Sumários

Uma leitura de Heinrich von Kleist Professores Pedro Florêncio e Sérgio Mascarenhas

5 Abril 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

ABRIL                                 2 ª FEIRA                                        10ª AULA

 

5

 

ESPETÁCULO E COGNIÇÃO: UMA LEITURA DE HEINRICH VON KLEIST

Sérgio Mascarenhas, 5 de abril de 2021

 

A sessão do seminário foi dedicada à apresentação de vários textos de Heinrich von Kleist.

Começámos com o seminal “Sobre o teatro de marionetas”. Destacaram-se os seguintes pontos:

·        Intervenção contrastante de duas vozes, a do narrador e a do seu interlocutor, o Senhor C. Entre ambas, onde se situa a voz do autor?

·        Decomposição do texto nas várias etapas do diálogo: intervenção inicial de C sobre o teatro de marionetas; intervenção do narrador em torno do jovem perante o espelho; intervenção de C sobre o confronto com o urso; conclusão. Como se articulam estas micronarrativas entre si?

·        A linha de força do texto: a graciosidade como movimento físico / ação não condicionada pela reflexão, evitando-se assim a sua afetação. É esta uma questão relevante para a prática artística?

·        As opções finais do texto – corpo destituído de espírito ou corpo e espírito divinos – são viáveis como opção para o artista? Ou representam um impasse sem solução?

Procurámos identificar outras instâncias em que Kleist coloca a mesma questão de fundo explorada em “Sobre o teatro de marionetas”. Verificámos que esta questão está presente nas suas reflexões sobre poesia, pintura, história, argumentação (política, jurídica).

Identificámos três possíveis alternativas presentes na reflexão de Kleist para a saída do impasse acima enunciado, alternativas consistentes entre si:

·        Reconfiguração da articulação entre ação e reflexão, cf. “Da reflexão”, em tais termos que a última não interfere com a primeira quando esta ocorre.

·        Valorização da graciosidade presente na obra imperfeita, não se exigindo assim a graciosidade total, cf. “Um princípio da crítica superior”.

·        Libertação da ação pela firmeza do espírito em movimento (coragem, convicção), num processo de pensamento onde fim e percurso não são pré ordenados pela reflexão, antes se vão desdobrando no processo dialógico entre humanos, cf. “Sobre a gradual elaboração dos pensamentos no discurso”.

 


Férias da P

29 Março 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Férias da Páscoa


Continuamos inacabados Professores Alexandre Pieroni Calado, Pedro Florêncio, Sérgio Mascarenhas

22 Março 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

MARÇO                        2ªFEIRA                                           8ª AULA

 

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Devo assinalar um erro acontecido na interpretação de material contemporâneo trabalhado pelo coreógrafo Gerhard Bohner (1936-1992) a partir de curtas cenas de Oskar Schlemmer e reunidas sob a designação de Homem e Máscara. Vimos na passada aula esta compilação reconstituída, mas, dessa vez, pela coreógrafa Margarete Hasting e datada de 1969.

Para a aula de hoje eu tinha pensado em que pudéssemos ter acesso aos exercícios sob forma original, a preto e branco, e que no meu pensar provinham de arquivo. Porque me equivoquei? Porque para cada cena o filme mostrava imagem em letra gótica que anunciava a respectiva cena, o lugar onde ela fora apresentada e a respectiva data. Criei uma percepção de uma montagem que, sem sequer ter em conta a titulação de autoria, contribuiu para um filme próprio e não aquele exibido em DVD.

Este tipo de experiência pode acontecer a qualquer um de nós, se bem que as suas desconstrução e reparação possam levar mais ou menos tempo e dependam da acumulação de dados e informação que, entretanto, foram sendo trabalhados. Toda a minha interpretação baseava-se no tempo histórico e naquilo que a reconstituição de Hastings programara segundo os escritos e esquissos de Oskar Schlemmer. Até a partitura executada pelo No Set Ensemble me pareceu possível ter sido criada para as cenas de Schlemmer. É na mente de observador-intéprete que um processo de consciência «(…) ganha fidelidade podendo dar origem a uma grande variedade de perspectivas», diz Damásio em O Livro da Consciência (p. 167). A perspectiva que abracei sem questionamento derivava da memória emocional com que acedi a arquivos sobre a e da República de Weimar e sobre o e do nacional-socialismo, e de onde as imagens com legendas das coreografias de Bohmer poderiam ter saído. Construi pensamento a partir da realidade das imagens contemporâneas na expectativa de ter alcançado ou de vir a alcançar o que nunca antes vira: trabalho de Schlemmer filmado. As imagens visuais não eram nem serão nunca a mesma coisa.

Sabemos então que ver hoje Schlemmer e as suas coreografias como representação de época é quase tão ilusório como esperar ver Gret Palucca na sua dança acrobática ou na modulação de desenho coreográfico subtil. O mesmo poderemos referir a propósito de Kandinsky e das várias réplicas de Quadros de uma Exposição que DVDs e a Internet põem à nossa disposição sem que a verdade das obras alguma vez se acerque de nós.

Nestes três módulos estivemos a trabalhar sob o signo da repetição que não conhece o original, ou melhor, dá apenas a conhecer alguns caminhos arquivísticos em direcção a esse original. Terão sido suficientes os nossos esforços? Teremos nós compreendido que o tempo da Bauhaus, apesar de todos os meios ao nosso dispor e de todas as propostas de a reanimar, é um tempo e foi um tempo em diferentes espaços que se ajustava a uma época em mudança, embora bem distante da nossa contemporaneidade?

Se perguntarem se nessa época o cinema não estava já em grande actividade, eu direi que sim. E há registos de filmes da Bauhaus de cineastas experimentais como Werner Graeff, Kurt Schwerdtfeger, Kurt Kranz, Hans Richter, entre outros. O Professor Pedro Florêncio conhece bem alguns destes trajectos. No entanto, as oficinas de teatro e de dança, sendo importantes no contexto geral da Bauhaus não terão convocado o registo cinematográfico para os seus trabalhos. Ou, uma outra possibilidade, o caos da II Guerra Mundial deixou arruinada muita arte.

Sem dúvida são importantes todas as bibliotecas e todos os arquivos, todos os testemunhos pessoais que ainda foi possível recolher e que, a nível mundial, contribuíram para que as celebrações dos 100 anos da Bauhaus em 2019, a consagrassem num vasto horizonte de memória de diferentes culturas abraçadas.  Internacionalidade do projecto assim o determinou.

 

Algures no sumário anterior terei escrito isto: O artista [Schlemmer] revela-se, na minha perspectiva, um ser paradoxal, que se revê na figura do inacabamento e, ao mesmo tempo, é um exigente formalista no enquadramento do ser humano no espaço.

Poderemos considerar a figura do inacabamento de um ponto de vista estritamente operativo e prático. Ela relaciona-se com as circunstâncias de financiamento de que Oskar Schlemmer dependia para realizar as suas coreografias e figurinos. Não havendo dinheiro os trabalhos paravam e ficavam no aguardo de melhores dias. As pequenas cenas de Man and Mask são disso exemplo, apesar de todas terem sido apresentadas em 1929 na Bauhaus.

Já de um ponto de vista de construção artística podemos recordar o prolongado aprimoramento realizado com o Ballet Triádico, sua única obra de mais comum conhecimento e também exibida na Bauhaus, iniciada em 1912 e alvo de várias versões até ao ano de 1929.

A ideia de inacabamento, porém, pode ser vista de um outro ângulo. Se considerarmos a personalidade inquieta do artista, a multiplicidade dos seus interesses e diferentes formações, e o facto de se debater sempre entre pelo menos dois pontos de vista contrários de cada vez. Tal diz respeito a categorias como apolíneo e dionisíaco, dimensão real e domínio metafísico, recurso a influências populares, como o folclore russo ou a commedia dell’arte, reconversão do ballet clássico em contraponto com a criação de desfiguração das formas humanas, também porque foi sua escolha ao mesmo tempo aproximar-se de eleitos autores germânicos do primeiro e segundo Romantismo, respectivamente - Heinrich von Kleist ou E.T.A. Hofmann. O primeiro ditava em Sobre o Teatro de Marionetas (1799+/-) o primado da marioneta sobre o humano, em função desse objecto poder ser o símbolo de uma vida não perturbada pela reflexão. A marioneta apresenta-se com toda a graciosidade e dignidade que são afinal qualidades do movimento e que geram harmonia e simetria. O seu intrínseco comportamento enquanto ser-objecto “calmo, leve e gracioso” advém da capacidade de tornar identificável o centro de gravidade que põe essa força em movimento. O ensaio de Kleist é muito mais do que isto, mas Schlemmer é ainda mais vago sobre o que escreveu o seu conterrâneo. O que o distingue é, porém, a aplicação do princípio da marioneta no trabalho com os seus bailarinos.

Quanto a E.T.A. Hofmann, a influência é de uma natureza misteriosa e inspirada em tradições herméticas que invocam no autómato uma espécie de ser qualificado capaz de superar a criação divina, melhorando assim a natureza humana. Em Schlemmer são alguns dos figurinos artísticos que surpreendem neste registo, mas é na espectacularidade da dupla inscrição mecânico/orgânico que tudo se passa sem que seja visível a referencialidade de leituras e inspirações. A leveza, a calma e a graça dos bailarinos schlemmerianos arriscam seguir orientados os fundamentos do Mestre que reconheceu na figura da marioneta kleistiana o princípio poderoso da não consciência, ao mesmo tempo que orientava com rigor metodológico as suas criações para dança.

E o inacabamento?

O inacabamento vive de uma linha de continuidade dos trabalhos de Schlemmer que aspiram a desdobrar-se no que são, no que se acrescenta, no que se retira e substitui e de que nem o Ballet Triádico é excepção.

Termino com três citações diarísticas do nosso artista e que me parecem adequadas ao tópico do inacabamento.

One might ask if the dancers should not be real Puppets, moved by strings, or better still, self-propelled by means of a precision mechanism, almost free of human intervention, at most directed by remote control? Yes! It is only a question of time and money. The effect such an experiment would produce can be found described in Heinrich Kleist’s essay on the marionette. (Schlemmer, 1990: 197, entrada do diário de 5 de Julho de 1926)

 

I would place the human figure at the center of my investigations. “Man, the measure of all things” provides so many possibilities for variation and for relashionships to architecture and craftmanship that one would merely have to extract the essentials. Therefore: measurement, proportion, and Anatomy; tipicality and special features. The various guiding ideals of the different artistic styles. The dynamics of the body. Movement. Dance. Kinesthetic sense. Man in his relationship to the world about him.

(Schlemmer, 1990: 133, entrada do diário de início de Novembro de 1922)

 

Paint this renunciation! My last picture.

I am filled with doubts, and thus cannot reach the ear of God. I am too modern to paint pictures. The crisis in art has me in its grip. Perhaps I am not stable enough. I approach my work with great trepidation. Agonize more than I paint.

Theater! Music! My passion! But also: the scope of this particular field. Theoretical possibilities that suit my disposition, because this is natural to me. Free run for the imagination.

Here I can be new, abstract, everything. Here I can be traditional successfully. Here I need not stumble into the dilemma of painting, relapsing into na artistic genre in which I secretely no longer believe. Here my desires coincide with my temperament and with the contemporary mood. Here I am myself, and yet a new person. The only one in the field, without competion.

A late realization, but perhaps not too late. Sense of liberation!

(Schlemmer, 1990: 171, entrada do diário a 13 de Julho de 1925)

 

Leitura para citações

SCHLEMMER, Oskar, 1990, The letters and Diaries of Oskar Schlemmer, selected and edited by Tut Schlemmer, translated by Krishna Winston, Evanston, Illinois: Northwestern University Press.

 

 

 

 

Dança dos paus, esquisso. Representações entre 1926-29. Lápis e lápis de cor. 40,2x29,8 cm.

 

Resumo em apontamento

Tessitura de cena

Apresentação de algumas ideias centrais relacionadas com o trabalho artístico de Oskar Schlemmer na Bauhaus:

-- Importância e influência da arquitectura como arte do espaço e da construção da forma na concepção de palco e na construção coreográfica. Criação do conceito de “arquitectura em mudança”.

- Relação entre máquina e abstracção na procura de um novo e moderno ser humano.

- Concorrência produtiva entre elementos em palco (objectos, materiais, estruturas, maquinarias) e o ser humano, no sentido de estabelecer um melhor conhecimento entre o humano e a técnica. Sujeição de actores e bailarinos ao mecânico como procura de enquadramento de um corpo inabitual.

- Associação da geometria e da estereometria ao estudo do comportamento humano em dança.

- Poeticização do corpo humano através da dança, a partir de uma visão estética e crítica da realidade de época profundamente racionalizada.

- Criação do conceito de Figura artística como resultado da valorização de figurino e máscaras e como extensão e reconfiguração do próprio corpo humano. Questionação sobre novos corpos imaginados e sobre a sua revivência.

 

Visionamento de materiais a partir das pequenas obras originais de Oskar Schlemmer que nunca efectivamente vimos e revisitações contemporâneas das mesmas. Comentário inspirado por Oskar Schlemmer, um artista paradoxal, que se revê na figura do inacabamento e ao mesmo tempo é um exigente formalista no enquadramento da representação humana no espaço.

DVD visionado

Bühne und Tanz | Stage and Dance – Oskar Schlemmer, Edition Bauhaus, 27 min., Objecto fílmico reconstruído por Margarete Hasting (1969) e Gerhard Bohmer (1980). Língua alemã, língua inglesa na legendagem inicial de cada coreografia, 2014.

 

Oskar Schlemmer – Articulação entre «ser humano e espaço»

 

Estivemos assim mais atentos não apenas aos efeitos causados pela surpreendente concepção de figurinos, seu uso e enquadramento espacial, mas passámos a dedicar mais tempo ao movimento dos intérpretes e à sua interacção.

Em Ballet Tríádico (versão de 1969) foi-nos permitido salientar o modo como a concepção cenográfica se apresenta na qualidade de um espaço cúbico abstracto (apenas indiciado pela mudança de cor em cada ballet apresentado), e como apesar dessa característica inerente à espacialidade, conseguimos olhar para os bailarinos como construtores de movimento e em directa relação com esse lugar despojado ou onde pontuam estruturas cénicas de utilização variada. Olhámos então para os bailarinos reconhecendo neles a capacidade de transformarem o espaço abstracto em espaço organicamente biológico através dos seus corpos, experiência e acção.

É de Schlemmer a ideia de que como espectadores somos capazes de criar um imaginário mental (e fazemo-lo várias vezes), emocional, também espiritual, que constrói um espaço próprio com função mediadora entre o espaço cénico e o trabalho em cena dos bailarinos. Quer isto dizer que o tema schlemmeriano que articula «o homem e o espaço» existe.

No caso da revisitação de Margarete Hasting, constatámos uma fidelidade muito expressiva da coreografia, mas sem grande liberdade de criação relativamente à proposta de Oskar Schlemmer. Os bailarinos-figurinos vão preenchendo o espaço e dele se apropriando em solos e contracenas que utilizam o trabalho em pontas, o salto coreográfico, ou o pas de deux, embora também a pantomima, ou a dança popular.

A perspectiva schlemmeriana que tematiza preferencialmente a «relação do homem com o espaço» tem aqui uma proposta clara de síntese entre o espaço abstracto (a cena) e o espaço orgânico (o dos bailarinos), sendo que a articulação entre ambos resulta de uma construção que se propõe assimilar o espaço orgânico e emocional (bailarinos e espectadores) em busca de uma nova unidade entre «intelecto, corpo e alma». Neste contexto, o entendimento do duplo espaço adquire uma condição dinâmica que aproxima Schlemmer de alguns românticos, na medida em que para ele a relação do homem com o espaço pressupunha a ligação ao espaço cósmico.

A sua concepção da arte, mesmo inspirada por princípios de imaterialidade inerente à ideia de Cosmos, não abdicou nunca das características da modernidade artística do seu tempo. E é por isso que o palco era para ele uma espécie de laboratório onde as «figuras artísticas» desempenhavam uma tripla função: ocupavam progressivamente um espaço que lhes era em princípio estranho, interagiam com ele corporalmente e expressavam uma dimensão simbólica também contida nesse programa artístico.

 

Tivemos oportunidade de visualizar em imagem a relação geometricamente medida e desenhada através da qual o espaço circunscreve a figura humana criando com ela uma abrangência total. Seguindo a presença humana no centro do desenho, apercebemo-nos de um duplo movimento a realizar. Por um lado, o bailarino, na sua dimensão ínfima expande toda a sua actuação pelo espaço e em todas as direcções, permitindo-lhe essa característica fruir a distância a três dimensões e sem fronteiras. Por outro lado, porém, o bailarino tem a percepção de que o espaço geometricamente construído se torna numa limitação ao seu desempenho. Aparentemente perdendo a identidade artística, os bailarinos de Schlemmer ocupam-se de uma adaptação entre as duas leituras do espaço. A construção das partituras coreográficas torna salientes as movimentações de inspiração mecânica e repetitiva que obrigam a marcações de chão, também elas desenhadas geometricamente (Homem e Máscara). No caso desta coreografia, encontramos, porém, variações entre os elementos do trio em acção. Nessas variações é expressa a vertente de crítica social que é também apresentada pelos exercícios vocais. Apercebemo-nos assim de processos de evolução de exercício coreográfico para exercício coreográfico, se bem que os maillots almofadados e as máscaras promovam processos de identificação igualitária.

Esta coreografia-exercício é de uma simplicidade fenoménica e traduz claramente o espírito de crítica social à burguesia de época. Nem sempre Schlemmer se ocupa deste tema.

Deixámo-nos fascinar por uma Dança dos Paus contemporânea, quase esquecendo que a coreografia original tinha sido concebida para um trio e não para um solo. E mais havia a relembrar que os manipuladores das estruturas de paus desempenhavam a função de manipuladores-construtores como acontece com as marionetas de vara.

A composição de Gheorghe Iancu (2010) ganhou asas em relação à proposta do Mestre. O exercício só idêntico à Dança dos Paus de Schlemmer no rigor e na destreza e na precisão das mudanças de posição dos paus, joga com um elemento fundamental - a música de J. S. Bach. Também o efeito de luz abre espaço para outras interpretações. Tudo está à vista, questão que não se colocou a Schlemmer.

Apesar das diferenças é importante que não esqueçamos que as opções de Schlemmer inspiraram um bailarino contemporâneo. Muitos outros terão sido por ele inspirados. De certo modo, o espírito da Bauhaus mantém-se vivo. E a ideia de inacabamento recupera um novo fôlego.

 

Link sugerido:

http://www1.sp.senac.br/hotsites/blogs/revistaiara/index.php/ballet-triadico-da-bauhaus-pesquisa-experimentacoes-e-execucao-reflexoes-e-registros-percurso-de-uma-reconstituicao/

 

Vídeos aconselhados:

https://www.youtube.com/watch?v=mHQmnumnNgo&t=148s (Ballet Triádico)

https://www.youtube.com/watch?v=wt4Hl8zcOt4 (versão inglesa de Homem e Máscara de 2019, 4:07)

https://www.youtube.com/watch?v=m40jBghI0To (apenas a parte final de Homem e Máscara)

https://www.youtube.com/watch?v=0j0x325uR8s (dança dos paus)

https://www.youtube.com/watch?v=cjOXj0AVRk8 (recriação da dança dos paus de Oskar Schlemmer, com música de Johann Sebastian Bach, por Gheorghe Iancu, 2010, 6:37)

https://www.youtube.com/watch?v=lSpowyovAwo (momento do teatro total)

https://www.youtube.com/watch?v=lSpowyovAwo (espaço, movimento e o corpo tecnológico – um tributo à Bauhaus e a Oskar Schlemmer)

https://www.youtube.com/watch?v=m40jBghI0To


Conspirações schlemmerianas Professores Alexandre Pieroni Calado Pedro Florêncio SérgioMascarenhas

15 Março 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

2ªFEIRA                                       7ª AULA

 

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Apresento aqui breve apontamento bibliográfico sobre concretismo e poesia concreta portuguesa no quadro europeu e na sequência de conversa em torno do ensaio de Kandinsky Sobre a Questão da Forma que nos deu a ver, através dos exemplos enunciados em corpo de texto, que a liberdade da arte é igual à liberdade da vida. A questão da forma está no ponto de vista e o que hoje é «matéria morta» será amanhã vivência rejuvesnecida.

https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=poesia+concreta+portuguesa&sa=X&ved=2ahUKEwiSxL3D5rDvAhUJkxQKH

Concretismo - Infopédia (infopedia.pt)

Poesia concreta e experimental - Infopédia (infopedia.pt)

https://escalanarede.com/2015/10/06/ana-hatherly-onoff-tres-poemas-experimentais-forma-corpo-desordem/ (Longo, mas útil)

 

Terceiro estudo de caso

Iniciámos a nova unidade de programa sobre Oskar Schlemmer (1888-1943) e o seu teatro-dança com o visionamento de curtas cenas, hoje reconstituídas, que serviram de mote para discutirmos vários aspectos suscitados pelo desempenho artístico e pela construção de movimento e repouso no espaço.

Do conjunto de contributos para um alargamento da discussão sobre o material cénico apresentado tivemos importante explicação sobre o funcionamento do quadrado em dança e suas especificidades entre momentos sequenciais (Elsa), pudemos ter acesso a trabalho concebido por Beckett (dança do quadrado), observámos performance de Bruce Nauman caminhando num quadrado, ambos mostrados pelo Prof. Alexandre, seguimos pequeno vídeo de época sobre artes marciais no Japão, comentado pelo Prof. Sérgio, e associável também ao historial bélico da I Guerra Mundial, na qual Schlemmer participou. Estando hospitalizado durante um longo período, Schlemmer entretinha-se a ver outros doentes a jogar xadrez, tendo retirado dessa experiência o efeito da construção das jogadas no tabuleiro que transporia para o espaço cénico como tivemos oportunidade de observar em diversas das cenas exibidas.

Foram referidas também as opções de cor – vermelho, azul, amarelo, branco, preto, cinza – que Schlemmer partilhava com os seus colegas Mestres, Kandinsky, em primeiro lugar, mas também Itten.

A este propósito e explicitando qual era o seu entendimento de teatro, Schlemmer escreve em diário de 1929 o seguinte:

 

The recipe the Bauhaus Theatre follows is very simple: one should be as free of preconceptions as possible; one shpould act as if the world had just been created; one should not analyze a thing to death, but rather let it unfold gradually and without interferance. One should be simple, but not puritanical. (“Simplicity is a noble concept!”) One should rather be primitive than over-elaborate or pompous; one should not be sentimental; one should be sensitive and inteligente. That says everything-and nothing!

Furthermore: one should start with the fundamentals. Well, what does that mean? One should start with a dot, a line, a bare surface: the body. One should start with the simple, existing colors: red, blue, yellow black, white, gray. One should start with the materials, learn to feel the differences in texture among such materials as glass, metal, wood, and so on, and one should start with space, its laws and its mysteries, and let oneself be “captivated” by it. This again says a great deal-or it says nothing, if these words and concepts are not felt and made reality.

One should start with one’s physical state, with the fact of one’s own life, with standing and walking, leaving leaping and dancing for much later. For taking a step is a grave event, and no less so arising a hand, moving a finger. One should have deep respect and deference for any action performed by the human body, especially on the stage, that special realm of life and illusion, that second reality in which everything is surrounded with the nimbus of magic….

All these are the precepts one should follow! They will lead, if not to the key, at least to the keyhole to the riddle which the Bauhaus Theater seemingly poses. (Schlemmer, 1990: 243-244)

 

Estamos perante um programa detalhado do seu fazer teatral e de que se salienta uma estruturação orgânica dos elementos a utilizar, uma simplicidade de meios que só assim são entendidos por quem esteja distraído (a construção dos figurinos mesmo nas cenas que observámos são verdadeiras obras de arte), um receituário que assim se aplica em nome do corpo humano que precisa de aprender a reconhecer-se enquanto tal. Partindo do funcionamento do organismo vivo (biomecânica) Schlemmer propõe a criação de uma nova linguagem para o teatro-dança que oscila entre o reconhecimento corporal nas suas funções e disposições e a fixação de um modelo em variações que nasce no chão para ser seguido mas também para ser abandonado. A proporcionalidade entre cor e forma transpõe para a tridimensionalidade padrões que se usam e revisitam e se expandem numa leitura abstracta que muito deve à teorização e prática de Kandinsky em Ponto Linha Plano.

É neste contexto que recordamos, entre outras intervenções, todas muito a propósito, as metáforas da ortodontia (Eliane, ela mesma formada nesta área) e a da ortopedia (Prof. Pedro), esta última associada à política e à sociologia, relevantes aspectos do entendimento da Bauhaus. Estas metáforas ajudam-nos a reflectir sobre precisão instrumental e uso de tecnologia bem como sobre a referenciação do corpo e gestualidade em função de um jogo permanente que muito deve à crítica social, à politização da arte e, em última instância, à constante colaboração entre estética e ética.

 

Oskar Schlemmer está aqui a ser invocado na perspectiva do exercício que prepara o número de dança nunca chegando ao seu fim. Quer isto dizer que cada cena tem princípio, meio e fim, claro, mas que essa disposição orientada numa e para uma cena pode criai entrelaçamento noutras cenas com motivos composicionais idênticos (ver dança do espaço, dança das formas, dança dos gestos), ainda que narrando através de movimento e repouso episódios independentes. O artista revela-se, na minha perspectiva, um ser paradoxal, que se revê na figura do inacabamento e, ao mesmo tempo, é um exigente formalista no enquadramento do ser humano no espaço.

Anda estamos atentos às suas pequenas obras, por enquanto mais do que à obra que o consagrou, Das Triadische Ballet (O Ballet Triádico), entre 1912 e 1929, e que foi apresentada em versão completa na cidade de Stuttgart em 1922. Justamente esta obra é composta por três actos com correspondência em três cores e seus simbolismos: amarelo, rosa e negro, sendo representada por dois actores/bailarinos e uma actriz/bailarina. A múltipla tríade que percorre quase todas as suas obras e tem o seu expoente no Ballet Triádico  manifesta ainda a particularidade de atribuir aos imaginosos e portentosos figurinos de Schlemmer o protagonismo na composição cénica.

Conta ainda o Ballet Triádico com música criada por Paul Hindemith, o compositor que, em 1929, viria a trabalhar com Brecht em torno da peça didáctica, como o Vôo de Lindbergh e de outras formas de experimentação com actores amadores e profissionais.

Uma chamada de atenção neste caso para a música torna-se importante, uma vez que a concepção plástica e coreográfica do Ballet Triádico pode diluir por excesso a atenção do espectador desviando-o, sem que disso se dê conta, da partitura.

Poderemos espreitar mais adiante o Ballet Triádico a propósito de questões suscitadas pelos pequenos exercícios que estamos a analisar. De qualquer modo aqui fica o link para visionamento.

https://www.youtube.com/watch?v=mHQmnumnNgo (30’23)

 

Entre 1923 e 1929, Oskar Schlemmer, em conjunto com os seus alunos da Bauhaus, da oficina de Teatro e Dança, mas também com a colaboração dos alunos das oficinas de tecelagem, madeiras e outros materiais, projecta curtas cenas que ajudam a estabelecer uma relação prática com os pressupostos de natureza teórica em que acredita e que mantém integrados no seu ensino e na sua concepção artística. Ao titular esses exercícios de  «Dança das formas», «Dança em vidro», «Dança em metal», «Dança dos paus» ou «Dança no espaço», Schlemmer destaca materiais e formas como componentes de uma construção em que o espaço performativo se envolve directamente com todo um conjunto de variáveis (luz, cor, forma, movimento e figurino artístico – o ser humano deformado da sua condição natural) como proposta  matematicamente acertada e na qual o ser humano tem a possibilidade de se transfigurar num espaço/palco que nos dá a ver como se constrói e se materializa a arquitectura funcional enquanto espaço de representação.

Estas pequenas peças constituem o nosso caderno de encargos sobre todos os elementos artísticos integrantes, com destaque para o movimento corporal em abertura e fechamento de sequências que as estruturam. Integraremos aplicação teórica sempre que a propósito.

O acesso a este espólio de Oskar Schlemmer ficou a dever-se ao trabalho em arquivo de investigadores, artistas e técnicos que têm vindo a replicar a obra do artista desde os anos sessenta do século passado. Veremos, portanto, reconstruções e originais.

 

Para tornar mais acessíveis as propostas teóricas de Oskar Schlemmer fui escrevendo um texto desde o Verão passado e até agora na expectativa de descomplexificar a sua ideia de arte.

Fotografia de exterior da oficina de teatro e dança com figurinos organizada por Oskar Schlemmer na Bauhaus de Dessau, 1927.

 

HORA E MEIA COM OSKAR SCHLEMMER

1. Ao termos visto alguns dos exercícios e jogos criados por Oskar Schlemmer e pelos seus alunos na oficina de Teatro e Dança da Bauhaus, entre 1923 e 1929, e poderemos compará-los em versão reconstruída e em filmagem original de época. Atentaremos, volto a sublinhar, em alguns dos nomes atribuídos a essas curtas cenas: «Dança das formas», «Dança em vidro», «Dança em metal», «Dança dos paus» ou «Dança no espaço». Assim compreenderemos que estas designações referenciavam materiais ao mesmo tempo que descobriam e desenvolviam movimentos corporais e criavam relações destes com o espaço.

2. Para os Bauhäusler o palco surge como um lugar, mas também como um meio de criação de novos modelos de apropriação e interacção com o espaço. Esta visão encontra paralelismo em concepções semelhantes entre futuristas, dadaístas e construtivistas que se questionavam e punham em acção projectos artísticos que consideravam a cena como lugar de experiência com selo de vanguarda.

Acontece, porém, que o fenómeno em desenvolvimento na Bauhaus possuía uma componente fundamental praticamente ausente em termos sistemáticos nos outros movimentos modernistas. A presença da arquitectura como arte do espaço e da construção da forma acaba por influenciar de maneira diversa de outras propostas contemporâneas de então o rumo das artes cénicas na Escola da Bauhaus.

Se Kandinsky se refere na sua teorização sobre Composições para Palco a uma síntese das artes e também a uma obra de arte total, privilegiando a transdisciplinaridade mas sobretudo a organização do espaço, a sua iluminação, a profundidade e a dinâmica das formas em movimento, na esteira de uma visão crítica daquilo que Richard Wagner considerava ser o contexto operático a partir das suas partituras e do equilíbrio entre as artes em palco, verificamos que, por exemplo, Walter Gropius se torna defensor de um «Teatro total» que para ele tinha a vantagem de permitir a cada encenador uma utilização variável e flexível do espaço de cena, quer sob a forma de arena, com extensão móvel para o proscénio, ou ainda considerando perspectivas em profundidade com cobertura de toda a área disponível. Gropius propôs este seu projecto a Erwin Piscator, mas não o conseguiu fazer aprovar.

Outros mestres da Bauhaus, como o austro-húngaro Andor Weininger, usam designações como «Teatro em abóbada» ou «espaço de palco construtivo». A ideia de construção, de articulação de elementos e de estruturas, própria de uma arquitectura de cena que se conjuga com as necessidades e desempenha funções precisas e essenciais, dá origem ao entendimento da área cénica em toda a sua proporcionalidade e dimensão como se se tratasse da concepção de uma casa.

Eficácia, aplicação de instrumentário tecnológico que revolucionava a movimentação e o sentido de orientação em cena (diferentes palcos giratórios, uso do vidro e do aço em zonas exteriores, projecções que interceptam as acções em cena) apelam a todo um conjunto de outras áreas artísticas como cenografia, construção e jogos de máscaras, figurinos, concepção de desenho de luz que absorvem o espírito de época na relação entre «máquina e abstracção», um binómio muito caro a Oskar Schlemmer que, apesar disso, opta em obra por uma concepção espacial muito discreta e poderíamos dizer pobre, quando comparada aos projectos arquitectónicos de outros dos seus colegas.

3.ballets mecânicos (como por exemplo, com Kurt Schmidt) que equacionam todo esse experimentalismo por vezes excêntrico, sem criação de grande empatia por parte de quem assiste, mas que se revelavam muito adequados à ideia de um «novo e moderno ser humano» e, como refere Oskar Schlemmer, que deveria ser um «ser humano dançante».

Assim o palco da Bauhaus era um lugar de incorporação arquitectónica, de experimentalismo de materiais, de trabalho com as formas, de modelagens permanentes, de uso de tecnologia já disponível e que era alvo de condições perceptivas que se adequavam às necessidades de cada momento.

Desta perspectiva a materialidade de cena transformava-se na presença e actividade de um conjunto de actantes (objectos, estruturas, maquinarias) que concorriam com a acção em palco do próprio ser humano. Importante parecia ser dar a medida, algumas medidas, da relação entre o ser humano e a técnica. E essa relação não era apenas fulgor e êxtase. Muitos dos exercícios composicionais propostos, por exemplo, por Oskar Schlemmer, indiciavam espírito crítico, vivência individual e colectiva, capacidade lúdica de transformação do corpo e da mente, uso da máscara e da pantomima como meios de distorção da realidade.

A leitura destes exercícios, em si múltipla pela variedade dos mesmos, mas também aleatória devido à repetitividade expansiva de alguns deles, não deixa, porém, de tornar relevante que o ser humano individualizado (o actor tradicional e o seu egocentrismo) perde a centralidade em prol de outros elementos que consigo concorrem no trabalho cénico. Com isto pretendo dizer que o ser humano não é banido do palco da Bauhaus. Ao contrário, o que verificamos é que existe uma nova consciência da presença e acção em palco da pessoa humana. O actor e o bailarino, a actriz e a bailarina representam-se enquanto indivíduos e enquanto seres colectivos a quem é pedida a consciência de que «o trabalho da máquina», como afirmava Karl Marx no 13º capítulo de O Capital (eu li em tempos a obra), reprime o jogo complexo dos músculos e confisca toda a atividade intelectual livre.»

Karl Marx parecia estar certo se pensarmos na realidade do primeiro Capitalismo, mas Oskar Schlemmer com o seu extraordinário aparato de geometrismos de chão de cena, adereços e objectos lúdicos, disfórmicos modelos, imaginosos transportes entre luz e ausência da mesma defendia que bailarinos e actores se deviam submeter ao mecânico e mesmo criar com ele empatia.

Em 1931, Schlemmer afirma num dos seus diários de trabalho sobre aplicação de medições geométricas e biologia humana: O mundo das formas que usei surgiu, por um lado, da teoria elementar da geometria e da estereometria [medição de sólidos], traduzidas em novos materiais estimulantes próprios do nosso tempo; por outro lado, [veio] da teoria elementar do corpo humano, que, como continuo a afirmar, também diz respeito a um ser de carne e osso, com mente e sensações, assim como com um esqueleto, tudo maravilhosamente funcional e exacto. Se esse lado do corpo humano for encarado como uma oportunidade para demonstrações fantásticas e sem negligenciar maliciosamente a síntese de ambas as possibilidades, basta apenas uma tentativa para estabelecer um equilíbrio com o outro lado, que é aquilo a que comummente chamamos de dança, e que é tão abundantemente representado»[1]

 

4. Estes procedimentos através dos quais Schlemmer, em conjunto com os seus bailarinos e actores, foi construindo inovação no espectro da dança do seu tempo, deu origem a representações artísticas que correspondiam a uma visão modernizada do mundo circundante. E, no entanto, esses procedimentos cientificamente testados transportavam consigo processos de poetização do próprio corpo ao explorarem uma nova linguagem imagética que se sobrepunha à presença e ao uso cada vez mais avançado da tecnologia.

A experimentação em palco resultou de uma prática elaborada sob o efeito de uma certa abstinência (exercícios limpos e bem desenhados) e de um pragmatismo sistemático com vista à criação de modelos explicativos de uma ordem que também se inspirava em paralelismos criados com a realidade, e dela se mostrando muito distantes ao mesmo tempo.

Clara era apesar de tudo a questionação de Schlemmer sobre o que de facto poderia ser entendido como realidade e como é que uma reflexão estética e crítica se posicionava perante um mundo cada vez mais racionalizado.

Cabe aqui referir, relativamente à compreensão da arte cénica, que o posicionamento de Oskar Schlemmer face à mesma se orientava por dois pressupostos: um de natureza estética e outro de natureza ética. No primeiro caso a forma estética recebia interpretação ética, isto é, independentemente do resultado formal estético, este teria sempre uma razão ética para existir e nessa condição estaria disponível para se devotar à nova arte funcional de poder vir a ser solução para os problemas da vida.

A função da arte para Schlemmer possuía uma “inspiração espiritual subjectiva”, a ideia ética, a que o artista atribuía o papel de projectar a nova arte alemã em direcção ao futuro. Deste ponto de vista, o novo teatro-dança com as suas peculiaridades poderia tornar-se abrangência geral. A vontade de aplicação desta ideia num contexto multidisciplinar criava as condições para que a obra de arte integrada (a forma estética) se tornasse objectiva.

Numa segunda perspectiva surge então a busca por uma arte metafísica que resultasse do equilíbrio entre estética e ética como criação artística que transcendesse o mundo visível. Ambivalente nas suas propostas, Schlemmer procura neste horizonte entre as duas formas de conhecimento uma síntese da arte:

«Vacilo entre dois estilos, dois mundos, entre duas atitudes perante a vida. Se eu pudesse ser bem sucedido ao analisá-las, creio que poderia desfazer-me das minhas dúvidas. As características do primeiro estilo são: severidade, dureza, contenção, retenção, reserva, profundidade. O efeito não está na superfície; um primeiro olhar deixa-nos frios, mas a pouco e pouco alguma coisa se revela ao espectador, através de acção retardada, como então acontecia. Estas são provavelmente as características essenciais da antiga arte grega e romana. As características do segundo estilo são diametralmente opostas às da arte da Antiguidade; que maior contraste não existiria do que o Gótico?  Ou o misticismo. Resumindo, nada que não seja supernatural, gigantesco, dionisíaco, arrebatado, extasiante, dinâmico.» (Schlemmer, 1915: 30-31)

 

T. Lux Feininger, Oskar Schlemmer em palco como palhaço-músico. Teatro experimental da Bauhaus em Dessau, 11,1 cm × 13,7 cm. 1929. gettyimages

 

 

Muitas das criações para palco de Oskar Schlemmer apresentavam-se como quadros sequenciais e que se interligavam através de imagens simbólicas, por vezes até metafísicas (as várias parcelas finais do Ballet Triádico apontam nesse sentido) e em que paradoxalmente o ser humano se entrega ao poder da máquina, do maquinal, relevando a partitura cénica de uma lógica de construção, de uma precisão de gesto e movimento, de uma sistematicidade que se cumprem quase de modo implacável.

Apesar desta vertente maquinal, técnica, racional de criar distanciação no espaço representacional artístico, Schlemmer nunca deixa de defender acerrimamente o ser humano como a criação mais perfeita do Universo.

 

5. A era da mecanização e da abstracção é, porém, encarada por Schlemmer como uma oportunidade para se analisarem e modelarem novas possibilidades de entender a mutabilidade dos comportamentos do ser humano. Questões como: natureza e técnica, mas também aspectos do domínio psicofísico, psicopolítico concorrem para que se coloque a pergunta como pode o corpo ser de novo imaginado ou como ele poderá ser revivido.

É dentro deste contexto que o artista cunha um conceito que talvez possa responder às preocupações estéticas e artísticas dos seus intérpretes e por extensão de quem os expecta. O conceito de Kunstfigur (Figura Artística) surge pela primeira vez no seu livro programático Mensch und Kunstfigur (Ser Humano e Figura Artística) de 1925.

É nesse livro que o futuro mestre da Bauhaus fala de quatro "tipos de figurino" que são fundamentais para ele e com os quais é possível criar uma "mudança de forma no ser humano" em direção à acentuada artificialidade e abstração. Essa aparente e invocada "arquitectura em mudança" está relacionada com:

i. As "leis do espaço cúbico" e suas relações com o corpo humano são testadas em lugares em forma de caixa onde se produzem exercícios arquitectónicos que prevêem a tal “arquitectura em mudança”, i. e., o aproveitamento geometrizado das formas no espaço;

ii. A "boneca ou o boneco articulado" através dos quais se opta pelas "leis da função do corpo humano no espaço" conduzem com os seus movimentos a formas de ligação e torsão decisivas para a compreensão do “organismo técnico”;

iii. O “organismo técnico" que reflecte as "leis do movimento do corpo humano no espaço" é também um factor de “desmaterialização”;

iv. A "desmaterialização” da figura em cena deve permitir a existência de "formas metafísicas de expressão" que podem conduzir a fundamento moral, a juízo político na representação do corpo e suas possibilidades.

Todas estas indicações que estão na base da criação de figurinos, mas também relacionadas com materiais têxteis e outros, com o uso simples da cor com significado associado aos tipos-base temperamentais (sanguíneo, colérico, melancólico, fleumático), servem para dotar actores e bailarinos de uma nova substancialidade corporal e mental que lhes permita ao mesmo tempo figurarem a fusão entre artificialidade e humanidade.

A figura artística resulta basicamente da transformação operada pelo figurino e máscara no actor/bailarino que se movimenta no espaço executando um desenho coreográfico. Ao executar este percurso ele ora é transmissor de processos, ora é receptor dos mesmos, muitas vezes, porém, executa ambos, tornando-se assim num veículo de uma tipologia caracterial que adquire também valor simbólico. Eis como o ser humano se transforma para Schlemmer em Figura da Arte.


[1] Oskar Schlemmer, Tagebucheintrag vom 7. September 1931, in: Andreas Hüneke (Hg.), Oskar Schlemmer. Idealist der Form, Briefe, Tagebücher, Schriften 1912-1943. Leipzig, 1990, S. 238.

 


Arte e política Professores Sérgio Mascarenhas, Alexandre Pieroni Calado, Pedro Florêncio

8 Março 2021, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

MARÇO                                   2ªFEIRA                                 6ª AULA

 

8

Gostaria de destacar a grande e aguda participação de professores e alunos durante o desenvolvimento deste módulo programático.

Na aula desta 2ª feira foi crucial para o debate do pequeno ensaio apresentado por Bruno Piva sobre o módulo Kandinsky e que nos levou à discussão sobre a ideia de arte pela arte, de arte como cometimento ético-pedagógico, de arte como pátria absorvida, de arte como temperamento, de arte como comprometimento, de arte como reconfiguração.

 

De Gret Palucca temos mais textos e imagens do que videos que nos possam esclarecer sobre a evolução da sua arte ao longo dos muitos anos que viveu. Há alguns filmes, mas de acesso restrito. Dedicada à pedagogia da dança e ensinando várias gerações, Palucca dançou na Bauhaus de Dessau e em muitos outros lugares na Europa central e do sul antes do período do nacional-socialismo.  A sua capacidade criativa, entre os anos de 1927-28, levou-a a designar as coreografias que apresentava como improvisações técnicas. Talvez possamos entender o significado da expressão se considerarmos alguns dos seus curtos textos que tivemos oportunidade de ler e comentar em aula, como por exemplo, Abstracção na dança (1923) e Expressão inibida (1924), embora anteriores ao período acima referido, mas concomitantes à experiência artística com Kandinsky e Rudolph.

A designação improvisações técnicas pode perfeitamente caber na compreensão dos textos que Palucca escreveu entre 1922 e 1924, do ponto de vista do uso de uma linguagem adequada à expressão e notação da então dança moderna. O que nelas não se torna perceptível é o improviso, que é afinal aquilo que melhor caracteriza a artista nesta fase. Nenhum dos textos mencionados, e outros, deixa transparecer a leveza e a elasticidade do seu corpo arrapazado nos inúmeros e inesperados saltos que expressam a sua força muscular e curiosamente aquilo que os espectadores mais apreciam. De certo modo não podemos exigir que o improviso seja alvo de um desenho coreográfico previamente estabelecido e que afinal responda por uma matriz específica que enuncia a dança de Palucca desde sempre. Aquilo que aparentemente é inesperado e invulgar não o é de facto pois faz parte da sua natureza e carácter.

As improvisações técnicas passam a fazer parte dos programas de apresentação ao vivo, sendo igualmente treinadas na Escola de Dança em Dresden. As alunas de Palucca são convidadas a expressar, à maneira de cada uma, o que é motivação própria e que não replica o que a coreógrafa executa. O que Palucca incentiva é a descoberta e o aproveitamento daquilo que estrutura cada ser e lhe é inerente. Recordemos as suas palavras: «A dança é uma questão de intuição. Hoje mais do que nunca. O bailarino livre não cria a partir de uma tradição estabelecida, nem de música composta para esse propósito, nem de um acontecimento exterior, mas a partir de si mesmo.

Existe uma necessidade interior de dançar, não sabemos de onde vem. Se ela existir, não temos escolha a não ser seguir a compulsão.» (Palucca, 1934: Pensamentos e Experiências)

Nem todos os críticos de dança da época partilham o gosto por esta arte do corpo que se joga entre tensão e distensão ampliadas e que tornam extensível a sua prática ao acompanhamento musical, integrando ele motivos provenientes de vários géneros como o Charleston ou o Jazz. (Stabel, 2019: 45)

É de 1928 o testemunho que aqui reproduzo e que foi publicado em jornal berlinense: «O que costumava ser um compromisso jubiloso com o corpo, a força e o ritmo parece agora um pouco blasé, doentio. Tem um cheiro forte a boulevard, são fragrâncias perecíveis de <haut goût> que não são dignas de uma Palucca. Isto deixou de ser dança, isto passou a ser um número de gladiadores! Um número de circo! Efeitos espectaculares! Esplendidamente com meios esplêndidos à espera de um uso mais digno. O aumento excessivo de tais "efeitos" representa um perigo para a Palucca, contra o qual devem alertar todos aqueles que realmente acreditam nela.» (Stabel, 2019: 45)

Este tipo de opinião difusa, ainda que qualificadora de um percurso que continuava a integrar inovação, estende agora o juízo de valor especializado a uma nova dimensão que viria a ser determinante para a condução de um percurso artístico. Os malabaristas de ideias tomam a dianteira na gestão ideológica da arte, da dança que já não pode ser moderna e experimental, e tornam-se arautos de um gosto que se pretende uniformizador e adequado ao que de fora se torna exigência para artistas como Palucca, Wigman, Laban que encontram na adaptabilidade um modo de sobrevivência continuada.

No caso de Palucca a transição opera-se na passagem de um modo de dançar único e genuíno, num corpo andrógino, para a maturidade desse mesmo corpo em transformação.

É nas improvisações técnicas que esse processo se inicia, como se a artista adivinhasse o futuro da nação. Dançando sempre a solo Palucca expõe-se no isolamento de um corpo que se revê no princípio da fragmentação: tronco, cabeça e membros parecem desligar-se entre si, como acontece em Serenata com música de Albéniz. E, no entanto, o desenho da coreografia, da sua coreografia, reforça exactamente o contrário – o seu corpo invoca nos poucos minutos da coreografia as diferentes posturas decorrentes do que acontece como sequência, como anti-sequência, como fusão sequencial. Presente está a técnica que partilha com o improviso uma concepção em permanente metamorfose.

Poderíamos afirmar que Palucca foi uma pessoa que à sua maneira pensou politicamente e agiu sob essa condição. Pudemos acompanhar a sua presença na Bauhaus e um pouco também durante a fase que se lhe seguiu. O nacional-socialismo trouxe à artista momentos gloriosos e de reconhecimento público, apesar de a evolução das decisões oficiais face à dança não permitirem qualquer estabilidade nem para ela nem para os artistas deste ramo. Em 1942, na chancelaria e em rara manifestação sobre dança perante Goebbels, Hitler deixa sair de entre dentes um discurso elogioso sobre várias bailarinas de que exclui Palucca. Esta desapontava-o por estar sempre aos pulos. (Stabel, 2019: 76)

Dos anos 20 aos anos 40 parecia que nenhuma transformação ocorrera no percurso da artista. O argumento era vicioso e a artista nunca dele soube. A «mais alemã das bailarinas» pôde dançar até à proclamação da «Guerra total» em 1944, mas a sua escola foi fechada em 1939. A impossibilidade de entendermos a lógica destas medidas tem uma resposta pelo menos justificada na sua ascendência, a que nos referimos anteriormente. Para os Nazis, Palucca era não ariana e apesar do avô materno ter banido da família o judaísmo como estigma, essa tomada de posição não invalidou que a sua origem judaica investigada até ao 3ºgrau determinasse o seu percurso profissional. Neste contexto, a artista recebe uma autorização ministerial para poder continuar a dançar e a ensinar dança, apenas porque o seu pai lutara ao lado da Alemanha durante a I Guerra Mundial.

Palucca agradece por escrito, em 1936, às autoridades que lhe permitiram poder exibir um documento que a qualquer momento poderia tornar-se inútil.

A filiação a 11 de Julho de 1933 em organizações como a Associação Nacional-socialista de Professores e a Liga Alemã de Combate não eram garantia de nada. Mas Palucca nunca deixou de tentar a sua sorte.

O pianista que a acompanhava regularmente em 1939 descreve o aspecto de Palucca na sequência do fecho da escola: «(…) Quando voltei a ver a Palucca fiquei estarrecido: ela estava completamente desfeita, o branco dos seus olhos era sangue. Eu sabia como ela dependia do ensino e da escola.» (Stabel, 2019: 83)

O projecto artístico de Gret Palucca deverá sempre ser entendido também de um ponto de vista político, considerando que a longevidade a fez atravessar diferentes épocas da História da Alemanha. A sua acção e capacidade de intervenção em nome dos interesses artísticos que a moviam, exigiam vontade de negociação independentemente das pessoas e instituições com as quais entrava em contacto. Durante o período nacional-socialista o jogo diplomático foi por vezes demasiado duro, incompreensível e aleatório. Ao contrário, a sua relação com a Bauhaus, dentro e fora da Escola, revestiu-se de condições que muito favoreceram a sua juventude, talento artístico e amor à vida.

 

Obras de consulta em alemão usadas em corpo de texto

BEYER, Susanne, 2009. Palucca – Die Biografie, Berlin: AvivA, pp. 157-158.

STABEL, Ralf, 2019. PALUCCA – Ihr Leben, Ihr Tanz, Leipzig: Henschel Verlag, pp. 76-77.

https://www.youtube.com/watch?v=o7ZlavDh3j0

https://www.youtube.com/watch?v=wBIAx2BN-iY

 

https://www.youtube.com/watch?v=NZ5byfHDRVE

O que é a Coreologia? Qual a sua importância para a Dança Clássica? – TEACHDANCART (wordpress.com)

C

Estudo das mãos de Palucca, 1935