Sumários

Precisões sobre Arte de Género e a sua abordagem teórico-metodológica.

26 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Uma História da Arte de Género em perspectiva alargada. Novas recomposições programáticas da História da arte e novas linhas de investigação. A arte dos povos submetidoas à dominação imperialista-colonialista. Da Arte ingénua / Não-Erudita / Naif / Popular, à História da Arte Pós-Colonial, ao Feminismo, aos Lesbian and Gay Studies, à Arte do Inconsciente Criativo (ASrt Outsider), à Arte Pública (Street Art), e a outras manifestações 'de género'.  Apresentação e discussão.


A História da Arte de género: o Feminismo.

24 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

ARTE NO FEMININO - CASOS DE ESTUDO NA ARTE PORTUGUESA

 

1.

     Olhemos o Cartaz We Can Do It !, de J. Howard Miller (1943), primeiro grande ícone da luta das feministas nos EUA, e na Europa. Esta imagem de uma trabalhadora com lenço na cabeça, que arregaça as mangas e assume a força necessária para as actividades convencionadas como sendo exclusivas dos homens, nasce ironicamente no contexto da última Grande Guerra, no seio da fábrica Westinghouse Electric Corporation, sem traço reivindicativo e apenas com o fito de incentivar as mulheres americanas a colaborarem no esforço militar. Só muito mais tarde, quando descontextualizada, se tornou ícone do Feminismo. Pensemos também no papel de Mary Wollstonecraft (1759-1797), notável escritora, filósofa e militante dos direitos das mulheres, que foi uma defensora contestada do voto universal e da igualdade de géneros. E vejamos como a História da Arte bem pensante, académica, tantas vezes fechada na sua torre de marfim, esqueceu as suas protagonistas mulheres, erradicando-as dos museus e das páginas dos seus livros…

     Ou seja, existe ainda uma arte sem História que precisa de ser reescrita, de ser pesquisada a sério: aquela que foi produzida por artistas mulheres, e que a História tradicional tem sempre colocado num plano subalterno e negligenciado. Vejamos a arte portuguesa. Salvo o caso de Josefa de Óbidos, que sempre mereceu a estima da crítica, ainda que num elogio subordinado ao aspecto «feminil» e «doméstico» da sua arte, própria de uma «molher donzela que nunca cazou», que se sabe de tantas outras artistas nacionais ? Que se sabe, por exemplo, de Inácia da Costa de Almeida, escultora de madeira, barro e cera, autora de um bom Senhor da Cana Verde em terracota policromada, assinado e datado de 1654, que existe no antigo Dormitório do Convento de Cristo em Tomar, e que foi, à época, considerada «exímia» ? Que se sabe da freira pintora Soror Joana Baptista, autora de miniaturas sacras, activa na segunda metade do século XVII, e que gozou de certa consideração ? Que se sabe da nobre Maria de Guadalupe de Lencastre e Cardenas (1630-1715), duquesa de Aveiro, Maqueda y de Arcos, letrada e pintora, que chegou a ser ‘juíz’ (presidente) da Irmandade de São Lucas, em 1658 ? Que se sabe de largas dezenas de mulheres que, nos século XVII e XVIII, praticaram desenho, caligrafia, debuxo, douramento ou mesmo pintura de pincel, à sombra de conventos ou de estirpes aristocráticas, e que estiveram inscritas na referida Irmandade de São Lucas ? E de outras que, já no XIX, tiveram aprendizado parisiense, caso da tão infeliz Josefa Greno (1850-1901) ? Na verdade, sabemos muito pouco sobre estas e outras mulheres artistas.

 

2.

     Duas historiadoras de arte tiveram papel de maior relevo na afirmação de uma História da Arte recente em que as mulheres artistas passaram a contar em plano de paridade com os seus colegas homens. Trata-se de Griselda Pollock (1949-), docente da University of Leeds, especialista em estudos de género e em arte feminista, autora de Old Mistresses: Women, Art and Ideology (1985), e de Linda Nochlin (1931-2017), professora do Institute of Fine Arts (University de New York), reputada como curadora das célebres exposições Women Artists: 1550-1950, que decorreu em Los Angeles County Museum of Art, em 1976, e Global Feminisms, no Brooklyn Museum, de 2007.

     Ambas contribuíram para mudar o curso da História da Arte com as perguntas ‘porque é que não existem grandes mulheres artistas ?’ e ‘se existem, porque não têm o devido destaque ?’  Nochlin respondeu-lhes em Janeiro de 1971 no ensaio ‘Why have there been no great women artists ?’ (Artnews), em que, percorrendo a História, registou as convenções sociais que sempre impediram as mulheres de terem destaque nas artes, e contrariou a ideia da genialidade artística como um talento inato exclusivo dos homens. A sua crítica incisiva obrigou a História da Arte a reformular as suas próprias regras: redefiniram-se os conceitos de genialidade e reconheceu-se o talento de artistas mulheres que só o preconceito de género fizera secundarizar ou esquecer. A força legitimadora do saber exposto em programas de ensino, museus e exposições tornara ‘natural’ a ausência de mulheres artistas; ora, se elas não estavam lá, se não líamos sobre elas nem as víamos nas paredes dos museus, é porque não existiam, ou não tinham ‘qualidade’ para lá estar…

     Os casos de comportamentos lesivos da dignidade da mulher artista multiplicam-se e seria útil um recenseamento de casos, antigos e recentes. Quase sempre em casos de casais de artistas a subalternização da mulher é implícita e atinge por vezes contornos gravosos. Ainda na recente Lição de Jubilação da Profª. Margarida Calado (FBAUL) foi lembrado que até um grande artista como José de Almada-Negreiros manifestou preconceitos homofóbicos em relação às mulheres em geral e à sua mulher artista Sarah Afonso em particular: «é preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens» !

     A visão feminista, irónica e provocadora, do livro de Nochlin Women, Art and Power and Other Essays, 1991), revolucionou a História da Arte, até aí assente no preconceito de que só os homens podiam ser artistas destacados. Esta nova História da Arte mostrou que, afinal, ‘elas’ existiam, e eram muitas mais do que se imaginaria. Ficaram expostos os mecanismos de exclusão que tinham criado a sua histórica invisibilidade; e inverteu-se a questão posta – aquilo que era extraordinário é que, apesar de tantas resistências e obstáculos, houvesse mulheres que tivessem tido brilhantes carreiras artísticas, e que fossem tantas! Assim se desconstruíram as bases ideológicas de uma História de Arte de raíz homofóbica e xenófoba, num contexto histórico de anos 70 em que o pensamento feminista estava a transformar os paradigmas e linguagens das ciências humanas, inserindo a sua perspectiva crítica em todas as vertentes: porque é que as mulheres artistas não tinham sido estudadas, coleccionadas, expostas, restauradas, valorizadas ?

 

3.

     A História da Arte começava finalmente a falar com toda a naturalidade da arte feita por mulheres, contribuindo para que passasse a ser, como diz Filipa Lowndes Vicente, uma arte com história. As abordagens feministas contribuíram decisivamente para uma consciência crítica dos mecanismos ideológicos de inscrição na História da Arte e para refutar os processos de segregação de género na produção artística, tão bem ilustrada pelo famoso poster do grupo feminista Guerrilla Girls: «Terão as mulheres que estar nuas para entrar no Metropolitan Museum ? Menos de 5% dos artistas expostos na secção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos»... 

     Todavia, neste campo de resgate da arte no feminino, antes muito desconsiderada pela História, existe uma dificuldade maior, a de encontrar documentos, escritos ou visuais, sobre o trabalho de mulheres artistas, permanecendo muitas “páginas em branco” sobre as suas obras. A este respeito, dar voz plena às mulheres silenciadas impõe alargar a pesquisa a reservas de museu, colecções privadas e arquivos de família (tarefa mais difícil, do que quem investiga as fontes primárias tradicionais), restando a possibilidade de questionar criticamente os mecanismos (re)produtores destes silêncios, caso a caso, e a forma como os saberes foram elaborados, validados e instituídos pela História. O livro Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, de Ana Vicente, e o excelente ensaio de Filipa Lowndes Vicente intitulado Fora dos cânones: mulheres artistas e escritoras no Portugal de princípio do séc. XX, questionaram as possibilidades que podiam ter as mulheres portuguesa em se dedicarem profissionalmente à pintura ou à escrita. Pintar e escrever eram práticas femininas aceites e até encorajadas entre as elites dos séculos XVI ou XVII, se dentro do recato do lar, mas existiam fronteiras entre fazê-lo no espaço privado da domesticidade ou no espaço público, expondo ou publicando. Quando o sufragismo e o feminismo eram ideias que circulavam a nível trans-nacional, como é que as portuguesas com acesso à escrita, ou à pintura, se posicionavam face a esses debates? Ora nem sempre o acesso à publicação e à exposição se traduzia numa consciência feminista.

     Citam-se sem dificuldade, percorrendo serenamente a evolução das artes ao longo da Idade Moderna e Contemporânea, casos de inquestionável superioridade artística de mulheres pintoras como Artemisia Gentileschi (1593-c. 1653), ‘caravagesca’ de méritos reconhecidos no tempo, tal como Barbara Longhi (1552-1638), Catharina van Hemessen (c.1527-1560), Levina Teerlinc (c.1520-1576), Lavinia Fontana (1552-1614), Clara Peeters (1594-1657), Louise Moillon (1610-1696), Judith Leyster (1609-1660), Elizabetta Sirani (1638-1665), etc, e podemos alargar o rol de nomes, por exemplo, até ao caso icónico da mexicana Frida Kahlo (1907-1954). Todas muito elogiadas, apesar de serem mulheres e, como tal, vistas à luz de um certo ‘recato doméstico’... Mas temos também, no plano oposto, uma Camille Claudel (1864-1943), grande escultora, discípula de Rodin, que apesar do talento incontestável faleceu na obscuridade, e cuja obra só veio ganhar reconhecimento várias décadas após a morte.

 

4.

     Em Portugal, o caso mais mediático e notável, na época barroca, é o de Josefa de Ayala e Cabrera, a famosa Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630-Óbidos, 1684), filha e discípula do grande pintor Baltazar Gomes Figueira (1604-1674), já louvada por Damião de Froes Perym, no Theatro Heroino (1734), não pelas qualidades artísticas propriamente ditas mas pelas ‘virtudes morais’ e pelo ‘decoro’ dessa ‘mulher que nunca casou’ e que pintava «por curiosidade»... Seja como for, o talento de Josefa impõs-se, face à alta qualidade da sua vasta obra de pintora sacra, bodegonista, miniaturista e retratista, como se infere de tantos textos laudatórios, desde Félix da Costa Meesen a Cyrillo Volkmar Machado, Cunha Taborda ou Almeida Garrett, e constitui um caso àparte no panorama da nossa História da Arte – uma mulher pintora com história… Nos nossos dias, Josefa é uma pintora que, a nível internacional, se aprecia imenso, tal como seu pai Baltazar, justamente pela inovação com que ambos encheram o nosso Barroco seiscentista, tanto nas naturezas-mortas como numa pintura sacra onde perpassa, muitas vezes, uma ambígua veia erótica (vejam-se as suas arrebatadas telas de 1672 para o convento de frades carmelitas de Cascais).

     Já atrás referida, Soror Joana Baptista foi outra mulher pintora portuguesa da época barroca, ma das muitas monjas artistas desta época; nascida em Campo Maior, segundo a tradição, chamava-se D. Jerónima de Meneses, era filha de D. João de Meneses e D. Madalena da Silva, e tomou nome de religião Joana Baptista ao professar no convento das Maltesas de São João Baptista em Estremoz. Deixou pinturinhas devocionais, algo ingénuas, como o cobre de Santa Maria Madalena (Museu Nacional Soares dos Reis) e o cobre Rainha Santa Isabel (col. Particular), ambos assinados e de estilo joséfico. As crónicas monacais falam também de outras monjas pintoras, como Cecília do Espírito Santo (no convento das Chagas de Vila Viçosa) e de Maria dos Anjos (no convento de Santa Catarina Sena em Évora, esta última filha do pintor Pedro Nunes).

     São várias, também, as mulheres artistas listadas na composição das mesas da Irmandade de São Lucas entre 1602 e 1794 (segundo o recente livro de Susana Varela Flor e Pedro Flor, Pintores de Lisboa. Séculos XVII-XVIII. A Irmandade de São Lucas, Scribe, 2015). Em 1659 era juíz a citada D. Maria de Guadalupe de Lencastre e Cardenas; em 1703, regista-se a entrada de Soror Pascoa da Ressurreição e de Soror Paula Teresa;  em 1707, o nome de Páscoa do Espírito Santo; em 1719, o de Soror Catarina Maria do Bom Sucesso; em 1727, o de Soror Ana do Amor e o de Soror Isabel da Encarnação; em 1733, dá entrada na irmandade Ana de Miranda; em 1749, Soror Arcangela Micaela; em 1750, Soror Constância de Jesus; em 1751, Soror Mariana Antónia; em 1753, D. Mariana Isabel das Montanhas Soares e  D. Luísa Joaquina Lucas de Menezes; em 1755, Soror Catarina (?) de Jesus; e em 1790, o escrivão regista D. Henriqueta de Menezes, Duquesa de Lafões, «amadora de pintura, por beneficiar e proteger a nossa confraria quis assentar neste lº». Muitas destas mulheres, em boa verdade, seriam praticantes de desenho, caligrafia, douramento, policromia e, nalguns casos, miniatura, mas não deixam de engrossar o lote de artistas portuguesas. Acresce o caso de mulheres que prosseguem o labor dos maridos à frente dos ateliers, quando enviúvam, caso da mulher do escultor Olivier de Gand no século XVI, ou a mulher do pintor Belchior de Matos, em 1628, que seriam mais gestoras de negócio do que propriamente artistas (embora, à segunda, os documentos chamem «pintora»).

     Também mereceu alguma aura, nas memórias artísticas do século XVIII, a pintora e retratista Joana do Salitre, ultimamente a merecer novos olhares críticos face à obra remanescente, que revela qualidade apreciável. Caso àparte em termos de reconhecimento, mais tarde, é o de Aurélia de Souza (1866-1922), pintora notabilíssima, com formação parisiense, justamente destacada entre os onze nomes que Sandra Leandro e Raquel Henriques da Silva reuniram no livro Mulheres Pintoras (Esfera do Caos, 2014). Casos de sucesso, tardio embora, são os nomes de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), Maria Keil (1914-2012), Menez (1926-1995), Clara Menères (n. 1943), Graça Morais (n. 1948) e, evidentemente, Paula Rego (n. 1935). Quanto à infeliz Josefa Greno (1850-1902), pintora de grande talento, o facto de ter sido casada com o pintor Adolfo Greno, bolseiro em Paris, que lhe reprimiu a veia criadora, chegando a tomar as obras como suas (registou-se o seu grito de revolta contra o marido: «até as minhas flores me roubou !»), originou a tragédia que levaria ao internamento no hospital de Rilhafoles. Em 1879, esta pintora de técnica exímia viu-se obrigada a pintar para sustentar a família; em 1881 conviveu com Artur Loureiro e Columbano, que a elogiam; estreia-se na XIII Exposição da Sociedade Promotora de Belas-Artes (1884) (apesar de ter de se apresentar como «discípula de Adolfo Greno»…) sendo elogiada como «a surpresa Greno»; em 1886 participou na 6ª exposição do Grupo do Leão e nos certames do Grémio Artístico. Vendia bem, recebia encomendas, foi distinguida com prémios, teve discípulas, mas o facto de ser mulher reprimida conduziu à tragédia de 1901, à sua prisão, ao internamento psiquiátrico e à quase total desmemória.

 

5.

     O livro de Filipa Lowndes Vicente A Arte Sem História. Mulheres e cultura artística (Sécs XVI-XX) (Athena, 2012) mostrou como a perspectiva feminista veio «descobrir novos objectos de estudo que até então tinham permanecido invisíveis», colocando perguntas diferentes para obter novas respostas inclusivas do feminino, rejeitando a ideia de que as mulheres artistas desconhecidas do passado não existem e questionando os processos de construção da memória histórica a partir dos mecanismos de (re)produção das discriminações de género.

     Afinal, qual o nível de oportunidades de acesso ao universo, à carreira e ao cânone artísticos que tiveram as mulheres artistas ? Tendo como marco histórico a já referida exposição pioneira Women Artists: 1550­1950 (Los Angeles, 1976), este livro é o contributo maior para a História da Arte Feminista que surgiu entre nós, numa construção que equaciona os múltiplos processos através dos quais os registos do trabalho das mulheres artistas foram sendo submersos pela própria História... Merece uma última referência, neste temário, a exposição Wack! Arte e a Revolução Feminista, com curadoria de Connie Butler (MOCA, Los Angeles, 2007), a primeira exposição abrangente a tratar a arte feminista internacional, centrada no período 1965-1980, anos em que ocorreu um forte activismo feminista, com obras de 120 artistas dos Estados Unidos, Europa, América Latina, Ásia, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

     A História da Arte no feminino reforçou o poder de saber olhar e ver estas mulheres observadas, estas mulheres observadoras que criam arte. A abordagem feminista da arte busca, por um lado, a vertente das mulheres enquanto objecto de observação e criação masculino (uma das tipologias persistentes ao longo da história da pintura ocidental) e por outro o lado das mulheres enquanto observadoras. Esta dimensão, que engloba os temas da hegemonia do olhar masculino e as possibilidades do desejo, as fronteiras da nudez e a ‘colonização’ do corpo feminino, alarga sem dúvida o campo a História da Arte.

 

6.

     Afinal, tudo começa no corpo e no preconceito que lhe subjaz. O desejo e o tacto, os sentidos, o teatro, a pose, as motivações narcisistas, a força do imaginário estético. O corpo é luz espelhada, festa, luxo, etiqueta, revolta, graça, retórica, afirmação insubmissa, liberdade, pecado, ícone religioso, maternidade, retrato de aparato, simbolismo, sensualidade, amor, fé ardorosa, alegoria, espiritualização, fonte de prazer – e assim foi, desde sempre, objecto de criação artística, exaltante apego a formas palpitantes. Nele existe grazia e repulsa, obsessão saturniana e euforia, schize melancólica e venustà imaginizada, antropocentismo e ambiguidade, fé e descrença, indizível e efémero. De tudo isto nos fala o Corpo, na pena dos poetas, na descrição dos escritores, no escopro dos escultores, no pincel dos pintores... Mas quando o corpo se torna matéria de arte por parte das mulheres-artistas, a linguagem é ou não distinta – ou melhor, a visão que dele temos é ou não distinta ? A verdade é que o monopólio de uma História da Arte grandiosa, ocidentalizada, masculina, cristã, branca, rácica, imperialista, marcada pelo preconceito e a exclusão, ainda não se finou e ainda faz sentir a sua força…

     Um contributo para uma tipologia neste campo permite-nos assumir: o corpo como alegoria moral (como testemunho de fé, símbolo explícito, reflexo de estados comportamentais); o corpo como magia de Eros (a magia do corpo, o inconformismo, o fascínio contra os cânones estabelecidos, o comprazimento e o deleite das formas); o corpo como equívoco (testemunho de ambiguidades e volúpia, retórica de caprichos e obsessões recalcadas, e confrontos irresolúveis entre a pureza ideal e o fragor de Eros); o corpo como pecado (a marca da ignomínia, a vanitas inútil, a brevidade); o corpo como pretexto, sempre… (tudo começa e acaba no corpo, esse desconhecido, deslumbrante pretexto para os artistas desbravarem paixões arrebatadas, em desencantos, obsessões, dores, exacerbações, ardores espirituais, sentir físico). Erotismo e sensualidade, fé e religião, paragona dos amores profanos e divinos, Eros e Anteros, tacto carnal e arrebatamento místico, pureza e volúpia, luz divina e sensorialidade sexual, eis um caminho de linhas comuns e opostas, cruzamentos e conjuras heterogéneas. Em Jacopo Tintoretto (1519-1594), genial pintor veneziano, católico mas nem por isso conservador, toma-se exemplo, com Susana e os Velhos, dessa fé e sensualidade que coabitam, sempre, na representação do nu feminino.

     Mas falar do corpo feminino é também falar de censura, actos iconoclásticos, repressão directa ou interposta... Reportamo-nos, assim, ao caso da mulher-diabo desnuda no painel renascentista O arcanjo São Miguel combatendo o demónio da igreja monacal de São Francisco de Évora, pintado por Garcia Fernandes, cerca de 1530. Como se sabe, poucos anos depois, já em contexto de Contra-Reforma, o quadro foi alvo de polémica e o diabo-mulher, por ser considerado «de formosura dissoluta» e, como tal, impróprio de figurar num lugar de culto, mandado cobrir por uma nuvem espessa. Tal constitui sintomático exemplo de uma atitude censória homofóbica em que, através da ocultação de uma imagem, se visou anular os efeitos incontroláveis da beleza do corpo, facto que tornava essa obra de arte tão incómoda e subversiva...

 


Walter Benjamin e os conceitos de autenticidade e aura.

19 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Walter Benjamin e os conceitos de autenticidade e aura.

Walter Benedix Schönflies Benjamin (Berlim, 1982-Portbou, 1940), crítico, jornalista, historiador de arte, cientista, filósofo, tradutor, icionólogo e sociólogo, é uma das figuras mais prestigiantes no campo da Estética, que dinamizou através do conceito de AURA para uma nova percepção teórica e sensitiva das artes. Associado desde sempre à Escola de Frankfurt, tal como George Lukács e Bertold Brecht, recebeu a influência do místico judeu Gershom Scholem. Era um profundo conhecedor da língua e cultura francesas, tendo traduzido para alemão obras como Quadros Parisienses de Charles Baudelaire e Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. Mas ér no campo da Estética que o seu contributo é original.

Sobre a famosa aura, escreveu na A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica: «A singularidade é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria, é algo de inteiramente vivo, de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga de Vénus, por exemplo, situava-se num contexto tradicional diferente, para os gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma era a sua singularidade, por outras palavras, a sua aura»…

O talento analítico de Benjamin expressou-se no modo como soube entrever relações entre tudo o que parecia disperso e amalgamado, numa capacidade de perceber as relações, afinal estreitas e clarificantes, entre a matéria bruta e o imaginário da produção de bens de consumo. São valores de longa sobrevivência, que interessam à prática da História e da Crítica das Artes e que explicam os mecanismos paragonais de gosto e de repulsa, de marginalidade e de massificação, de deriva repressiva e de ruptura vanguardística.

As novas gerações de historiadores e críticos de arte da era da globalização aprendem com estas lições oriundas da esfera da sociologia da arte, a psicologia, a antropologia e a filosofia marxista e que se tornam de utilidade para a definição da disciplina.

A História-Crítica da Arte, ao mostrar utilidade perene, ao falar das obras em aberto (como as definiu Umberto Eco), progrediu de modo significativo no contexto de um mundo em globalização. Alargou capacidades de análise, recentrou interesses regionais, atraiu jovens investigadores, disponibilizou apoio dos poderes instituídos, redefiniu objectos de estudo no enfoque micro-artístico, amadureceu a visão patrimonialista sem antigas peias auto-menorizadoras, e reforçou esse seu entendimento (que só ela pode ter…) do discurso da arte como um fenómeno que é em todas as circunstâncias inesgotável e por isso trans-contemporâneo.

Walter Benjamin nasceu no seio de uma família judaica, filho de Emil Benjamin e de Paula Schönflies Benjamin, comerciantes de produtos franceses em Berlim. Na adolescência, perfilhou ideais socialistas e participou no  Movimento da Juventude Livre Alemã, colaborando na sua revista, revelando maior influência de Nietzche. Em 1915, conhece Gershom Gerhard Scholem, pensador judeu e arrebatado místico, de quem se torna muito próximo, quer pelo gosto comum pela arte, quer pela religião judaica que estudavam. Em 1919 defende tese de doutoramenrto sobre A Crítica de Arte no Romantismo Alemão, que foi aprovada e recomendada para publicação. Em 1925, constatou que a vida académica não lhe estava aberta, depois de ver rejeitada na Universidade de Frankfurt a tese de provas pedagógicas Origem do Drama Barroco Alemão. Interessa-se mais pelo marxismo, tal xcomo seu amiogo Theodor Adorno, defendendo a filosofia de George Lukács; publica resenhas e traduções que lhe trazem reconhecimento como crítico literário. Em 1934-35 vive em Itália, e vive tensões com o Instituto para Pesquisas Sociais (a chamada Escola de Frankfurt). Em 1940, data da morte, escreve as Teses Sobre o Conceito de História, considerada como o mais importante texto revolucionário desde Marx (embora outros vejam no livro um retrocesso no pensamento benjaminiano). A sua morte, desde sempre envolta em mistério, ocorre durante a tentativa de fuga através dos Pirinéus, quando em Portbou, temendo ser entregue à Gestapo, teria cometido o suicídio.

O fio de pensamento une os textos, que se agrupam sob o título O Anjo da História relaciona-se com a paixão de Benjamin por um quadro de Paul Klee, Angelus Novus. Gershom Scholem, seu amigo e biógrafo, conta que Benjamin adquiriu a obra de Klee em 1921 e diz que o amigo considerava a obra como uma sua possessão. O quadro de Klee tornou-se imagem obsessiva, expressão de uma certa visão da História, sem falar nas implicações talmúdicas da angelogia judaica, alegorizava a ideia da ruína e catástrofe. Essa concepção benjaminiana da catástrofe já aparece na obra A Origem do Drama Barroco, como percepção lúcida da falência do paradigma da concepção da História como progresso, insuflada pela visão contínua da temporalidade dos factos históricos. O olhar de Benjamin desespera nessa percepção falseada da realidade, em que a ilusão do progresso norteia toda a concepção da História na sua época. 

Para WB é preciso interromper a catástrofe, romper com a ilusão do Progresso e despertar para outra concepção da História, capaz de redimir a injustiça e despertar a débil força messiânica que existe em cada geração: despertar para outra dimensão da História, em que o passado surja metamorfoseado pela luz da redenção messiânica, mas também para outra dimensão da temporalidade, a do instante do Agora (Jetzt). Ora, esse é precisamente o "momento revolucionário", que rompe o contínuo da história e da visão da história entendida como sucessão e continuidade, a única, assim, capaz de interromper a catástrofe imparável.

No textos Sobre a crítica do poder como violência e Fragmento teológico-político, de 1919-20, o que é claramente anunciado é o poder revolucionário e instaurador de uma nova ordem de valores que a interrupção messiânica comporta a partir de si. No primeiro é a interrupção do Direito humano a favor da instauração violenta do Direito divino, pois só esse funda a verdadeira justiça." Também no texto "Fragmento teológico-político", é a interrupção da ordem profana e o seu contínuo que opera a restitutio in integrum espiritual, isto é, fazendo surgir, através da dissolução do profano, a verdadeira ordem messiânica. Essa ideia, de uma ordem messiânica, é algo que se esbaterá nos anos seguintes da obra de Benjamin, que descobre o materialismo dialéctico em 1924, ao conhecer Asja Lascis. Só mais tarde regressará à sua visão messiânica da História.Walter Benjamin faleceu em 1940, em Portbou, na fronteira espanhola, fugitivo da barbárie nazi. Suicidou-se após recusa de obter passaporte após passar pela França ocupada. A sua epistolografia final sintetiza bem o modo como a análise marxista e o misticismo se interligam para entender os modos como se intersectam as artes e a tecnologia, a luta de classes e a consciência libertária dos homens, incluindo a sua dimensão de transcendência. Benjamin analisou de modo pioneiro o papel do Cinema e da Fotografia, e o dos media, deixando obra imensa, só postumamente publicada pelos círculos marxistas académicos dos EUA e da Europa. «Para se ser feliz, há que ser capaz de tomar consciência de si mesmo sem medo», escreveu…

A autenticidade de uma coisa é a suma de rudo o que desde a sua origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração, na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este é certo, mas o que assim vacila é exactamente a autoridade da coisa e o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura»…

O conceito de aura na obra de Walter Benjamin insere-se no âmbito da definição de obra de arte. O conceito está ligado à sua reprodutibilidade técnica. Desde sempre existiu a possibilidade dos homens copiarem o que os outros tinham feito. Num primeiro momento, essas cópias eram feitas por discípulos dos artistas e, num segundo momento, eram copiadas para fins lucrativos. No entanto, a arte deixa de ser reproduzida manualmente quando, a entrada da fotografia possibilita uma mudança na mentalidade das pessoas. Benjamin escreveu que “com a fotografia, a mão liberta-se pela primeira vez, no processo de reprodução de imagens, de importantes tarefas artísticas que a partir de então passaram a caber exclusivamente aos olhos que vêem através da objectiva. Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que passou a poder acompanhar a fala.” O cinema, por exemplo, surgiu como um complemento dessa percepção visual mais rápida e do olhar.

Todavia, a reprodução da obra de arte relaciona-se com a possibilidade de indagação sobre a sua própria autenticidade. Para Benjamin, por mais perfeita que fosse a cópia, jamais seria igual à obra de arte original. Ou seja, uma obra reproduzida não capta totalmente o “aqui e agora” de uma obra de arte. Já a reprodução técnica possui maior autonomia do que a reprodução manual, por isso, para a reprodução técnica, o objecto não necessita ser reproduzido exactamente como ele se encontra no seu estado natural. “A autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que ela comporta de transmissível desde a sua origem, da duração material à sua qualidade de testemunho histórico.” Exibindo a reciprocidade de acção entre a matéria e o homem, o Cinema seria de valia inestimável para o pensamento materialista. Adaptado adequadamente ao proletariado, que se prepararia para tomar o poder, o Cinema tornar-se-ia, em consequência, portador de uma extraordinária esperança histórica.

A obra de Benjamin reúne conceitos que têm provocado uma série de respostas, incluindo as de Jacques Derrida que, como nas suas leituras onde cuidadosamente reproduz textos de Benjamin, se destacam os aspectos místicos e a afirmação magnífica da alteridade absoluta. O princípio messiânica de Derrida defende que cada momento do tempo apresenta uma oportunidade única, revolucionária. Franz Rosenzweig (Estrela da Redenção a partir de 1921), Gerschom Scholem, Hannah Arendt, Franz Kafka, Paul Celan, Emmanuel Levinas e Jacques Derrida, cada um deles, assumiu um papel importante na tradição do pensamento judaico no século XX. A concepção materialista da história (e o caso de amor com Asja Lacis) enriquece a perspectiva marxista de Benjamin e, bem assim, de Theodor Adorno e Max Horkheimer (e da Escola de Frankfurt, em geral), bem como de Georg Lukács e Bertold Brecht, com forte protagonismo na  tradição da estética do século passado.

A tradição da Filosofia alemã de Immanuel Kant, incluindo os românticos alemães (de Goethe aos irmãos Schlegel), FWJ Schelling e GWF Hegel, sem esquecer Edmund Husserl e o seu discípulo Martin Heidegger, mostram paralelos com o trabalho de W. Benjamin.O texto Teorias do Fascismo Alemão, de 1930, pressente a iminência do nazismo na Europa. A sua visão da História pretende-se como um antídoto face ao que pressente, pois percebeu que o optimismo da visão progressista oculta o hediondo rosto do fascismo alemão. Por isso, a visão benjaminiana da História, o seu pessimismo, associa-se ao sentimento de uma melancolia revolucionária que procura uma saída de emergência: "Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de accionar o travão de emergência por parte do género humano que viaja nesse comboio." (Arquivo Benjamin, mss. 1100). Trata-se de procurar um gesto ético que interrompa a catástrofe e abra passagem para uma outra compreensão da História: redespertar a força do passado no presente e devolver a glória aos vencidos da História. O Anjo espera esse momento redentor, pese o vendaval do Progresso que o arrasta "imparavelmente para o futuro“... A análise de Benjamin mostra que as técnicas de reprodução das obras de arte, ao provocarem a queda da aura, promovem a liquidação do elemento tradicional da herança cultural; mas, por outro lado, esse processo contém um germe positivo na medida em que possibilita um outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um instrumento eficaz de renovação das estruturas sociais e da sua consciência. Trata-se de uma postura optimista, objecto de reflexão crítica por parte de Adorno. Actualmente a obra de Benjamin exerce grande influência, p. ex., em G. Agamben, no que toca ao conceito de Estado de excepção.

 


Casos de estudo no campo da abordagem iconológica: santiago Sebastián e as artes hispano-americanas.

17 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A linguagem emblemática e os programas artísticos organizados em séries ou ciclos narrativos: emblemas, hieroglíficos, carros alegóricos, cenas funerárias, hagiografias, prefigurações virtuosas, Sibilas, Profetas, Virtudes e Artes Liberais.

A Erwin Panofsky se deve a ampla difusão das teses warburghianas, ao estudar a arte figurativa conforme à sua natureza e aos seus códigos iconológicos (na obra ‘Studies in Iconology’, N. York, 1939), aos seus significados formais e simbólicos. A consciência de que a História da Arte tem de analisar sempre as tendências ideológicas, políticas, socio-económicas, religiosas, filosóficas e outras do ‘tempo’ a que se reporta a obra de arte em apreço tornou-se um dado adquirido – ainda que nem sempre possa ser, em si, caminho suficiente. A análise iconológica panofskiana conduz-nos ao estudo das visões do mundo da peça que analisamos – um conceito, afinal, tão próximo do conceito de «ponto de vista das obras» de Warburg... Recorremos a exemplos como o EMBLAMATUM LIBER de Andrea Alciato (1531) e a QUINTI HORATII FLACCI EMBLEMATA de Otto Vaenius (1669), bem como a outras obras de literatura iconográfico-simbólica para empreender um estudo exemplificativo de tendências e modos de ver integralmente as obras de arte, afectadas sempre pelos modos de ver do seu tempo e do seu contexto específicos, bem como pelas ‘nachleben’ retomadas de um imaginário imagético nunca interrompido... 

Aplicado ao campo da Arquitectura, a lição iconológica explica, por exemplo, o programa da igreja mexicana de Tepalcingo, estado de Morelos, que data já de 1759-1764, pese o seu pronunciado gosto arcaizante. O templo colonial mostra sólida ‘ideia’ iconográfica sobre a vinda de Cristo para salvar os homens do pecado, tema esse tratado em moldes populares mas com sabor românico pelo tipo da decoração, onde se exaltam os temas do CICLO DA FRAQUEZA, a REDENÇÃO (Paixão de Jesus Cristo), a DOUTRINA CATÓLICA (Doutores da Igreja e Evangelistas), e a MISERICÓRDIA DE DEUS, com a glória de arcanjos como mediadores entre a Divindade e a Humanidade. Sistematiza todo um elaborado programa em imagens da ESTRADA DA PURIFICAÇÃO, tratado a modos populares para uma clientela de índios e mineiros. 

As Virtudes e a Emblemática: a influência da obra de Otto Vaenius Quinti Horatii Flacci Emblemata (ou Theatro Moral de toda la  Philosophia de los Antiguos y Modernos, na  versão espanhola  saída em Bruxelas em 1669), com gravuras do mesmo autor, segundo textos de Horácio, exaltando os níveis moral, amoroso e místico.

A meditação sobre a Morte e a iconografia ao serviço da literatura moral.A difusão do Humanismo: Alegorias de Virtudes e Vícios, de Artes Liberais, de Profetas e de Sibilas, Triunfos neo-petrarquianos e outras retomas clássicas. Frontispício do livro Commentaria in duodecim Aristotelis libros de prima Philosophia, de Juan Gines de Sepúlveda, Paris, 1536. Os filósofos da Antiguidade (Sócrates, Platão,Aristóteles, Pitágoras, Cícero e Séneca) atestam  e exaltam o rigor da doutrina de Santo Agostinho. Só são ricos os que se enchem de virtudes, diz Cícero, por exemplo... As Entradas Virtuosas e os Triunfos alegóricos radicam no famoso

texto de PETRARCA ‘Os Triunfos’, que analisa sucessivamente os triunfos do Amor, da Castidade, da Morte, da Fama, do Tempo e da Divindade. Mudam neste tipo de representações petrarquianas os animais que puxam as carruagens: cavalos, no  triunfo do Amor, unicórnios, no da Castidade, bois, no da Morte; e elefantes, no da Fama, ou cervos, no do Tempo. O êxito destes esquemas levou a que também os deuses olímpicos sugerissem novos Triunfos, como Mercúrio, Apolo, Vénus, Ariadne, etc, e passou daí a personagens históricos, e outros. O senhor D. Tomás de la Plaza, em 1580, mandou decorar a Casa del Deán, em Puebla, com um conjunto de frescos alusivos aos Triunfos, adaptando o discurso petrarquiano a uma lógica contra-reformista.

Sibilas, videntes, profetas: Tal como os Profetas anunciam a vinda de Cristo aos judeus, as Sibilas da antiguidade revelam.-no aos pagãos. Os ‘Oracula Sibylina’ datam de Alexandria, no séc. II AC. (publicados em 1545), com dez Sibilas, destacando a de Tibur, que anunciara a Augusto o nascimento de Jesus. Em 1481, o domínico frei Filippo Barbieri escreve a obra Discordantiae nonullae inter sanctorum Hieronymim et Agustinum e aí

fala de DOZE SIBILAS, tal como os PROFETAS e os APÓSTOLOS. As Sibilas anunciaram as bases do Cristianismo: a sibila Eritreia fala da Anunciação, Samia da Natividade, Pérsica a Virgem Apocalíptica, a Europa a matança dos inocentes, a Tiburtina a Paixão; Cimeria, a maternidade; Délfica, a coroação de Maria; Hellespontica, o Calvário. Em 1601, em Colónia, foi publicado um ciclo de gravuras de Crispim van der Passe I, que teve grande difusão. Em 1621, em Cuenca, o Padre Baltasar Porreño edita uns populares Oraculos de las doce Sibilas.

Um caso português: o ciclo de frescos com Sibilas e Profetas da igreja matriz de Santa Maria de Machede (Évora). Reconstruída no início do século XVII segundo traça de Pero Vaz Pereira, arquitecto do Duque  de Bragança D. Teodósio II, a igreja matriz de Santa Maria de Machede é a mais antiga freguesia rural do actual Concelho de Évora, já que se sabe que o edifício foi sagrado em 1221, no reinado  de D. Afonso II (ainda que alguns defendam origem mais remota, de c. 672, ao tempo do rei godo Wamba). Teve obras importantes no tempo do Cardeal-Infante D. Henrique (1532). A campanha remanescente é brigantina e decorreu de 1604 (data da traça) até 1624 (data inscrita  no portal, de pedra de Estremoz).  Por estes anos, o interior sofreu grandes decorações, cabendo ao pintor  Pedro Nunes o novo retábulo (de que resta uma tábua) e a um pintor não identificado o ciclo que  reveste o interior com interessante ciclo fresquista de REIS, PROFETAS e SIBILAS, fruto de um complexo programa iconológico que caberá tributar a Pero Vaz Pereira, arquitecto e escultor ducal com sólida educação romana.  O pintor dos frescos, acaso oriundo dos estaleiros de Vila Viçosa, é desconhecido... Na segunda metade do século XVIII uma nova campanha depauperou o acervo artístico da igreja, com grandes remodelações na fachada e no presbitério e com frustes repintes no conjunto dos frescos seiscentistas com as Sibilas e Profetas, cujo teor iconográfico deixara de ter sentido e actualidade...


Casos de estudo no campo da Iconologia: algumas telas de Velázquez.

12 Abril 2018, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A FORJA DE VULCANO DE DIEGO VELÁZQUEZ. Aquilo a que Erwin Panofsky chamou a «captação do fenómeno artístico», ou seja, o estudo do que corresponde ao mundo das formas puras enquanto portadoras de significados naturais, encontra nesta grande tela de Velázquez um óptimo testemunho de aplicação. A obra remonta a c. 1634, após a volta da primeira estância em Roma, e grangeou grande sucesso pelo seu virtuosismo. O quadro, par de «A Túnica Ensanguentada de José» (Prado), espantou (desde Goya, que em fins do séc. XVIII o avaliou no Palácio Real em 80.000 reales) toda a crítica, pelo clima de densidade atmosférica, vibração dos modelados, dinâmica das diagonais, etc. Em termos de ICONOGRAFIA, que trata segundo Panofsky das categorias ou «tipos» que formam histórias ou alegorias, este quadro segue as Metamorfoses de Ovídio, de que Velázquez possuía duas traduções, a de Ludovico Dolce (1539-57) e a espanhola (a de Jorge de Bustamante de 1551 ? Ou a de Pedro Sánchez de Viana, Valladolid, 1589 ?). Las Transformaciones de Ovidio com el complemento y explicación de las fábulas,  Reduziéndolas a philosophia natural y moral y astrologica e historica  é ilustrada com xilogravuras, pelo que parece que foi a que o pintor utilizou. 

Também as fontes de tradição cristã medieval e a Philosophia Secreta de Pérez de Moya (1585) foram utilizados. O Ovídio moralizado do Cristianismo serviu ao pintor régio  de D. Felipe IV para a sua cena. Tomou os versos ovidianos 169 a 174: «Hasta de aquel que todo lo regula com su luz celestial, del Sol, se adueñó el Amor; voy a contar los amores del Sol. Se tiene a este dios por el primero que vio el adulterio de Venus com Marte; es el dios que todo lo ve el, primero. Se escandalizó de la fechoría, y reveló al marido, hijo de Juno, el secreto ultraje a su lecho y el lugar del ultraje». O Sol, que viu os amores lascivos de Vénus, foi contá-los a Hefesto (Vulcano), que se dirigiu para a fraga a trabalhar em fúria. As duas figuras estão bem patentes na tela. E as outras ? Ora é um gravado da Eneida de Virgílio (liv. VIII, 190), ao descrever a Vulcania, terra  de Vulcano, onde trabalhavam os ciclopes a arte dos metais, que o artista seguiu  aqui. São estes Brontes, Estéropes e Piracmon, que moldam um escudo sagrado contra os latinos, e Gallo, o protector dos amores ilícitos, que Vulcano castigaria de seguida... A FASE ICONOLÓGICA, que capta o significado intrínseco da obra, ou seja, o programa último da obra, leva-nos a entender que Velázquez utilizou a mitologia clássica e a fábula pagã com um claro sentido moralizante (cristológico), ligando o adultério à desonra, e apelando ao prémio da virtude. O castigo que a Divina Justiça inflinge sempre, mesmo aos poderosos, é aqui rememorado, numa sociedade barroca cortesã profundamente lasciva em que um quadro como este não podia deixar de ser matéria de debate. 

Outra obra famosa, Las Hilanderas é encomenda possível do Marquês de Eliche, D. Ramiro Núñez de Guzmán, genro de Olivares, e foram de seguida da colecção de Pedro de Arce, são uma figuração da LENDA DE ARACNÉE, no momento do seu desafio a ATHENA Para um concurso de tapeçaria. Aqui, a alegoria à Obediência, Diligência e Solicitude, tomando a fábula pagã como tema de reflexão social, é evidente: Aracnée venceu, mas a deusa, em despeito, destruíu-lhe a obra; a jovem tapeceira enforcou-se e Athena transformou-a em aranha. Velázquez representou o mito, não no momento da metamorfose de Aracnée, mas na fase do concurso. E o tapete que representa ao fundo é o Rapto de Europa, de Ticiano, aol tempo no Alcazar...