aula a alguns «estudos de caso» no campo da arquitectura, escultura e pintura portuguesa do Renascimento, do Maneirismo e do Barroco, analisam-se aqui várias alegorizações da arte da Pintura e algumas manifestações de vanguarda, de continuidade e de reelaboração, com exemplos de obras entre Lisboa, Viseu, Évora, Santarém e alguns ‘focos’ regionais, que abrem pistas para um estudo globalizante das várias situações de ‘centro relativo’, de ‘periferismo passivo e de ‘periferismo activo’.  Sem se perder de vista o postulado de Pierre Francastel ao recomendar como ofício primeiro da História da Arte ‘je propose qu’on cherche’ -- que foi, e é, lema de toda a produção crítica de José-Augusto França, o maior e mais internacional dos historiadores de arte portugueses --, a micro-história da arte coloca o objecto de análise artística num plano superior de exigência, uma questão permanente.



BIBL.:

Carlo Ginzburg e Enrico Castelnuovo, «Centro e periferia», in Storia dell’arte italiano, Einaudi, Turim, 1979 (trad. portuguesa, Carlo Ginzburg, A Micro-História e outros ensaios, Difel, Lisboa, 1989).

Carlo Ginzburg, Il formaggio e i vermi: Il cosmo di un mugnaio del '500, Milano, Einaudi, 1976 (trad. portuguesa: O Queijo e os Vermes, Lisboa, Companhia das Letras, 2007).

Peter Burke, (trad. brasileira: O que é História Cultural ?, Rio de Janeiro, ed. Zahar, 2005, pp. 60-61).


O Formalismo de Giovanni Morelli.

4 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


O FORMALISMO de GIOVANNI MORELLI (1816-1891). Uma Teoria assente no primado da Forma como base canónica de identificação de estilemas. Corrente reaccionária ou, pelo contrário, imprescindível para a boa prática da História da Arte ?

O Formalismo, que deve a Morelli o seu prestígio, foi sempre avaliado em termos extremados: ora como o próprio fim da História da Arte, ora como a sua negação, ou seja, um entrave aos reais objectivos da própria disciplina, fosse ela documental, ou laboratorial, ou de contextulização histórica, ou de estudo de mercado, ou iconológica, a semiótica, etc. A verdade é que, sem saber ver, a História da Arte não pode progredir. E muita da História da Arte que se reclamou anti-formalista, de facto, não sabia ver…O que leva a considerar que um retorno a Morelli, como se advoga nos nossos dias, longe de ser uma constatação de derrota, é sim a prova de que a nossa disciplina só pode avançar numa perpectiva de globalidade se não existirem estigmas de nenhuma espécie.

O Formalismo nasceu com o historiador e arqueólogo, helenista e esteta alemão Johann Joachim Winckelmann (Stendhal, 1717-Trieste, 1768), que foi o primeiro autor a estabelecer distinções entre arte clássica -- grega, greco-romana e romana --, o que seria decisivo para o surgimento e ascensão do Neoclassiciamo durante o século XVIII pleno. Winckelmann foi também um dos fundadores da arqueologia científica moderna e o primeiro a aplicar de forma sistemática categorias de estilo à História da Arte. É geralmente considerado o pai da História da Arte formalista. A obra de Winckelmann Geschichte der Kunst des Alterthums  (1764), reconhecida como a sua maior contribuição para a História da Arte ocidental, descreve a Arte Grega e os princípios em que assentava, apresentando uma imagem efusiva de um tempo político, social e cultural que favorecia a criação. A ideia fundamental da sua teoria é que o objectivo da arte é a beleza e que o artista, ao seleccionar a partir da natureza, a modifica e combina com a sua imaginação para criar o padrão ideal, caracterizado pela "simplicidade nobre e grandeza serena“, padrão ideal em que as proporções são mantidas e as partes não podem  quebrar a harmonia do conjunto…

O método morelliano é baseado em pistas oferecidas a partir dos detalhes: Deus mora no pormenor.É preciso, dizia Giulio Carlo Argan (1909-1992) muito mais tardeusar o formalismo na nossa diciplina: saber olhar e ver, e interpretar em diálogo pleno. História e crítica da arte são faces da mesma moeda, trata de obras que são sempre contemporâneas aptas para a fruição integral do e no nosso tempo. Somos fruidores comprometidos. A arte anseia por integralidade de olhares. A arte tem essa capacidade extraordinária de assumir dimensão trans-contemporânea nas infinitas capacidades de suscitar visões críticas (ontem, hoje, amanhã), mesmo que a cadência de modas, gostos, valências, critérios de aferição, imponha bitolas valorativas distintas...   Tudo ganha sentido nos sentidos, e é plausível sonhar, perceber e, no campo da fé, crer. O estudo da arte sacra proporciona saberes históricos, estéticos, iconográficos, ideológicos, coisas da específica ordem do tempo, da razão, do gosto e da encomenda, sentidos iconológicos, simbólicos, espirituais, parcelas de identidade que formam nexos, cadeias de referência, laços de memória, afectos que perduram e se renovam.Como escreveu Carlo Ginzburg, o método morelliano compara o historiador da arte a um detective: «cada um deles descobre, a partir de pistas não percebidas por outros, o autor de um caso de crime ou de uma pintura». Esses traços do inconsciente criativo, num panejamento, num detalhe fisionómico, num modo de tratar um ornamento, ou as figuras secundárias de uma composição, dificilmente serão imitados: ora, uma vez decifrados, servirão como impressões digitais na cena. A identidade do artista é expressa de forma mais confiável pelos detalhes. 

É o Formalismo de Giovanni Morelli (1816-1891) que vai dar plena eficácia, no último terço do século XIX e durante parte do XX, a essa metodologia de trabalho que consiste na atenção micro-descritiva. Considerado o pai do Formalismo como método da História da Arte, Morelli desenvolveu entre 1874 e 1876, sob o pseudónimo de Ivan Lermolieff, um método de crítica de obras de arte assente apenas e só no estudo das formas. Morelli buscava identificar autores e características de estilo artístico através de uma análise comparatista e formal minuciosíssima, conferindo a maior atenção aos detalhes. Este método passou a ser conhecido como morelliano e serviu de base para a pesquisa indiciária.O método morelliano tem raízes próximas na própria disciplina da Medicina de Morelli, com a identificação de doenças por meio dos sintomas, por mais triviais que aparentem ser. Morelli desenvolveu o seu método estudando as obras de Botticelli e aplicano-o a um aluno desse mestre, Filippino Lippi.  A técnica foi desenvolvida em Die Werke Italienischer Meister, em 1880, e com um enigmático pseudónimo, Ivan Lermolieff, que na altura gerou muitas polémicas. Em 1862, Giovanni Morelli trabalha junto do crítico de arte Cavalcaselle e  faz um inventário da arte da Itália central, aperfeiçoando o método formalista. Em 1890, conhece Bernard Berenson, e experimentam nova base formalista para a História da Arte, mas enquanto Morelli se concentrava nos detalhes, com base científica e comparativa, Berenson buscava mais os contextos históricos.O grande antagonista de Morelli, o historiador da arte Wilhelm von Bode, chegou a falar da propagação de uma «epidemia, a Lermolieffmania»… após o misterioso estudioso russo (?) Ivan Lermolieff publicar textos em absoluto pioneiros na tradução alemã de um igualmente inexistente Johannes Schwarze, residente do imaginário Gorlaw, ou seja, Gorle, perto de Bergamo. •Tudo gerou uma espécie de lenda em torno de Morelli. O conhecimento da sua obra e do seu método foi depois desenvolvido por Bernard Berenson (que ainda conheceu Morelli em 1890). Na primeira geração de eruditos seguidores incluem-se Gustavo Frizzoni, Jean Paul Richter, Adolfo Venturi e Constance Jocelyn Foulkes. A «escola de Morelli» vai ser introduzida em Inglaterra em 1893 com a tradução do  magno livro de 1880. A autoridade do método vai vingar, desde logo, nos estudos arqueológicos em torno dos vasos gregos e da escultura assírio-babilónica, num processo que permitiu validar cronologias, comparar estilemas e, até, excluir réplicas, cópias ou falsos… Especialistas de arte clássica e moderna como John Pope-Hennessy, Brunilde Sismondo Ridgway, Joseph Archer Crowe e Giovanni Battista Cavalcaselle contam-se entre os seguidores do método indiciário criado por Morelli, a busca do indício que conduz à identificação de uma obra, um autor ou um estilo. O facto de investigar, pela via do detalhe, o inconsciente criativo, levou Freu a lê-lo com atençã, e a citá-lo.  Tal como R. Wollheim, no estudo "Giovanni Morelli and the origins of scientific connoisseurship", On Art and the Mind: Essays and Lectures, 1973.


• A valência aurática que define o território das artes não desaparece pois as obras de arte são de per si trans-contemporâneas. O encontro que temos com a arte é agora», disse Frances Morris, directora da Tate Modern: «As obras de arte não são artefactos arqueológicos: a experiência que desencadeiam é única e singular» (…); «é muito libertador pensar que a História da Arte linear escrita por um determinado conjunto de académicos ocidentais é apenas e só uma narrativa entre outras. Quando pensamos na arte australiana aborígene é evidente que encontramos ali uma compreensão inteiramente diferente da nossa do que seja o tempo ou, por exemplo, o sonho». Por isso, mais do que aprender com os livros, catálogos e artigos que falam de artes e artistas, o que importa mesmo é o modo íntimo com que vemos as obras: «encorajo toda a gente a ler a História da Arte em livro, mas o encontro de cada um com a arte é agora, não é na história». É, sim, na nossa própria história…

O Formalismo implica, hoje, o assento iconográfico através de uma leitura organizada: «Faire un catalogue ne revient pas à un pur et simple savoir des objects logiquement empruntés. Car il y a toujours le choix entre dix manières de savoir, dix logiques d’agencement, et chaque catalogue particulier résulte d’une option – implicite ou non, consciente ou non, ídéologique en tout cas – à l’égard d’un type particulier de catégories classificatoires. En deçà de catalogue, l’attribution et la datation elles-mêmes engagent toute une ´philosophie’ – à savoir la manière de s’entendre sur ce que c’est une ‘main’, la paternité d’une ‘invention’, la regularité ou maturité d’un ‘style’, et tant d’autres catégories encore qui ont leur propre histoire, ont été inventées, n’ont pas toujours existé. C’est bien l’ordre du discours qui mène, en histoire de l’art, tout le jeu de la pratique» (Georges Didi-Huberman, Devant l’image. Questions posées aux fins d’une histoire de l’art,  Paris, éd. Minuit, 1990).

Mas então: se a Iconologia que interpreta o sentido das obras (Aby Warburg, Cassirer, Panofsky, Didi-Huberman), a Antropologia da Arte (Hans Belting) que  viaja no seu mundo de afectos, a globalização da artworld (Arthur C. Danto) que destaca a qualidade trans-contextual da arte como coisa em permanente mutação e se abre a um comparatismo sem limites, a Sociologia da arte (Frederick Antal) que valoriza clientes, mercados e gostos, a Psicologia do Inconsciente Criativo (R. Arnheim), que alarga os ‘géneros’ dadisciplina, etc, etc, será que acabou pra a História da Arte o tempo do Positivismo documental e formalista ? Uma segunda morte de Morelli ? Ou… será que é a questão que se encontra mal formulada ? Porque não assumir que existe um História da Arte capaz de entender esta totalidade em permanência que é o mundo da criação ? 

SABER VER. A História da Arte é fundamental para a análise das obras de arte, articulando num ponto de vista unívoco os dados que os métodos laboratoriais e a investigação histórica e documental estabelecem e reúnem a seu propósito. É da conjugação de tais análises que se pode saber mais sobre a origem, valia, alterações, usos, sentidos e memórias acumuladas  de uma obra de arte. Por isso, os métodos de análise física são essenciais: estabelecem informações sólidas sobre materiais, técnicas, suportes, produção, etc. Não serão o novo Deus, tal como o documento de arquivo não o era (ou é), nem a mera descrição formal de per si (como pensavam os morellianos): a obra de arte vai sempre a ser, em última instância, o grande documento !

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A vitalidade do formalismo à luz de novos saberes e técnicas exprime-se no recente estudo de técnica visual computacional de Christopher J. Nygren, On Giovanni Morelli, or How to See a Renaissance Painting Computationally.

•Le opere dei maestri italiani nelle gallerie di Monaco, Dresda e Berlino, versione italiana, Bologna, Zanichelli, (18866)Kunstkritische über italienische Malerei, Leipzig, Brockhaus, (1890-1933).

Della pittura italiana: studi storico-critici Milano, F.lli Treves, (1977).

ValentinaLocatelliMetamorfosi romantiche: Le teorie del primo Romanticismo tedesco nel pensierio sull'arte di Giovanni MorelliPasian di Prato, Campanotto, 2011.
Edgar WindArte e anarchia, Milano, Adelphi, 1986, pp. 53–74.•
Federico Zeri-Federico Rossi,  La raccolta Morelli, Bergamo, Accademia Carrara, 1986.
Matteo Panzeri- Giulio Orazio BraviLa figura e l'opera di Giovanni Morelli, Bergamo, Biblioteca Civica Angelo Mai, 1987. 
Revista G. Morelli (em curso de publicação).

Carlo GinzburgSpie. Radici di un paradigma indiziario, in  Crisi della ragione, a cura di Aldo Gargani, Einaudi, 1979, pp. 57–106.


Arte Outsider e Psicologia da Arte.

2 Fevereiro 2021, 15:30 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A Loucura na Arte e a descoberta do mundo Interior: tópicos.

        Em 1974, António Reis realiza o filme Jaime, apoiado pelo Centro Português de Cinema. Jaime Fernandes, falecido em 1969, nasceu em Barco (Beira Baixo). Trabalhador rural, aos 38 anos foi internado por três décadas no Hospital Miguel Bombarda, como esquizofrénico-paranóico. Como pintor e desenhador, impôs-se: bastaram cinco anos para considerarem o camponês um génio em artes plásticas  Dois anos após a morte de Jaime, António Reis descobriu um desenho seu num gabinete clínico do Hospital e partiu à investigação., reunindo mais cem desenhos do autor e retratando a sua existência. 

         A obra fundamental, e pioneira, foi:  Artistry of the Mentally Ill: A Contribution to the Psychology and Psychopathology of Configuration, 1922, de Hans Prinzhorn (ed. Eric Von Brockdorff (trad.), 1972). A colecção Peinzhorn de arte de artistas alienados mentais em Heidelberg e a repressão nazi. Em 1920 Prinzhorn (1866-1936) reúne na Clínica Psiquiátrica de Heidelberg 5. 000 peças de doentes mentais provenientes de asilos de vários pontos da Europa. Em 1922  escreve a sua obra mais conhecida Artistery of the Mentally Ill onde analisa o trabalho de dez doentes psiquiátricos (the schizophrenic masters) seleccionados a partir da colecção de Heidelberg. A Colecção Prinzhorn: August Natterer, Franz Pohl, Heinrich Anton Müller...

         A onda iconoclástica da Arte degenerada (entartete Kunst, termo utilizado pelo regime nazi para atacar a Arte Moderna, banida por ser não-germânica judia-bolchevique. Os artistas foram reprimidos e muitas obras destruídas. Arte Degenerada foi o título da exposição de Munique, de 1937, atacando as obras modernistas e destinada a inflamar a opinião pública alemã. Enquanto os estilos modernos de arte eram proibidos, expostos e destruídos, assim como as artes as minorias, dos doentes mentais, etc, do os nazis promoviam pinturas e esculturas de estilo formal, académico e pró-III Reich, nas quais se exaltava a pureza racial e a obediência, a xenofobia e o ódio anti-judaico.  

         O Palácio Ideal de Ferdinand Cheval (1936-1924) em Hauterives (Drôme): Um sonho esculpido em pedra (c. 1890-1922). O impacto na Modernidade: André Breton, a visita ao Palácio Ideal e o Manifesto Surrealista. A influência em Max Ernst e Picasso. A descoberta do mundo interior A interiorização do olhar e A diluição das fronteiras entre o interior e o exterior, entre o espaço pictórico e o espaço real. Momentos significativos do encontro entre psicologia e reflexão sobre arte. A noção de inconsciente em Jung e Freud. O inconsciente individual e colectivo. (exs: 1910: Sigmund Freud, Uma Recordação de Infância de Leonardo da Vinci; 1914: Sigmund Freud, O Moisés de Michelangelo; 1932: Carl Gustave Jung, «Picasso» in O Espírito na Arte e na Ciência).

         O pintor Jean Dubuffet e a grande Collection d’Art Brut criada em 1945, onde reúne um dos acervos mais significativos de arte realizada em contexto psiquiátrico.Dubuffet definiu nos seguintes termos o conceito de Arte Brut Nous entendons par-là des ouvrages exécutés par personnes indemnes de culture artistique […] Nous y assistons  à l’opération artistique toute pure, brute, réinventée dans l’entier de toutes ses phases par son auteur, à partir seulement de ses propres impulsions. De l’art donc où se manifeste la seule fonction de l’invention […].» (L’homme du commun à l’ouvrage, 1973). A obra de Adolf Wölfi, de Aloïse Corbaz, de Carlo Zinelli, etre outros exemplos de artista brut...

        Uma referência ao trabalho da psiquiatra Nise da Silveira, com sua formação junguiana, cria em 1949 um atelier de arte na Secção de Terapia Ocupacional do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, e em 1951 funda o Museu das Imagens do Inconsciente onde expõe as obras dos seus pacientes.

        Enfim, analisa-se e historia-se o caso nacional do Museu o Hospital Miguel Bombarda: a obra de Jaime Fernandes e a Arte Outsider, termo que veio a impôr-se e é hoje o mais consensual para definir a produção artística destes artistas «sem escola».  Uma palavra, enfim, para Van Gogh e para Jackson Pollock, viagens ao inconsciente.


Cf., além das fontes e autores citados, uma das teses de Mestrado defendidas nesta Faculdade, de Sara Gomes da Silva, sob título A Loucura na Pintura Contemporânea – A Descoberta do Mundo Interior, 2013.