Sumários

Novos conceitos teóricos operativos: sentidos da Cripto-História da Arte e do Iconoclasma

13 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O PODER DAS IMAGENS E A PRÁTICA DA ICONOCLASTIA NA CULTURA IMAGÉTICA 

O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária…

Em nenhuma outra época de incremento da produção artística religiosa como sucedeu nos séculos da Contra-Reforma, a imagem pintada e esculpida atingiu um tão elaborado sentido de utilidade didascálica. As virtudes da imagética destinada ao culto extravasavam então a própria consciência da sua qualidade formal, sempre recomendada, para abarcar também, e sobretudo, intrincadas complexidades doutrinárias e propagandísticas, aptas a clarificar os códigos de representação e a torná-los úteis na sua relação com as comunidades do seu tempo e do futuro. O conceito de arte senza tempo que se entretece no pensamento, na palavra e na pena dos teólogos católicos dos primeiros anos da Contra-Reforma, e que mereceu a Federico Zeri brilhantes reflexões reunidas num ensaio incontornável, desenvolve-se na segunda metade do século XVI privilegiando uma linguagem artística virtuosa, clara, eficaz, apta a exaltar os sentimentos religiosos e, por isso, contrária tanto aos desvios paganizados do Renascimento como aos excessos e ousadias formais do Maneirismo. É certo que a consciência de uma nova era de Catolicismo triunfante e eterno, sob signo da Roma Felix de Sisto V, se desenvolveu apoiada na vontade esclarecida de renovar as fórmulas artísticas, tanto na sua função como na sua qualidade, em nome de um crescente naturalismo que a pintura do fim do século XVI e do pleno século XVII viria a adoptar de modo generalizado, a partir de Florença e de Roma, como modelo preferencial depois seguido em todos os espaços da cristandade, dentro e fora da Europa. Todavia, se a verificação do comportamento oficial da Igreja face às imagens de culto é fácil de entrever – em nome da renovação, da clarificação e da exaltação --, torna-se hoje mais difícil de reconstituir o verdadeiro sentido dessa absoluta reforma operada no campo artístico do mundo cristão, quando entretanto se foi perdendo o uso social da linguagem simbólica que dava corpo a tais produções e quando é essa própria linguagem simbólica que viu diluído o seu significado original pela des-memória das intenções patentes no acto de criação. O trabalho a fazer cabe, portanto, a equipas interdisciplinares, envolvendo os historiadores de arte, através dos levantamentos de campo e das análises de obras à luz da Iconologia, e os investigadores da História da Igreja, através de estudos de caracterização das correntes de espiritualidade e de piedade popular e dos mecanismos de propaganda. A perda do uso simbólico das imagens religiosas dos séculos XVI e XVII, na sua dimensão sígnica, sintáctica, ideológica e conceptual, impõe hoje o aprofundamento de estudos de reconstituição, passíveis justamente de ser cumpridos através do enfoque iconológico.

A compreensão – por exemplo – das razões de práticas iconoclásticas dentro e fora da Igreja, da hierarquização dos níveis de propaganda e de esclarecimento, das estratégias de empolamento de certos acontecimentos e «histórias sagradas», das lógicas de exaltação ou de condenação deste ou daquele temário, obrigam a estudar em profundidade as complexidades e as transcendências dos códigos de representação de um tempo determinado, à luz da sua ideologia. A dificuldade maior está precisamente no facto de se ter verificado a perda de uma consciência social que nos torna impotentes face ao que certas representações artísticas da Contra-Reforma nos comunicam, como se os seus símbolos tivessem deixado de funcionar, assim como os arquétipos psicológicos e morais que elas veiculavam. Essa a dificuldade maior dos estudos de História da Arte, independentemente da época histórica em apreço, pois do que se trata de analisar sempre através das formas estéticas é a linguagem visual de símbolos que muitas vezes já perdeu sentido. Não obstante, a sobrevivência cíclica das dimensões simbólicas nas formas de representação, intuída por Aby Warburg ao definir o conceito de Nachleben como memória inconsciente das formas transmigradas, permite pôr a tónica dos estudos artísticos no terreno da Iconologia e apurar, a essa luz, quais os significados ocultos e os códigos de representação das obras de arte que nos chegaram sob o manto de espesso mistério.

Por isso as obras de arte sofrem, alteradas, ofendidas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção. Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela disciplina. As medidas de censura foram uma constante no processo criativo dos artistas, ao longo dos séculos, com ênfase da Idade Moderna (mas também nos nossos dias…). No século XVI, atingiu níveis inimagináveis, por efeitos da Reforma protestante, na Europa, e das conquistas dos novos Impérios, no Oriente e nas Américas. Com a Contra-Reforma católica, valores com o decorum e a fidelidade aos cânones de Trento acentuam no mercado das artes esse aspecto de contrôle, de censura e de combate a todos os desvios que pudessem ser vistos como heterodoxos. A pintura, a escultura, o azulejo e outras artes dos séculos XVI, XVII e XVIII dão bom testemunho desse tónus esconjuratório e de estremada vigilância de costumes da parte de quem comprava e consumia obras de arte (sobretudo sacras).

Assim, as manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso (nas colónias, do Brasil à Índia) e na redobrada vigilância do modo como agiam os artistas e os detentores de «imagens sagradas», ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentuava em nome do combate ao paganismo e à idolatria, contra manifestações religiosas autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa)…

Existiu sempre da parte dos homens – e continua a existir – uma deriva iconoclástica que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos:

Um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador

um iconoclasma destruidor do «outro»

um iconoclasma correctivo por razões morais

um iconoclasma correctivo por razões políticas

um iconoclasma correctivo por razões estéticas

um iconoclasma de intuito propiciatório

um iconoclasma de esconjuração do medo

um iconoclasma de apagamento da memória do «outro»

um iconoclasma de exegese

um iconoclasma de afirmação de «cultura superior»

um iconoclasma de afirmação utópica

Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias, para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquêsdestas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem ! Le Spirituel dans l’art de Kandinsky (1910) é exemplo da reflexão sobre forma e imagem segundo concepção filosófico-religiosa que pensa o código imagético como testemunho de memórias ancestrais e como testemunho de pontos de vista proféticos, rituais ou mágicos. Os regimes religiosos são quase sempre favoráveis (mesmo que de modo não declarado) ao uso da imagem, à sua sublimação do real e ao seu poder de sedução e/ou de intervenção. A dimensão do ‘sagrado’ percorre sempre, de modo mais ou menos inconsciente, o território da representação artística.

Os estudos de iconografia de arte religiosa da Idade Média têm sido levados a cabo com incidência, desde os ensaios fundamentais de Émile Mâle, quer em torno da narratividade dos  programas hagiológicos tratados, quer na verificação da sua distribuição e estatística, quer na definição de códigos e atributos simbólicos, ou através da verificação mais ou menos fiel de estampas (em geral ítalo-flamengas), quer ainda em termos da especificidade de artistas e de «escolas». Tais abordagens são essenciais e abrem pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, de definição de gostos dominantes, etc, que vigoram na paisagem artística das épocas em apreço. Mas falta, também, saber analisar – com recorrência maior à Iconologia – as obras de arte (neste caso as da Contra-Reforma portuguesa) atentando num conjunto de aspectos e de procedimentos que, a ser cumprido com exaustividade, virá com toda a certeza iluminar-nos sobre um tema tão caro como é o das estratégias da representação imagética e das suas implicações sociais segundo o figurino dominante. Para quem entende a História da Arte como uma área científica dotada da mais vasta interdisciplinariedade, vocacionada para a prescrutação tanto quanto possível integral das obras de arte particulares, vistas como discursos estéticos fascinantes e inesgotáveis e marcadas por lógicas de programa interno e interdependências eu inevitavelmente mantêm com contextos ideológicos determinantes, esse será sempre o caminho de pesquisa a percorrer.

 

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O método cripto-artístico e as suas bases teórico-metodológicas

8 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Uma História da Arte carecente de novos conceitos e linhas de investigação.

     Face ao que se afirmou, não basta à História da Arte estudar as existências artísticas e, a partir delas, reconstituir contextos e situações específicas da lenta evolução dos ciclos de produção artística. São precisas também as referências contextualizadas sobre as perdas reconhecíveis, ou seja, os monumentos e obras de arte de que há conhecimento de terem em algum momento existido, ou que sobrevivem fragmentárias, ou em ruínas. As chamadas obras de arte mortas também têm valor testemunhal, e é imperioso que sejam incluídas no vasto processo comparatista e globalizante que as análises científicas reclamam. Impõe-se alargar na agenda de pesquisa, por isso, a dimensão de uma Cripto-História da Arte apta a analisar os fragmentos, os indícios, as obras total ou parcialmente desaparecidas e, até, aqueles acervos artísticos reduzidos a um mero projecto idealizado e que as circunstâncias de encomenda não permitiram que alguma vez chegassem a ter existência. Por certo, as bases conceptuais da nossa disciplina ganharam em abrangência e grau de responsabilidade ao recusarem a visão tradicionalista de uma História da Arte restringida a alguns nomes considerados «maiores» e a algumas peças consideradas «obras primas» e assim limitando os seus patrimónios ditos relevantes a uma mera bolsa de eleição. Assim se passou no campo nacional, onde a arte que importava estudar e proteger se restringiu, durante muito tempo, ao Românico da Reconquista cristã, ao Manuelino da ‘idade de ouro’ dos Descobrimentos e ao Barroco quinto-joanino da era dos diamantes e ouro brasileiros. Ultrapassámos já, graças ao amadurecimento da nossa disciplina, essa fase de visões auto-menorizantes em que, por via de uma perspectiva sectorial desmemorizada, muitos patrimónios se perderam ou foram gravemente depauperados, sem que deles restasse qualquer conhecimento. Mas os estragos ainda podem ser, muitos deles, contabilizados. Foram ou são fruto de megassismos, conflitos bélicos, incêndios, roubos sem remissão mas, também, de pseudo-restauros ‘puristas’, da falta de inventariação e controlo, do desinteresse manifesto por épocas inteiras da nossa produção artística, ou da incapacidade de intervenção das tutelas.

     Ora a visão de conjunto a partir de uma base micro-artística tendeu a generalizar-se, permitindo que, nos nossos dias, a análise comparada dos cânones e demais modelos criativos institucionalizados, das miscigenações em contexto trans-continental, dos graus de influência estética, ou das meras relações entre centros e periferias, esteja entre as exigências basilares da prática do historiador de arte. Todavia, é esta mesma História da Arte que se sabe renovar em bases teórico-metodológicos e instrumentos operativos pluri-disciplinares a mesma que dificilmente abarca no seu seio o estudo das tias obras de arte mortas, como se elas não fizessem parte intrínseca do mesmo panorama global que se pretende caracterizar em termos artísticos. Ora, sendo a acção da iconoclastia uma das razões fortes para o depauperamento das existências, necessário se torna começar a atentar mais e melhor nessas práticas destrutivas, sempre presentes no historial das sociedades ao longo dos séculos, e precisar as suas razões. Fácil será restringir hoje a condenação do iconoclasma às barbáries praticadas nos nossos dias pelo Daesh nas guerras de interesses que assolam o Médio Oriente; mais difícil, por certo, será enquadrar essas acções destrutivas no vasto caudal de devastações que preenchem os tempos da História e em que elas podem ser explicadas, seja nas conturbações religiosas da época carolíngea, seja durante as guerras que devastaram a Europa no tempo da Reforma protestante, seja no  etnocídio perpetrado no âmbito das conquistas coloniais operadas na América espanhola e na Índia portuguesa, por exemplo. 

     Podem perceber-se, assim, os modos como as manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia se digladiaram entre si – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (política, religiosa, laudatória ou outra). A consciência de que as obras de arte reúnem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso (nas colónias portuguesas, do Brasil à Índia, por exemplo) e na redobrada vigilância do modo como agiam os artistas e os detentores de «imagens sagradas», ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentuava em nome do combate ao paganismo e à idolatria, contra manifestações religiosas autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa). Muitos são os casos conhecidos de vandalização de património, sem que a atenção dada ao tema (ou às parcas ruínas que sobrevivem à sanha destrutiva quando se trata de edifícios históricos e monumentos) mereça o destaque devido. Merece ser citado a propósito, em síntese, o aviso do grande geógrafo Orlando Ribeiro, atento aos «destroços, silenciosos mas dignos, que desafiam o tempo e que, quase sempre, se conformam com um destino traçado, que é o desaparecimento pura e simples», ao lembrar-nos que «há duas formas de olhar para as rápidas transformações por que o mundo passa: muitos vêem sobretudo o que muda, outros procuram surpreender o que, a despeito delas, permanece». Ou seja, se a inutilidade é o destino inexorável de muitas obras de arte que, em novas conjunturas históricas, foram perdendo sentido, a verdade é que se torna imperiosa a sua integração na agenda de preocupações de patrimonialistas, museólogos, conservadores-restauradores e historiadores de arte.

     O estudo das obras de arte (e restringimo-nos agora aos séculos da Idade Moderna portuguesa) torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, desmemorizadas por falta de registo, e desidiologizadas por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que arvorou, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária. As sangrias operadas no tecido histórico das cidades não podem deixar de ser integradas nesse âmbito, constatando-se que ocorreram fosse por razões especulativas (venda de espaços com arrasamento dos edifícios históricos e dos seus acervos), fosse por causa do alargamento viário (arrasamento do convento seiscentista do Santo Crucifixo ou das Inglesinhas, em Lisboa, por exemplo, com perda do seu recheio [10]), ou por deslocados critérios puristas de «restauro» (destruição do antigo retábulo quinhentista da capela-mor do mosteiro de Alcobaça para repor a pretensa ‘unidade de estilo’ da abside gótica). As acções destrutivas da DGEMN nos anos 30, 40 e 50 do século passado mereceram já a devida atenção, à luz dos critérios redutores que eram dominantes e foram utilizados nas intervenções ‘puristas’ de então. 

     Se é certo que os responsáveis pela salvaguarda do património não ignoram os princípios que a Carta de Veneza consensualmente assumiu nesse domínio, bem como o valor da autenticidade e outras  linhas de orientação da UNESCO para preservar a memória comum, a verdade é que a prática da DGEMN e demais organismos especializados abriu  campo à descaracterização e destruição, em nome do ‘purismo de estilo’, privilegiando o Gótico, por exemplo, em detrimento do Barroco. Da DGEMN ao IPPAR, privilegiou-se também o o restauro dos castelos, dos grandes monumentos religiosos e civis, ou a adaptação de velhas ruínas conventuais a unidades hoteleiras, dando-lhes novo uso e abrindo campo a uma nova arquitectura de referência, mas a realidade oculta deste património nacional ficou como que condenada a uma asfixia sem solução nem remédio que lhe valesse. O historial de perdas de monumentos e obras de arte portuguesas é imenso e merecia, além de ser elencado criticamente, que as razões invocadas para a destruição fossem analisadas com máximo rigor. Em nenhuma outra época de incremento da produção artística religiosa como sucedeu nos séculos das Reformas (católica e protestante), a imagem pintada e esculpida atingiu um tão elaborado sentido de utilidade didascálica. As virtudes da imagética destinada ao culto extravasavam então a própria consciência da sua qualidade formal, sempre recomendada, para abarcar também, e sobretudo, intrincadas complexidades doutrinárias e propagandísticas, aptas a clarificar os códigos de representação e a torná-los úteis na sua relação com as comunidades do seu tempo e do futuro. O conceito de arte senza tempo que se entretece no pensamento, na palavra e na pena dos teólogos católicos dos primeiros anos da Contra-Reforma, e que mereceu a Federico Zeri brilhantes reflexões reunidas num ensaio incontornável, desenvolve-se na segunda metade do século XVI privilegiando uma linguagem artística virtuosa, clara, eficaz, apta a exaltar os sentimentos religiosos e, por isso, contrária tanto aos desvios paganizados do Renascimento como aos excessos e ousadias formais do Maneirismo.

     É certo que a consciência de uma nova era de Catolicismo triunfante e eterno, sob signo da Roma Felix de Sisto V [14], se desenvolveu apoiada na vontade esclarecida de renovar as fórmulas artísticas, tanto na sua função como na sua qualidade, em nome de um crescente naturalismo que a pintura do fim do século XVI e do pleno século XVII viria a adoptar de modo generalizado, a partir de Florença e de Roma, como modelo preferencial depois seguido em todos os espaços da cristandade, dentro e fora da Europa. Todavia, se a verificação do comportamento oficial da Igreja face às imagens de culto é fácil de entrever – em nome da renovação, da clarificação e da exaltação --, torna-se hoje mais difícil de reconstituir o verdadeiro sentido dessa absoluta reforma operada no campo artístico do mundo cristão, quando entretanto se foi perdendo o uso social da linguagem simbólica que dava corpo a tais produções e quando é essa própria linguagem simbólica que viu diluído o seu significado original pela des-memória das intenções patentes no acto de criação. O trabalho a cumprir neste campo compete, pois, ao foro interdisciplinar, envolvendo os historiadores de arte, através dos levantamentos de situações de perda e das análises de obras, com estudos de caracterização das sociedades, das correntes de espiritualidade e piedade popular e dos mecanismos de propaganda imagética. A perda do uso simbólico das imagens sacras dos séculos XVI e XVII, na sua dimensão sígnica, sintática, ideológica e conceptual, impõe hoje o aprofundamento de estudos de reconstituição, passíveis justamente de ser cumpridos através do enfoque iconológico e cripto-artístico.

     Entre os instrumentos de que dispõem a História da Arte e as Ciências do Património conta-se, assim, o conceito operativo de Cripto-História de Arte, que assenta no estudo das obras de arte fragmentárias e mortas, ou seja, no papel que cabe aos indícios (mesmo os desaparecidos) para caracterização histórica, artística, cultural e estilística, dos vários «tempos» patrimoniais. Parte-se do princípio de que esta disciplina científica não deve ser restringida ao estudo das obras vivas, ou seja, os grandes monumentos, edifícios classificados e peças de valia museológica, mas também ao estudo daquelas muitíssimas obras que já desapareceram, por incúria ou destruição. Acresce a utilidade de se estender esta análise dialéctica assente na noção de fragmento à essência de todo o património visto na sua globalidade, ao estudo daquele que persiste truncado e, até, a projectos artísticos que quedaram inacabados ou não chegaram mesmo a realizar-se. Conceito com útil verificação prática pela comunidade científica, insere-se dentro de um quadro de pesquisa definido em vários níveis de abordagem (cripto-analítico, dedutivo, reconstitutivo, ‘encreativo’). Trata-se de visão alargada em termos teórico-metodológicos, assente na base de dados inventariais como instrumento maior, integrando as perdas patrimoniais no ‘corpus’ exaustivo de bens, ainda que fisicamente já não existam. Tal como a prescrutação micro-artística integrada à sua dimensão de existências em contexto periférico, o conceito alarga este esforço de revalorização ao atentar na valência específica das franjas da paisagem construtiva em espaços de periferismo, incluindo a esfera dos patrimónios a preservar na dimensão por demais desvalorizada das micro-produções artísticas e evitando muitas das inexoráveis perdas que se sucedem no tempo. Este reforço do testemunho das memórias ausentes, com recurso às 'obras mortas', ajuda a alargar a visão do património remanescente, reforçando o sentimento de fragilidade de que muitas vezes nos esquecemos, aduzindo-lhe memória valorativa e o testemunho acrescido das coisas que, por cataclismos ou incúria, já desapareceram – mas que não deixaram de fazer parte integrante de um tecido que urge reconstituír como testemunho integral de identidades. É por isso que o fragmento da obra parcialmente destruída é fonte essencial de reconstituição das correntes evolutivas do edificado, e assume importância para uma política de gestão integrada (e integral) do Património. Situamo-nos, assim, dentro de novas possibilidades abertas por uma investigação microscópica aplicada às artes, ou seja, com o olhar antropológico de uma História vista de baixo para cima (utilizando-se aqui o conceito marxista de António Gramsci de «classes subalternas»), para melhor se alcançar o âmbito da «circularidade cultural» que o trabalho de Ginzburg perpecciona.     

     As novas gerações de historiadores, críticos de arte, conservadores-restauradores e técnicos de património da era da globalização podem lidar melhor com a ruína envolvente porque aprendem nestas lições, que se tornam de evidenciada utilidade para uma cartografia de registo face à extensão brutal das perdas identitárias e para uma adequada intervenção preventiva. As possibilidades de intervenção de salvaguarda aumentam, também, fidelizadas ao respeito pelo valor da autenticidade tal como define a Carta de Cracóvia [5]. Mas se a história-crítica, na sua utilidade perene, fala com as obras de arte como obras em aberto (assim as definiu Umberto Eco), a verdade é que progrediu com dificuldade no seio de um mundo globalizado. Alargou a capacidade de análise crítica, recentrou atenções regionais, disponibilizou apoios das tutelas, redefiniu o objecto de estudo com enfoque micro-artístico, amadureceu uma visão patrimonialista sem auto-menorizações e reforçou esse entendimento do discurso da arte como fenómeno inesgotável e trans-contemporâneo. O dilema que permanece é que a força de uma consciência de saberes impõe sempre novas obrigações dificilmente compagináveis com o fenómeno de descaracterização dos tecidos históricos, com o fanatismo sectário ou com a crueza destrutiva das guerras.


 BIBLIOGRAFIA

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Questões de poder e fragilidade das obras de arte: o iconoclasma e o seu processo de percepção e análise

6 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O PODER DAS IMAGENS E A PRÁTICA DA ICONOCLASTIA NA CULTURA IMAGÉTICA DURANTE A IDADE MODERNA

     O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária…

     Em nenhuma outra época de incremento da produção artística religiosa como sucedeu nos séculos da Contra-Reforma, a imagem pintada e esculpida atingiu um tão elaborado sentido de utilidade didascálica. As virtudes da imagética destinada ao culto extravasavam então a própria consciência da sua qualidade formal, sempre recomendada, para abarcar também, e sobretudo, intrincadas complexidades doutrinárias e propagandísticas, aptas a clarificar os códigos de representação e a torná-los úteis na sua relação com as comunidades do seu tempo e do futuro. O conceito de arte senza tempo que se entretece no pensamento, na palavra e na pena dos teólogos católicos dos primeiros anos da Contra-Reforma, e que mereceu a Federico Zeri brilhantes reflexões reunidas num ensaio incontornável, desenvolve-se na segunda metade do século XVI privilegiando uma linguagem artística virtuosa, clara, eficaz, apta a exaltar os sentimentos religiosos e, por isso, contrária tanto aos desvios paganizados do Renascimento como aos excessos e ousadias formais do Maneirismo. É certo que a consciência de uma nova era de Catolicismo triunfante e eterno, sob signo da Roma Felix de Sisto V, se desenvolveu apoiada na vontade esclarecida de renovar as fórmulas artísticas, tanto na sua função como na sua qualidade, em nome de um crescente naturalismo que a pintura do fim do século XVI e do pleno século XVII viria a adoptar de modo generalizado, a partir de Florença e de Roma, como modelo preferencial depois seguido em todos os espaços da cristandade, dentro e fora da Europa. Todavia, se a verificação do comportamento oficial da Igreja face às imagens de culto é fácil de entrever – em nome da renovação, da clarificação e da exaltação --, torna-se hoje mais difícil de reconstituir o verdadeiro sentido dessa absoluta reforma operada no campo artístico do mundo cristão, quando entretanto se foi perdendo o uso social da linguagem simbólica que dava corpo a tais produções e quando é essa própria linguagem simbólica que viu diluído o seu significado original pela des-memória das intenções patentes no acto de criação. O trabalho a fazer cabe, portanto, a equipas interdisciplinares, envolvendo os historiadores de arte, através dos levantamentos de campo e das análises de obras à luz da Iconologia, e os investigadores da História da Igreja, através de estudos de caracterização das correntes de espiritualidade e de piedade popular e dos mecanismos de propaganda. A perda do uso simbólico das imagens religiosas dos séculos XVI e XVII, na sua dimensão sígnica, sintáctica, ideológica e conceptual, impõe hoje o aprofundamento de estudos de reconstituição, passíveis justamente de ser cumpridos através do enfoque iconológico.

     A compreensão – por exemplo – das razões de práticas iconoclásticas dentro e fora da Igreja, da hierarquização dos níveis de propaganda e de esclarecimento, das estratégias de empolamento de certos acontecimentos e «histórias sagradas», das lógicas de exaltação ou de condenação deste ou daquele temário, obrigam a estudar em profundidade as complexidades e as transcendências dos códigos de representação de um tempo determinado, à luz da sua ideologia. A dificuldade maior está precisamente no facto de se ter verificado a perda de uma consciência social que nos torna impotentes face ao que certas representações artísticas da Contra-Reforma nos comunicam, como se os seus símbolos tivessem deixado de funcionar, assim como os arquétipos psicológicos e morais que elas veiculavam. Essa a dificuldade maior dos estudos de História da Arte, independentemente da época histórica em apreço, pois do que se trata de analisar sempre através das formas estéticas é a linguagem visual de símbolos que muitas vezes já perdeu sentido. Não obstante, a sobrevivência cíclica das dimensões simbólicas nas formas de representação, intuída por Aby Warburg ao definir o conceito de Nachleben como memória inconsciente das formas transmigradas, permite pôr a tónica dos estudos artísticos no terreno da Iconologia e apurar, a essa luz, quais os significados ocultos e os códigos de representação das obras de arte que nos chegaram sob o manto de espesso mistério.

     Por isso as obras de arte sofrem, alteradas, ofendidas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção. Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela disciplina. As medidas de censura foram uma constante no processo criativo dos artistas, ao longo dos séculos, com ênfase da Idade Moderna (mas também nos nossos dias…). No século XVI, atingiu níveis inimagináveis, por efeitos da Reforma protestante, na Europa, e das conquistas dos novos Impérios, no Oriente e nas Américas. Com a Contra-Reforma católica, valores com o decorum e a fidelidade aos cânones de Trento acentuam no mercado das artes esse aspecto de contrôle, de censura e de combate a todos os desvios que pudessem ser vistos como heterodoxos. A pintura, a escultura, o azulejo e outras artes dos séculos XVI, XVII e XVIII dão bom yestemunho desse tónus esconjuratório e de estremada vigilância de costumes da parte de quem comprava e consumia obras de arte (sobretudo sacras).

     Assim, as manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso (nas colónias, do Brasil à Índia) e na redobrada vigilância do modo como agiam os artistas e os detentores de «imagens sagradas», ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentuava em nome do combate ao paganismo e à idolatria, contra manifestações religiosas autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa)…

     Existiu sempre da parte dos homens – e continua a existir – uma deriva iconoclástica que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos:

Um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador

um iconoclasma destruidor do «outro»

um iconoclasma correctivo por razões morais

um iconoclasma correctivo por razões políticas

um iconoclasma correctivo por razões estéticas

um iconoclasma de intuito propiciatório

um iconoclasma de esconjuração do medo

um iconoclasma de apagamento da memória do «outro»

um iconoclasma de exegese

um iconoclasma de afirmação de «cultura superior»

um iconoclasma de afirmação utópica

     Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias, para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquêsdestas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem ! Le Spirituel dans l’art de Kandinsky (1910) é exemplo da reflexão sobre forma e imagem segundo concepção filosófico-religiosa que pensa o código imagético como testemunho de memórias ancestrais e como testemunho de pontos de vista proféticos, rituais ou mágicos. Os regimes religiosos são quase sempre favoráveis (mesmo que de modo não declarado) ao uso da imagem, à sua sublimação do real e ao seu poder de sedução e/ou de intervenção. A dimensão do ‘sagrado’ percorre sempre, de modo mais ou menos inconsciente, o território da representação artística.

     Os estudos de iconografia de arte religiosa da Idade Média têm sido levados a cabo com incidência, desde os ensaios fundamentais de Émile Mâle, quer em torno da narratividade dos  programas hagiológicos tratados, quer na verificação da sua distribuição e estatística, quer na definição de códigos e atributos simbólicos, ou através da verificação mais ou menos fiel de estampas (em geral ítalo-flamengas), quer ainda em termos da especificidade de artistas e de «escolas». Tais abordagens são essenciais e abrem pistas sedutoras em termos estilísticos, formais, de definição de gostos dominantes, etc, que vigoram na paisagem artística das épocas em apreço. Mas falta, também, saber analisar – com recorrência maior à Iconologia – as obras de arte (neste caso as da Contra-Reforma portuguesa) atentando num conjunto de aspectos e de procedimentos que, a ser cumprido com exaustividade, virá com toda a certeza iluminar-nos sobre um tema tão caro como é o das estratégias da representação imagética e das suas implicações sociais segundo o figurino dominante. Para quem entende a História da Arte como uma área científica dotada da mais vasta interdisciplinariedade, vocacionada para a prescrutação tanto quanto possível integral das obras de arte particulares, vistas como discursos estéticos fascinantes e inesgotáveis e marcadas por lógicas de programa interno e interdependências eu inevitavelmente mantêm com contextos ideológicos determinantes, esse será sempre o caminho de pesquisa a percorrer.

     Assim, cabe à História da Arte saber analisar, em perspectivas alargadas e pluridisciplinares, temas e questões como as que se seguem:

1.                razões e critérios que regeram a iconoclastia católica, verificada tanto numa dimensão pública, devidamente justificada pelos seus ideólogos (que conduziu à repintura de quadros, picagem de frescos antigos, enterramento de esculturas medievais, alterações impostas na composição de pinturas, proibição de entrada de determinadas estampas, etc etc), quer numa dimensão inconsciente e expontânea (que conduziu aos muitos casos de imagens, pintura, azulejos, etc, onde as figuras do demónio e do judeu, por exemplo, são aspadas e feridas pelos fiéis, num gesto de esconjuração mágica dos seus inimigos e dos seus medos ancestrais).

2.                razões da manutenção de códigos imagéticos, à margem do contrôlo rígido de uma iconografia oficial, de temas e representações proibidas ou não toleradas (caso das Trindades Trifontes estudadas por Flávio Gonçalves, declaradas não-conformes ao dogma católico com o Concílio de Trento, mas que nem por isso deixaram de aparecer em algumas decorações de igrejas portuguesas em tempo de Contra-Reforma), o que coloca a questão de coexistirem mecanismos de continuidade de representação, a par de um mais que provável afrouxamento do contrôlo inquisitorial e episcopal em muitas zonas rurais, onde as velhas fórmulas cultuais se mantiveram incólumes.

3.                linhas de estratégia utilizadas pela organizada militância d círculos de propaganda de cigilância da Igreja Católica, em todos os seus níveis e estruturas, para combater a iconoclastia dos protestantes e judeus, e outras minorias com práticas ancestrais de ritualidades de feitiçaria, e as suas manifestações de hostilidade contra as imagens religiosas (como se atesta pelo extraordinário quadro de Pedro Nunes atrás analisado, exemplo maior e esclarecido dessa propaganda em larga escala).

4.                níveis de articulação entre a imagem pintada, a escultura de culto, a palavra dita, a prédica, a oração, os textos moralizantes e as cartilhas devocionais para instituírem, no seu conjunto e na ligação entre si, uma linguagem única de apropriação das obras de arte ao serviço de uma estratégia de catequização em larga escala.

5.                e, enfim, as ideias e as estratégias visando a renovação efectiva do modelo artístico apresentado, e os fundamentos dessa viragem, o que explicará, no caso da Contra-Reforma portuguesa, o abandono gradual da retórica maneirista e a opção por uma linguagem mais aberta ao naturalismo, ao tenebrismo e ao realismo, com novas fórmulas de criação / invenção articuladas com o sentido do convencimento e do apelo à oração, à luz do conceito tridentino de decorum.

 

BIBLIOGRAFIA

Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L’arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, ed. Einaudi, Turim, 1957.

Flávio Gonçalves, «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, 6ª série, ano II, Porto, 1962.

Flávio Gonçalves, «A Inquisição portuguesa e a arte condenada pela Contra-Reforma», Colóquio, nº 26, 1963, pp. 27-30.

Eveline Pinto ao livro Aby Warburg – Essais Florentins, ed. Klinksieck, Paris, 1990.

Olivier Christin, Une révolution symbolique. L’iconoclasme protestant et la reconstruction catholique, Paris, 1991.

Alain Besançon, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994.

David Freedberg, The Power of Images, The University of Chicago Press, 1989 (trad. espanhola: El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid).

Catálogo da exposição Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, ciom coordenação de Cécile Dupreux, Peter Jezler e Jean Wirth, 2001.

Vitor Serrão, A trans-memória das imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa, ed. Cosmos, Lisboa, 2007.

 

 


Ainda a Trans-Memória como instrumento de análise.

1 Março 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A História a Arte deve estimular o conhecimento e a reflexão crítica sobre os sentidos da arte, em termos de produção autóctone, condições de mercado, encomenda, valorização, mobilidade de obras, permuta de peças artísticas e repercussão de correntes estéticas – ou seja, num sentido globalizante.

Nesse âmbito, partimos da definição de novos conceitos operativos que se consideram basilares para a prática de uma História da Arte-ciência que seja eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte e, também, útil e socialmente comprometida: a noção de PROGRAMA ARTÍSTICO, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (histórica, estética, ideológica, contextual, etc) das obras de arte à luz da compreensão daquilo a que o iconólogo Aby Warburg, entre outros autores, já definia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, as condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, valorativas, ideológicas, de perduração e continuidade, etc, para o pleno entendimento iconológico das mesmas; e a noção de TRANS-MEMÓRIA IMAGÉTICA, que busca (re)conhecer nas obras de arte as suas capacidades de perpetuação memorial, tornando-as um elemento fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-temporal sempre aberta. 

Seja qual for a circunstância histórica de concepção, de produção ou de fruição, as imagens artísticas são sempre um testemunho estético dotado de muitos sentidos. Elas apresentam-se ao nosso olhar com significações distintas e com variados traços de comunicabilidade que se expressam tanto no plano da sua estrita conjuntura de tempo e de espaço como, sobretudo, no plano de uma dimensão trans-contextual que lhes confere novos níveis de leitura. As obras de arte são, quase sempre, uma espécie de jogo de espelhos na sua qualidade natural de objectos vivos, dotados da capacidade de prolongarem a sua função pela fruição, de assumirem novos contextos e de se exprimirem em plenitude face a novos olhares. Aptas a gerar novos públicos na sucessão dos tempos, as obras de arte comunicam impressões, resguardam a sua complexidade originária e renovam os seus traços de encantação estética. Como afirmou o escritor Antoine de Saint-Exupéry, elas encerram tanto uma dimensão onírica quanto uma dimensão tangível, ambas essenciais para caracterizar a sua essência artística.É precisamente a dimensão memorial das imagens artísticas com os seus contornos nunca efémeros, ou neutrais, que se impõe analisar à luz das suas razões de ser, sejam ideológicas, religiosas, políticas, ou outras.

    ... E, sabemo-lo pela experiência que a Iconologia, a Semiologia e a Sociologia da Arte nos oferecem, as obras de arte são mais atraentes como interlocutoras dinâmicas de diálogos interrompidos quanto melhor explicáveis na essência do acto de produção que lhes deu origem, e na consequência dos actos de contemplação que, muito tempo depois, continuaram a legitimá-las, mesmo com o peso do esquecimento colectivo sobre os significados reais que um dia lhes deram origem e modelação criadora... Parece ser útil, assim, para uma maior riqueza metodológica na prática da História da Arte, recorrer à utilização de um novo conceito: o conceito de trans-memória aplicado ao estudo integral das imagens artísticas. Tal dimensão teórica tem em vista o entendimento de que a obra de arte, mais que um testemunho trans-contextual (como diria Arthur Danto, ou U. Eco  com o conceito de ‘obra em aberto’) apto a formar novos públicos cada vez que é alvo de um novo acto de fruição, é também um laboratório de memórias acumuladas que sobrevivem e perduram, seja nas franjas do subconsciente, seja na prática da criação e da re-criação dos artistas. 

     Apresentam-se, a terminar, alguns 'estudos de caso' na Arte Pública da cidade de Lisboa.


Rudolf Wittkower e a teoria da trans-memórias dos códigos imagéticos.

27 Fevereiro 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade...

     Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais  puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.

     Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer e Erwin Panofsky, entre outros...

     Erwin Panofsky (Hannover, 1892-Princeton, EUA, 1968) foi discípulo de Warburg. Graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), mas também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968). Para Panofsky a História da Arte é uma ciência em que se definem três momentos inseparáveis do ato interpretivo das obras em sua globalidade: a leitura no sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo essencial como expressão de valores. A arte medieval e do Renascimento (que estudou profundamente), estão definidos no livro Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental. Foi amigo de Wolfgang Pauli, um dos criadores da física quântica.

     Panofsky fez a distinção entre ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA em Estudos em Iconologia (1939) dando exemplos sobre as diferenças. Definiu iconografia como o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, em Estudos em Iconologia, Panofsky detalha as suas ideias sobre os três níveis da compreensão da história da arte:

     Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Se nos ativermos ao 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.

     Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a Última Ceia. Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola com um leão poderia ser interpretado como o retrato de São Jerónimo.

     Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico. Trabalhando com estas camadas, o historiador de arte coloca-se questões como "por que é que São Jerónimo foi um santo importante para o patrono desta obra?" Essencialmente, esta última camada é uma síntese; é o historiador da arte se perguntando: "o que é que isto significa"?

     Para Panofsky, era importante considerar os três estratos como ele examinou a arte renascentista. Irving Lavin diz que "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde ninguém suspeitava que havia - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais".

     Quanto a Rudolf Wittkower (n. Berlim, 1901- fal. Nova York, 1971), foi um grande historiador de arte alemão, profundo conhecedor da arte italiana do Renascimento  e do Barroco; orientou os seus estudos segundo a iconologia de Aby Warburg e de Panofsky e as formas simbólicas de Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras de arte.  Estudou um ano Arquitectura em Berlim, para estudar depois História de Arte em Munique com Heinrich Wölfflin e em Berlim com Adolph Goldschmidt. Perito em arte renascentista italiana, recebeu a influência da Iconologia e demarcou-se do Formalismo de Wölfflin. No libro Born Under Saturn. The Character and Conduct of Artists: a Documented History from Antiquity to the French Revolution (de 1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a evolução da condição social do artista, assim como o seu carácter e a sua conducta social. Cumpriu o seu trabalho no Instituto Warburg de Hamburgo e em Londres. Entre outras publicações suas, cabe destacar:Principios arquitectónicos na época do Humanismo(de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de 1958), e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).

     Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes: 1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14. Interpretation of Visual Symbols.

     Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.

     Quando uma obra de arte nos toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho,  a História tendeu a denominá-la muitas vezes como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos, em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico, político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas que assumem fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se História de Arte sem recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às ditas «obras-primas» ? A questão tem a maior pertinência: a História da Arte tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos particulares  da produção artística se poderá fazer História de Arte consequente. Mas será mesmo assim ? Lembrando Aby Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em cadeia de que todas e cada uma são a parte activa. A noção de ‘obra-prima’ – quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível, consciente da necessidade de o preservar.

     Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melancolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também  ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

     Segundo o que já dizia Aby Warburg, o que importava à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades.   O caminho escolhido por Erwin Panofsky busca a compreensão de como sob determinadas condições históricas objetos e eventos diversos são expressos por formas diversas; temas ou conceitos são expressos por objetos e eventos vários; tendências essenciais da mente humana são expressas por temas e conceitos específicos. A História da Arte para Panofsky é uma ciência que necessita da junção desses três exercícios de compreensão para se concretizar: a leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos. Foi sob esta óptica que ele empreendeu seus estudos sobre a arte renascentista, buscando na literatura, nas representações artísticas que comumente eram encontradas, nas leituras alegóricas ou simbólicas que a arte trazia os percursos seguidos pelos artistas da renascença para executarem suas obras. A leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos no entanto, prescinde das escolhas que porventura o artista possa fazer, assim como pode ser feita sem que o ambiente de vida do artista tenha que ser necessariamente explorado pelo historiador da arte. A busca das ressonâncias perceptíveis nas obras de arte envolvendo os motivos artísticos preferencialmente trabalhados, as imagens e alegorias conhecidas e eleitas nas representações e os valores simbólicos atribuídos às imagens representadas seriam capazes de permitir a leitura historiográfica da obra de arte. Talvez o que falte seja o que Aby Warburg considerava a presença divina, o peculiar, o ‘deus’ criador dentro de cada um que se manifesta no detalhe, no singular. A presença do indivíduo tão apregoada por Jacob Burckhardt em seu ensaio sobre a cultura do Renascimento na Itália é o elemento fundador daquela civilização que gerou as obras de arte perseguidas, esquadrinhadas e analisadas minuciosamente por aqueles estudiosos que, tal como Erwin Panofsky e Rudolf Wittkower, buscaram entender a arte da Renascença italiana.

 

OBRAS DE ERWIN PANOFSKY: Dürers Kunsttheorie, 1915; Dürers "Melencholia I", 1923 (com Fritz Saxl); Deutsche Plastik des elften bis dreizehnten Jahrhunderts, 1924; A Late-Antique Religious Symbol in Works by Holbein and Titian, 1926 (com F. Saxl, Burlington Magazine); Über die Reihenfolge der vier Meister von Reims, 1927 (Jahrbuch für Kunstwissenschaft, II); Das erste Blatt aus dem 'Libro' Giorgio Vasaris, 1930 (Städel-Jahrbuch, VI); Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren Kunst, 1930 (Studien der Bibliotek Warburg, XVIII); Classical Mythology in Mediaeval Art, 1933 (com F. Saxl, Metropolitan Museum Studies, IV); Codex Huygens and Leonardo da Vinci's Art Theory, 1940; Albrecht Dürer, 1943 - The Life and Art of Albrecht Dürer (4th ed. 1955); Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, 1946; Postlogium Sugerianum, 1947 (Art Bulletin, XXIX); Style and Medium in the Motion Pictures, 1947 (Critique, Vol. 1 No 3); Gothic Architecture and Scholasticism, 1951; Early Netherlandish Painting: Its Origins and Character, 1953; Meaning in the Visual Arts, 1955; The Life and Art of Albrecht Dürer, 1955; Gothic Architecture and Scholasticism, 1957; Renaissance and Renascences in Western Art, 1960; The Iconography of Correggio's Camera di San Paolo, 1961; Studies in Iconology, 1962 (2ª ed.); Tomb Sculpture, 1964 (ed. H.W. Janson); Problems in Titian, Mostly Iconographic, 1964; Dr. Panofsky and Mr. Tarkington, 1974 (ed. Richard M. Ludwig); Perspective as Symbolic Form, 1991 (1927); Three Essays on Style, 1995.

 

OBRAS DE RUDOLF WITTKOWER: Architectural Principles in the Age of Humanism (1949); Bernini: The Sculptor of the Roman Baroque (1955); The Arts in Western Europe: Italy in New Cambridge Modern History, vol. 1 (1957), pp. 127–53; Art and Architecture in Italy, 1600–1750 (1958, reed.); Born Under Saturn: The Character and Conduct of Artists (1963, com Margot Wittkower); The Divine Michelangelo (1964, com Margot Wittkower); Gothic vs. Classic, Architectural Projects in Seventeenth-Century Italy (1974); Sculpture: Processes and Principles (1977, com Margot Wittkower).