Sumários
O novo estatuto social de artista a partir dos séculos XV e XVI.
6 Outubro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Da fundamentação artística e das suas estratégias de afirmação antropocêntrica no Renascimento: Liberdade e liberalidade artística no largo tempo do Renascimento em Portugal e no Mundo (sécs. XV-XVI). A liberalità (liberalidade, ou seja, um conceito de emancipação, de reivindicação social e de consciencialização autoral) é uma das grandes conquistas do Renascimento, no século XV, em termos de criação no campo das artes. Estas passam a ser vistas e entendidas como produto emanado das ideias e não como mero trabalho das mãos: assumem-se, pois, como criação intelectual e não como produção ‘mecânica’. Face àquilo que era a liberdade criadora restrita dos artistas medievais, e dos da Antiguidade – um regime anónimo, colectivo e gremial – a reivindicação da LIBERALITÀ representa uma conquista de vastas proporções, com incidência imediata e com longa durabilidade no mercado das artes. Com a liberalidade nascem também os mecenas, os críticos de arte e os peritos, os avaliadores, os ‘marchands’ de arte, os livros com a biografia de artista e a teoria das artes, os coleccionistas e as galerias de obras de arte (embrião dos museus contemporâneos), os intermediários de compra e venda, i. e., nasce uma espécie de artworld moderno.
A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumiraa que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza.
Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã.
•Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.
BIBLIOGRAFIA:
ALMADA, Márcia, Livros manuscritos iluminados na era moderna. Compromissos de irmandades mineiras, dissertação de Mestrado, Univ. Federal de Minas Gerais, 2006.
DESWARTE-ROSA, Sylvie, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos. Francisco de Holanda e a teoria da arte, ed. Difel, trad. de Maria Alice Chico, Lisboa, 1992.
GRINEVALD, Paul-Marie (éd.), Champ Fleury. Art et Science de la Vraie Proportion des Lettres, Bibliothèque de l’Image, Paris, 1988.
SERRÃO, Vitor, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, IN-CM, 1983.
SERRÃO, Vitor, «Maniera, peinture murale et calligraphie: Giraldo Fernandes de Prado (c. 1535-1592), un grand peintre, écrivain et noble enlumineur méconnu», Out of the Stream: new perspectives in the study of Medieval and Early Modern mural painting, coord. de Luís U. Afonso e Vitor Serrão, Manchester, 2007, pp. 116-140.
SERRÃO, Vitor, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008.
SILVA DIAS, José Sebastião, A política cultural da época de D. João III, tomos I-II, Coimbra, 1969.
A abordagem cripro-artística como reforço de uma metodologia da arte eficaz.
3 Outubro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Aquilo que se define por CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE atenta no papel que as obras desaparecidas no tempo podem ter assumido em determinadas circunstâncias históricas, económicas, políticas, ideológicas, na sua roupagem estética e no seu programa iconológico. O estudo das «zonas escuras» da produção das artes clarifica e alarga sempre o conhecimento. Poderá fazer-se História da Arte eficaz recorrendo aos objectos mortos, à sua diluída memória, às cicatrizes deixadas como rasto, bem como às obras de arte que não só não existem como chegar a ter verdadeiramente uma existência, porque nunca passaram da fase da concepção (bom ex.: o projecto de ponte que Leonardo da Vinci, em 1502, desenhou para o sultão turco Baiazid II, destinado a unir a Gálata e Constantinopla, que nunca chegou a ser construído, senão em 2001 na Noruega pelo arquitecto Vebjoen Sansd...). As noções de totalidade, de fragmento, de micro-história, o conceito alargado de mercado e de programa artístico, iluminam as possibilidades (e a utilidade) do olhar cripto-artístico. A novidade desta vertente reside na consciência reforçada que possa ser atribuída à obra de arte morta e a possibilidade de se organizar o inquérito a seu respeito segundo sólidas bases de pesquisa. A Cripto-História da Arte, nova proposta de conceptualização para a nossa disciplina, parte da revalorização da noção de fragmento, não apenas como memória parcelar da obra ausente, mas colmo testemunho vivo da sua essência, senão como indício perene (tal como o iconólogo E. H. Gombrich o referiu, ao acentuar que a H. da Arte impõe sempre a ideia do conjunto artístico, e do seu contexto) – uma avaliação da obra em globalidade. Uma História de Arte operativa, apta a alargar as suas bases teóricas e metodológicas não pode reduzir o seu objecto de estudo às obras de arte vivas; também as que desapareceram do nosso convívio, as que só sobrevivem através do indício ou do fragmento, ou seja, as obras de arte mortas, têm uma palavra a dizer aos historiadores, aos críticos e fruidores de arte.
Enquanto noção operativa provida de franca utilidade para o alargamento das práticas da H. Arte, a CRIPTO-HISTÓRIA DE ARTE assenta as suas bases de pesquisa cripto-artística em cinco vertentes simétricas e convergentes, a saber: 1 --- a abordagem criptoanalítica; 2 --- a abordagem dedutiva; 3 --- a abordagem reconstitutiva; 4 --- a abordagem incriativa; 5 --- e a abordagem cripto-iconológica.
A vertente da cryptoanalysis (ciência que decifra a mensagem em código sem nenhum conhecimento prévio da sua chave) permite à H. da Arte desvendar os ‘indícios’ sem ter aparentemente dados complementares a seu respeito. Obras que foram destruídas (deliberadamente ou por efeito de calamidades) ou tiveram vida efémera podem de algum modo ser reavaliadas através de indagações cripto-artísticas alargadas. Bom exemplo é o projecto de decoração funerária «ao romano» que António Campelo realizou cerca de 1572 para a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos, aquando das exéquias de trasladação dos ossos de D. Manuel I para a nova capela-panteão de D. Catarina de Áustria. Só resta, para a abordagem criptoanalítica, o desenho do mesmo Campelo, inspirado num fresco de Polidoro da Caravaggio em San Silvestro al Quirinale em Roma, que representa a Alegoria à Morte (M.N.A.A). O método de abordagem permite alargar conhecimentos e entretecer uma via lógica de interpretação de como era organizado um programa artístico efémero que a voragem dos tempos de todo destruíu.
A vertente dedutiva, isto é, o enfoque de obras já desaparecidas no conjunto de um ciclo artístico ou na produção geral de um dado artista, decorre da forma dada pela análise visual, documental, estilística, iconográfica, etc, de outras obras do conjunto que subsistiram no presente. O recurso às descrições memoriais e à fotografia antiga, p. ex., apoia o exercício cripto-artístico e assegura a plausível eficiência da análise proposta: veja-se o caso do retrato de D. Violante Gomes, a formosa judia Pelicana, mãe de D. António, Prior do Crato, o malogrado candidato ao trono na crise de 1580, pintado pela oficina de Diogo Teixeira, c. 1578-80, no desaparecido cadeiral do Mosteiro cisterciense de Santa Maria de Almoster.
A abordadem increativa, i. e., o termo metafísico de incriação,ou seja, estudo da obra incriada -- uma obra que foi concebida mas não realizada --, é outra vertente da análise cripto-artística. Trata-se do estudo de obras de arte que fisicamente nunca existiram mas cujos fundamentos e bases programáticas podem ser re-conhecidos a partir de desenhos, fotografias, textos, uma descrição, ou de um outro indício. A coerência de um inquérito histórico-artístico organizado segundo estas vertentes carreia o alargamento da metodologia geral da História da Arte em novas bases.
Mais vulgar, a abordagem cripto-reconstitutiva integra a análise do fragmento ou parte de uma obra parcialmente inexistente, utilizando todas as fontes ao dispôr do historiador de arte. Tal define a via da abordagem reconstitutiva e permite desvendar a possível estrutura inicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA).
Enfim, é à luz da lição da ICONOLOGIA que a pesquisa criopto-artística ganha a sua maior dimensão: sendo a Iconologia a vertente da H. Arte que desvenda significados e razões ocultas dos programas estéticos, torna-se fundamental na pesquisa iconológica a reconstituição, a dedução, a análise da ‘increação’ e a cripto-análise a partir dos ‘indícios’, caminho necessário para que as obras de arte sejam mais e melhor iluminadas no processo do seu estudo integral. O sentido dos códigos e dos signos – dos ‘indícios’ – com os seus níveis de significação diversos, abre inesgotáveis possibilidades à fascinação do ver e sentir as obras de arte, tal como elas se nos apresentam hoje, quase sempre truncadas de qualquer coisa que, apesar de tudo, pode ser percebível... É de lembrar que o estudo e revalorização do FRAGMENTO remonta à consciência dos chamados antiquários do Renascimento, como André de Resende e Francisco de Holanda no nosso caso, em torno da descoberta de um primeiro sistema de prova documental baseado na análise e valorização dos INDÍCIOS (aplicados à Numismática, à Epigrafia, etc).nicial da obra em estudo. Bom exemplo é o famoso retábulo da capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, que Adriano de Gusmão reconstituíu em 1955 a partir de apenas uma tábua e metade de outra (MNAA).
Definições de 'arte', depois de Duchamp.
29 Setembro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A Arte é a actividade humana ligada a manifestações de ordem estética, feita por artistas a partir da percepção, das emoções e das ideias, com o objectivo de dar estímulo a um interesse, a um acto de consciência ou grau de intervenção junto de um ou mais espectadores. Cada obra de arte possui um significado distinto: única, irrepetível, inesgotável, transcontextual, com carga de fascínios e perenidade, com comprometimento ideológico, dotada de vida perecível e, ao mesmo tempo, com poder imenso de renovada interrogação do mundo. Com o Romantismo, a Fenomenologia, o Positivismo, o Marxismo, a Psicologia da Arte, a Sociologia da Arte, e outras correntes, surgiram distintas interpretações de "arte". A dificuldade de definir o conceito está na directa relação de dependência com a conjuntura histórico-social e cultural que o faz surgir, já que quando um estilo é criado, tende a quebrar os sistemas e códigos estabelecidos.
Arte é um termo que vem do latim, e significa técnica/habilidade. A definição de arte varia de acordo com a época e a cultura, por ser tanto arte rupestre, como artesanato, arte da ciência, da religião e da tecnologia. Actualmente, o conceito é usado para definir uma actividade artística e o seu produto. A arte é uma criação humana com valores estéticos, como sejam a beleza, equilíbrio, harmonia, intenção crítica, que representam um conjunto de procedimentos utilizados para realizar obras. Para Theodor Adorno e os marxistas da escola de Frankfurt, arte é o incognoscível, aquilo que é não discernível. Para os povos primitivos, a arte, a religião e a ciência andavam juntas na figura, e originalmente a arte poderia ser entendida como o produto ou processo em que o conhecimento é usado para realizar determinados objectivos: magia, superstição, ritualidade, poder de intervenção e busca da espiritualidade. A arte é um reflexo do ser humano e representa sempre a sua condição social e essência de ser pensante.
A arte está ligada à estética porque é considerada uma faculdade ou acto pelo qual o homem, trabalhando uma matéria, imagem ou som, cria beleza ao esforçar-se por dar expressão ao mundo material ou imaterial que o inspira. Na História e na Filosofia tentou definir-se a arte como intuição, expressão, projecção, sublimação, evasão, etc. Aristóteles definiu a arte como uma imitação da realidade. Bergson e Proust vêem-na como exacerbação da condição atípica inerente à realidade. Kant considera a arte uma manifestação que produz uma "satisfação desinteressada".A Filosofia de Theodor Adorno (1901-1969), considerada uma das mais complexas do século XX, fundamenta-se na perspectiva da Dialéctica marxista e define arte como o discurso do inexprimível. Uma das suas mais importantes obras, a Dialéctica do Esclarecimento, escrita em colaboração com Max Horkheimer durante a Segunda Grande Guerra, é uma crítica da razão instrumental, conceito fundamental deste último filósofo (ou uma crítica, fundada em uma interpretação negativa do Iluminismo, de uma civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista, que Adorno chama de «indústria cultural»). Também é uma crítica à sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico. A actual civilização técnica, surgida do espírito do Iluminismo e do seu conceito de razão, não representa mais que um domínio racional sobre a natureza, que implica, ao mesmo tempo, um domínio (irracional) sobre o homem; os diferentes fenómenos de barbárie moderna (fascismo e nazismo) não seriam outra coisa que as piores manifestações desta atitude autoritária de domínio sobre o outro, e neste caso Adorno recorrerá a outro filósofo alemão, Nietzche.
Em 1914, quando eclode a Primeira Guerra Mundial, houve perturbações nos conceitos artísticos, em torno do conceito de “modernismo”. Desestabilizando os valores estabelecidos, surge o Dadaísmo, a partir de uma reunião em Zurique. Os artistas e intelectuais contrários à adesão de seus países à guerra exilam-se em Zurique. Num encontro no Cabaré Voltaire fundam o movimento dadaísta. O nome foi dado por Tristan Tzara, poeta húngaro que o escolheu ao acaso, apontado para um dicionário. A palavra “dada”, cavalo de pau em francês, torna-se marco do movimento (a falta de relação directa do termo com este foi considerado algo sem importância, já que para os fundadores a arte não fazia mais sentido, pois todo o pensamento racional se tinha perdido com a guerra). O dadaísmo sugeria a criação artística como algo ao acaso, esforço para que a arte se libertasse do pensamento lógico, racional. Tinham aversão aos valores tradicionais, que tinham sido supervalorizados e haviam desencadeado a guerra. Utilizaram-se de sátiras e críticas para demonstrar o descontentamento com tais processos. Marcel Duchamp foi um dos artistas do movimento dadá. Ao tentar expor em galeria uma sanita virada a que chamou “fonte”, abriu um fecundo debate: a sua “obra de arte” foi tratada como simples mictório, mas a mensagem passou, pois impôs a revisão de alguns conceitos. Afinal, um urinol não poderia ser arte? O acto de o virar e titular como «fonte» não podia ser tratado como acto artístico? Duchamp colocou na peça outro nome como autor da mesma (R. Mutt,), para mostrar que o facto do artista ser desconhecido também influencia na opinião das pessoas. Antes de criar a “fonte” em 1917, já havia criado a “roda da bicicleta” e o “porta-garrafas”, que fazem parte do conceito por si criado de READY-MADE. Tal conceito traduz a ideia de transformar objectos comuns em obras de arte. Duchamp selecionava objetos quotidianos, produzidos em massa, sem valor estético aparente, e expunha-os em galerias e museus, tratando-os como obras de arte. Assim, Duchamp fez com que o público repensasse os conceitos de arte. Expondo objectos comuns como obras de arte, ele faz, portanto, uma dura crítica aos “códigos” tradicionais da arte e abre um campo duradoiro de debate e reflexão teórica.
Expõem-se, enfim, alguns comentários e observações a textos de Berys Gaut, Morris Weitz, George Dickey, Gary Iseminger, Arthur Danto e Umberto Eco, sobre os 'ready-made' e a noção de 'arte'. A definição de Gombrich.
Comentário a uma ficha analítico-descritiva de uma obra de arte: metodologias a seguir.
26 Setembro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Escolheu-se como exemplificação o painel de Vasco Fernandes e Oficina que representa «Cristo em casa de Marta e Maria», de c. 1530, que formava o antigo retábulo da capela do Paço do Fontelo e se expõe em Viseu, no Museu Grão Vasco.No âmbito da nossa disciplina, partimos da nossa disciplina, partimos da definição de dois conceitos operativos que devem ser considerados basilares para a prática de uma História da Arte-ciência não só eficaz no diálogo a empreender com as obras de arte como, também, útil e socialmente comprometida: -- a noção de PROGRAMA ARTÍSTICO, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (histórica, estética, ideológica, contextual, etc) das obras de arte à luz da compreensão daquilo a que Aby Warburg, entre outros, já definia como os seus ‘pontos de vista intrínsecos’, isto é, das condições culturais, políticas, socio-económicas, laborais, memoriais, ideológicas, de perduração e de continuidade, etc, para um pleno entendimento iconológico das mesmas; --- e a noção de TRANS-MEMÓRIA IMAGÉTICA, por nós proposta, que busca (re)conhecer em todas as obras de arte as suas capacidades de perpetuação memorial, tornando-as um elemento fundamental de percepção das suas potencialidades globais, numa base trans-temporal sempre aberta. A leitura das obras de arte deve ter em conta esses princípios.
O painel reflecte a cultura humanística de D. Miguel da Silva, Bispo de Viseu e Cardeal de Roma, seu encomendador. Através das informações do cronista viseense Botelho Pereira, no seu manuscrito de 1630-1638, sabe-se que o Claustro da Sé de Viseu data de 1528 e estava concluído em 1534, pois D. João III, em alvará de 18 de Setembro deste ano, cedia ao bispo a seu pedido para que o projecto arquitectónico pudesse assumir um outro alcance urbanístico, os arruinados paços reais, contíguos ao muro do novo claustro e pegados à velha torre de menagem, que serviu, séculos a fio, de aljube eclesiástico. Todavia, se D. Miguel da Silva tinha em mente um projecto de regularização da caótica praça medieval, com a construção «de huas varandas sobre a Praça, cujos altos fossem dos bispos, e os baixos da Cidade para as vendedeiras», não o chegou a concretizar. Como refere o cronista, «não houve effeito esta obra com estar inda o Bispo alguns años nesta, a causa não sei, mas fora ela muito a propósito». Mas a alta galeria setecentista, que estrutura a praça e marca a fisionomia da cidade, não é alheia ao projecto regularizador que D. Miguel da Silva, dois séculos antes, havia delineado, bem como outras obras por si patrocinadas sob estímulo dos valores italianizantes do Renascimento e da cultura do Neoplatonismo.
À data da eleição de D. Miguel da Silva, em 1525, a velha Catedral, renovada com uma exuberante fachada manuelina (que ruíu em 1630), mantinha o claustro trecentista gótico. A construção do actual, renascentista, implicou a demolição daquele, entaipar capelas, portais e arcossólios dos muros (hoje a descoberto); é o indicador do gosto que este prelado pôde adquirir e amadurecer na cidade eterna quando desempenhava as funções de embaixador do rei junto da Cúria Romana. Francesco da Cremona, arquitecto italiano que o acompanhou na vinda de Roma a Portugal, é o autor do projecto, cujo protótipo, de acordo com Rafael Moreira, "reside no famoso cortile do palácio ducal de Urbino, construído por L. Laurana e Francesco de Giorgio Martini cerca de 1470". A sua construção teve início em 1528, ano em que o prelado dá início ao projecto de ampliação e reconstrução da quinta de Fontelo e encomenda ao prestigiado pintor da cidade, Vasco Fernandes, celebrizado com o nome Grão Vasco, uma série de retábulos para a Sé e para os espaços reedificados.
Obra fundamental para estudar o universo
pictórico de Vasco Fernandes, a tábua de Fontelo é bom testemunho
da sua adesão aos valores do Renascimento italiano, é um dos melhores
exemplares da pintura quinhentista portuguesa, com ênfase na parangona da VIDA CONTEMPLATIVA de Maria, inspirada em gravura de Albrecht Durer, face à VIDA ACTIVA encarnada na personagem de Santa Marta, a patrona da capela palatina de D. Miguel da Silva. É a essa luz que o quadro deve ser entendido.
Trabalho prático:
a) Fortuna Histórica - fase de recolha heurística e definição iconográfica;
b) Fortuna Crítica - fase de comparatismos e contextualização, análises técnicas, iconológicas, estilísticas, formais e funcionais, e definição da trans-contextualização da peça;
c) Fortuna Estética -- fase de leitura estética integrada à luz da Iconologia.
BIBLIOGRADFIA:
CAETANO, Joaquim Oliveira - "Vasco Fernandes", Francisco Henriques. Um pintor em Évora no tempo de D. Manuel I (catálogo de exposição). Lisboa: Comissão Nac. Comemorações Descobrimentos Portugueses, 1997, pp. 191-193.
CORREIA, Vergilio - Vasco Fernandes. Mestre do Retábulo da Sé de Lamego. Coimbra: 1924, pág. -
DESWARTE, Sylvie - Imagens em Ideias em portugal na época dos Descobrimentos, Lisboa, Difel, 1992.
DIAS, Pedro; SERRÃO, Vítor - "A Pintura, a iluminura e a gravura dos primeiros tempos do século XVI", História da Arte em Portugal, O Manuelino, vol. 5. Lisboa: Publicações Alfa, 1986.
GONÇALVES, Flávio - Obras Perdidas dos "Primitivos" Portugueses, "História da Arte. Iconografia e Crítica". Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pág. 40-42
MARKL, Dagoberto; PEREIRA, F. A. Baptista - O Renascimento, in "História da Arte em Portugal", vol. VI. Lisboa: Alfa, 2ª, 1993.
REIS-SANTOS - Vasco Fernandes. Lisboa: Artis, 1962.
REIS-SANTOS, Luís - Vasco Fernandes e os Pintores de Viseu do Século XVI. Lisboa: 1946.
RODRIGUES, Dalila - "A pintura no período manuelino", História da Arte Portuguesa (Dir. de Paulo Pereira), vol. II. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, pág. 230-237
RODRIGUES, Dalila - "Modos de Expressão na pintura portuguesa. O processo criativo de Vasco Fernandes (1550-1552), Tese de Doutoramento em História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: 2001.
SALGUEIRO, Joana – “Contexto histórico da pintura quinhentista de Vasco Fernandes: A necessidade do estudo técnico e material do suporte”, In MTPNP, 2009,a.
SALGUEIRO, Joana – “O Suporte dos Painéis da Sé de Lamego de Vasco Fernandes”, In Através da Pintura: Olhares sobre a Matéria, Estudos sobre Pintores no Norte de Portugal. Porto: Universidade Católica Portuguesa, Citar, Mtpnp. 2011, pág. 41-57.
TEIXEIRA, José Carlos da Cruz - A Pintura Portuguesa do Renascimento. Ensaios de Caracterização "Tese de Doutoramento em História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: 1991, pág. -
VASCONCELOS, Joaquim - A Arte Religiosa em Portugal. Lisboa: Vega, 1994.
Análise do Iconoclasma: as obras de arte perante a sua destruição. Iconoclastia e Iconofilia como vertentes no estudo da História da Arte.
22 Setembro 2016, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Iconoclastia e Iconofilia como vertentes no estudo da História da Arte.
O estudo das obras de arte torna-se
mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no
decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou
seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções,
integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde
o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que
levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos
conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura
pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a
ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade
identitária…
As manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si ao longo da História dos homens – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso e na redobrada vigilância do modo como agiam (e agem) os artistas e os detentores de obras de arte (não só «imagens sagradas»), ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentua em nome do combate ao outro (o paganismo, a idolatria), contra manifestações culturais autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa, ou dos Budas do Afeganistão pelos talibans)…
O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária… Por isso as obras de arte sofrem – alteradas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção...
Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela nossa disciplina.
Existiu sempre da parte dos homens – e continua a existir – uma deriva iconoclástica que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos: um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador, um iconoclasma destruidor do «outro», um iconoclasma correctivo por razões morais, um iconoclasma correctivo por razões políticas, um iconoclasma correctivo por razões estéticas, um iconoclasma de intuito propiciatório, um iconoclasma de esconjuração do medo, um iconoclasma de apagamento da memória do «outro», um iconoclasma de exegese, um iconoclasma de afirmação de «cultura superior», um iconoclasma de afirmação utópica. Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias, para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquês destas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem, época a época !
BIBLIOGRAFIA
Federico Zeri, Pittura e Controriforma. L’arte senza tempo de Scipione Pulzone da Gaeta, ed. Einaudi, Turim, 1957.
Flávio Gonçalves, «A Trindade Trifonte em Portugal», sep. de O Tripeiro, 6ª série, ano II, Porto, 1962.
Flávio Gonçalves, «A Inquisição portuguesa e a arte condenada pela Contra-Reforma», Colóquio, nº 26, 1963, pp. 27-30.
Eveline Pinto ao livro Aby Warburg – Essais Florentins, ed. Klinksieck, Paris, 1990.
Olivier Christin, Une révolution symbolique. L’iconoclasme protestant et la reconstruction catholique, Paris, 1991.
Alain Besançon, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994.
David Freedberg, The Power of Images, The University of Chicago Press, 1989 (trad. espanhola: El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid).
Catálogo da exposição Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, ciom coordenação de Cécile Dupreux, Peter Jezler e Jean Wirth, 2001.
Vitor Serrão, A trans-memória das imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa, ed. Cosmos, Lisboa, 2007.