Sumários

Questões de Análise Iconológica de Obras de Arte: casos de estudo.

24 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Mercado das artes e estatuto dos artistas, do Renascimento à Idade Contemporânea. Noções de conservação preventiva de obras de arte. Mercado de Arte e Modernidade. Ut Pictura Theatrum: conceito, formas, narratividade, representação cénica, ilusão, retórica, trans-contextualidade, um percurso pelos discursos da Pintura. Estudos de caso. Uma tela antuerpiana de Jacob van Es (século XVII).

 Originais e ‘falsos’, modelos, réplicas, variantes, e cópias.'Acordar as cores das imagens': pigmentos, tintas e outras matérias do ofício dos pintores durante a Idade Moderna, e questões de conservação e restauro. Alguns casos de estudo integrado: um quadro de Tintoretto (a ‘Adoração dos Magos’ do Mosteiro de Singeverga) e outros exemplos.

 Definição de bases teórico-conceptuais necessárias à prática do gestor/perito em arte, conceitos operativos e científicos, eficaz no diálogo com a obra em termos de mercados de arte. Noção de Programa Artístico, assente num olhar inter-disciplinar com visão globalizante (histórica, estética, ideológica, antropológica, contextual) das obras à luz da compreensão do que Aby Warburg definia como seus ‘pontos de vista intrínsecos’. Noção de Trans-Memória imagética, que busca (re)conhecer nas obras as suas capacidades de perpetuação memorial, tornando-as elemento de percepção de potencialidades globais, em base trans-contextual de inesgotável fascínio para os fruidores.

 

BIBLIOGRAFIA:


AFONSO, Luís, O Ser e o Tempo. As Idades do Homem na Tumulária Gótica Portuguesa, Caleidoscópio, 2003.
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BOLVIG, Axel, Philip Lindley (coord.), History and Images. Towards a New Iconology, Turnhout, Brepols, 2003. 
BROWN, Jonathan, Imágenes e Ideas en la Pintura Española del Siglo XVII, Cátedra, 1981.
CALABRESE, Omar, Como ler uma obra de arte, trad. port., Ed. 70, Lisboa, 1999.
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PANOFSKY, Erwin, Estudos de Iconologia. Temas humanísticos na arte do Renascimento (Oxford, 1939) (ed. Lisboa, Estampa, 1986).
PEREIRA, Paulo, (coord.), História da Arte Portuguesa, 3 vols., Círculo de Leitores, 1995.
SERRÃO, Vitor, , A Trans-.Memória das Imagens. Estudos iconológicos de pintura portuguesa, Cosmos, Lisboa, 2007.


Artes, Mecenas e Coleccionismo: linhas de pesquisa metodológica sobre artes decorativas e a análise do gosto.

20 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     Analisa-se nesta aula, à luz e segundo a definição do conceito de gosto em português, o espírito dos recheios artísticos das casas portuguesas dos séculos XVI, XVII e XVIII, caracterizados por um geral equilíbrio entre a compra de peças ítalo-flamengas e as de origem colonial, numa expressão onde dominam o hibridismo e o exótico e que lhe assegura originalidade no contexto europeu da Idade Moderna. As figuras de D. João de Castro, vice-rei da Índia, e seu filho D. Álvaro de Castro, ao ornarem a sua quinta da Penha Verde, em Sintra, tanto com pinturas renascentistas do melhor escol como de pedras lavradas hindus, assumem essa vertente peculiar do colecionismo doméstico, que se atesta, também, na riqueza dos acervos reunidos em Évora por D. Fernando de Castro, 1º conde de Basto, e mantidos de seguida por seus descendentes (mas dispersos após a Restauração de 1640) segundo o mesmo gosto plural. Refere-se, por último, o problema do mobiliário em tartaruga, unanimemente considerado de origem indo-cíngalo-portuguesa, a partir de uma encomenda realizada no Brasil, em 1687, por um ilustre ribatejano, Tristão Nuno Infante, que recorreu ao artista mais exímio de Pernambuco para lavrar peças em tartaruga e prata destinadas ao recheio da sua residência de Santarém. Estamos, neste caso, perante um exemplo de globalização do exótico perenizado, através das artes decorativas, nos vários espaços do Portugal ultramarino do século XVII.   

    O estudo dos acervos artísticos que constituíam a decoração interior dos palácios e das casas portuguesas dos séculos XVI a XVIII, fossem realengas, aristocráticas, religiosas ou burguesas; permite constatar, a partir dos inventários sobreviventes e das remanescências em termos de peças, um campo fascinante para os historiadores de arte e para quem analisa as contingências do gosto e as suas mutações. Nos exemplos nacionais da Idade Moderna, destaca-se com evidência uma linha de caracterização de tais colecções e acervos: os seus proprietários revelam tanto a busca de padrões europeus de referência, em geral ítalo-flamengos, por um lado, como o êxtase por peças exóticas oriundas do ‘mundo das descobertas’, por outro. É a presença de tais peças artísticas, com origem num perímetro globalizado que se estende do Brasil à costa africana, à faixa magrebina, à Índia, a Ceilão, à China ou ao Japão, que confere ao colecionismo português, e ao mecenato que o suportou, características verdadeiramente sui generis no contexto da Europa do seu tempo. A análise do gosto enquanto vertente de uma História da Arte ‘de género’ é imperativo estrutural da própria disciplina, tal como alguns projectos de investigação e estudos recentes vêm enfatizando. Trata-se de campo essencial para se compreenderem critérios de escolha, aquisição e estrutura coleccionística, e que assume valências autónomas no quadro de uma dimensão geográfico-cultural que é hoje contextualizável e percebível. A partir dos inventários apensos a testamentos, de pleitos judiciais ou de processos de partilhas, dos róis de bens móveis das grandes famílias e mercadores e também de conventos e irmandades, ou ainda da informação que decorre de registos de compra e venda e das descrições de festividades, é possível não só reconstituir acervos dispersos como definir opções estéticas, fórmulas operativas e linhas de metodologia analítico-comparatista nos estudos das tipologias e gostos imperantes no mercado português (nobre, sacro ou civil). Trata-se de um ‘género’ que impõe um programa de âmbito plural, não esquecendo as ‘inconstantes estéticas’ e as curvas de efemeridade e sobrevivência que acompanham os ‘gostos’, o peso do exotismo, a novidade pelas manifestações do ‘outro’, a sua definição como factor social distintivo (com peso ideológico mas dialecticamente mutável), ou dependente de conjunturas mais ou menos breves, como escreveu Gillo Dorfles «abarrotado de equívocos e dúvidas» ou, enfim, marcado por ritmos trans-memoriais com retomas de modelos e variedade ilimitada de novas corporalidades (SERRÃO, 2008). Aliás, trata-se de um tema que impõe necessariamente um olhar comparatista com o que se passa ao mesmo tempo com residências de Lisboa e Évora, Goa ou Cochim, Bahia e Olinda, e tantos outros espaços da diáspora imperial portuguesa onde o tipo de arte que complementa a decoração das casas tem, sem dúvida, traços comuns a um mesmo gosto.  

     Também importa reflectir, entretanto, em termos de máxima propriedade, a respeito do uso do termo colecção artística, a qual, como observa Hugo Crespo, deve implicar sempre a existência de um carácter preciso a estruturar a política de aquisição e de gostos convergentes por parte de um mentor, e que impõe, ainda, uma sequência geracional de possidentes, numa lógica puramente estética em que a exibição e ordenação de peças faça sentido. O tema foi inicialmente explorado por Julius von Schlosser (1908) a partir do acervo reunido na segunda metade do século XVI pelo arquiduque Ferdinando II de Habsburg, príncipe do Tirol, no seu castelo de Ambras (Innsbruck) e, mais recentemente, por Patricia Falguières, que destaca as singularidades históricas das câmaras de maravilhas reunidas ao longo da Idade Moderna, espécie de embrião do accrochage de peças dos museus contemporâneos. É em nome dessa singularidade que podem ser compreendidos, por exemplo, os gabinetes e salas de opulência da Rainha D. Catarina de Áustria, da Infanta D. Maria, filha de D. Manuel, do Duque de Bragança D. Teodósio I ou, já no século XVIII, as pinacotecas do Patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida e do 5º Marquês de Penalva D. Estêvão José de Meneses, a propósito das suas bem escolhidas colecções de quadros. Devem-se sempre distinguir situações correntes onde os acervos são reunidos por mera ostentação estatutária, através de incorporações casuísticas ou ditadas pela necessidade de provir ao apetrechamento da casa, daquelas situações em que determinado mecenas marcado por um sentido de especialização reúne e agrupa peças dentro de uma lógica coleccionística.

     O pano de fundo para estes estudos será sempre a análise do gosto, que permite caracterizar as formas de colecionismo mais ou menos consequente e as suas bases ideológicas e estéticas. No caso nacional, o peso das manifestações artísticas decorrentes da descoberta de ‘novos mundos’ criou condições ímpares para o pioneirismo de uma espécie de gosto em português em que surgem colecções da corte e de fidalguia (como as da Rainha D. Catarina de Áustria ou do 5º Duque de Bragança D. Teodósio I), mas também acervos de dignitários da Igreja, mercadores, políticos e humanistas que reúnem peças em Kunstkammer privadas de certo aparato, mesmo quando o objectivo fosse de uso em círculos restritos. É preciso saber mais sobre as clientelas, as multiplicadas ofertas, as obras que adquirem valor e conquistam aura através do intercâmbio pluricontinental de gentes, de ideias e de usos, pelos quais se vão incorporando e sedimentando as novidades materiais e artísticas e de percebem melhor os percursos e miscigenações. Como afirma Miguel Cabral de Moncada, durante o Renascimento, o Maneirismo, o Barroco e o Rococó, os mercados nacionais acolheram sem reserva testemunhos artísticos ligados ao inóspito, ao exótico, ao estranho, ao inefável, apreciando novas técnicas, como a marchetaria, a lacagem ou o incrustrado, e novos materiais, como as madeiras do Brasil, o ébano, o sissó, o sândalo, o angelim, as porcelanas da China, a tartaruga, o marfim, a madrepérola, o cristal de rocha, o coral, a laca, a corda de fibra de bananeira, os chifres animais, o narval, o coco-do-mar. Assim, durante a Idade Moderna, este gosto pelo inóspito e pelo ‘novo’, que decorreu dos Descobrimentos marítimos, junta-se à afeição nunca interrompida pelas novidades europeias (italianas ou flamengas) e dá ênfase a um coleccionismo de novo tipo no palco continental.

     Este gosto em português mostrou-se apto a miscigenar com naturalidade, desde o século XVI, o vernáculo e a tradição, os estilos europeus dominantes e o exótico colonial, o erudito e o inóspito, o aparato e as artes do efémero, e uma disponibilidade de integrar esse mundo plural e globalizado, como se intui nas festas realengas e religiosas, nas ‘entradas de embaixadas’, nos autos-de-fé, e na decoração dos salões, que preenchem o património quinhentista a que chamamos de ‘retorno’, esse ‘empório de maravilhas’ de que falava Damião de Góis a respeito do mercado lisboeta de então, verdadeiro ‘umbilicus mundi’ onde os estrangeiros se extasiavam pela inovação dos têxteis, marfins, madeiras lavradas, caixas-escritório, lacas, biombos e outras peças oriundas da Índia, da China e do Japão, ou da costa da Guiné e de Marrocos, do Hindustão, da costa de Bengala e de Ceilão, do recôncavo da Bahia, de Pernambuco, da América brasileira e outras partes. Os ‘casos de estudo’ seriados – um soldado-humanista do Renascimento na sua quinta de Sintra, um político-chefe militar na Évora do tempo dos Filipes, e um ilustre santareno da época de D. Pedro II – constituem exemplos singulares de pessoas com gosto em cujas casas coabitavam os recheios eruditos da Europa coeva com as artes exóticas, oriundas do mundo colonial, dentro dessa boa tradição miscigenada de um gosto em português que afirmou a tipologia colecionística nacional nos séculos XVI a XVIII. 


BIBLIOGRAFIA

CURVELO, Alexandra (comissária), cat. da exp. «O Exótico nunca está em casa ?» A China na faiança e no azulejo (séculos XVII-XVIII), Museu Nacional do Azulejo, Lisboa, 2013.

DESWARTE, Sylvie, «Antiguidade e Novos Mundos», in Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos, Lisboa, Difel, 1992.

DIAS, Pedro, Portugal e Ceilão: baluartes, marfim e pedraria, ed. Santander Totta, Lisboa, 2006.

DORFLES, Gillo, As Oscilações do Gosto, ed. portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

FALGUIÈRES, Patricia, «Préface. La société des objects» e «Postafe. Lire Schlosser aujoud’hui ?», ed. francesa de Les Cabinets d’art et les merveilles de la Renaissance tardive, de Julius von Schlosser (Leipzig, 1908), éditions Macula, Paris, 2014, pp. 8-60 e 266-350. 

HALLETT, Jessica, e PEREIRA, Teresa Pacheco (coord.), O Tapete Oriental em Portugal. Tapete e Pintura. Séculos XV-XVIII, cat. de exp., Instituto Português dos Museus, MNAA, Lisboa, 2007.

JORDAN-GSCHWEND, Annemarie, A ‘Rainha Coleccionadora’ Catarina de Áustria, Círculo de Leitores, 2012.

MONCADA, Miguel Cabral de, «O gosto pelo ‘ultramarino’ no Portugal dos séculos XVI eXVII e a sua influência na Europatu», in O Gosto na Arte. Idade Moderna, Lisboa, coord. Ana Duarte Rodrigues, Scribe, Lisboa, 2014, pp. 8-26.

PACHECO, Maria Emília Vaz (introdução e notas) e MONTEIRO, António (transcrição), Livro da Fazenda de Tristão Nunes Infante (1692), ed. Norberto Infante Pedroso, Santarém, 2013.

RODRIGUES, Ana Duarte (coord.), O Gosto na Arte. Idade Moderna, Lisboa, ed. Scribe, 2014.

SERRÃO, Vitor, A Trans-Memória das Imagens. Estudo iconológico de pintura portuguesa (séculos XVI, XVII e XVIII), Lisboa, Cosmos, 2008.

SERRÃO, Vitor, «As artes decorativas na colecção palaciana do 1º conde de Basto D. Fernando de Castro, na Évora dos Filipes», ARTIS-Revista de História da Arte e Ciências do Património, 2ª série, nº 2, 2014.

SOBRAL, Luís de Moura (coord.), Struggle for Synthesis. A Obra de Arte Total nos Séculos XVII e XVIII. The Total Work of Art in the 17th and 18th Centuries, Lisboa, 2 vols., Instituto Português do Património Arquitectónico, 1999.


Balanço dos trabalhos práticos registados.

17 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Balanço dos temas de TRABALHOS PRÁTICOS DE METODOLOGIA DE HISTÓRIA DA ARTE 2016/2017, que consistem em FICHAS ANALÍTICO-DESCRITIVAS DE UMA OBRA DE ARTE INDIVIDUAL OU DE UM PROBLEMA DE ARTE ESPECÍFICO, OU RECENSÃO CRÍTICA DE UMA FONTE. Temas inscritos até ao momento (56):

Ana Begonha – O Martírio de São Bartolomeu de José de Ribera (MNAA): análise histórico-artística, iconográfica, comparatista, iconológica e simbólica / ou Jazigo do Visconde de Valmor, de Álvaro Machado, no Cemitério do Alto de São João.

Ana Bela Água – Transverberação de Santa Teresa (Josefa de Ayala, 1676). O ciclo carmelita de Cascais.

Ana Margarida Andrade – ‘Les espaces d’Abraxas’ de Ricardo Bofill: análise crítica.

Ana Rita Silva – As Capelas Imperfeitas do Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha).

Ana Westwood – ‘Libélula’ de René Lalique (…).

Andreia Filipa Gomes – ‘Praia das Maçãs’, de José Malhoa: análise histórico-artística.

Beatriz Faria – ‘O Corpo da Luz’, escultura de mármore de Estremoz por Asbjorn Andresen na Capela Imaculada em Braga.

Beatriz Teodoro – Passion and Resistance, escultura de Keis Kuksi.

Bruna Brites – A capela-mor da igreja de São Domingos, por João Frederico Ludovice: história, arte e restauro. Questões de conservação e exposição de um espaço.

Bruno Oliveira – As Tentações de Santo Antão de Jheronymus Bosch (MNAA) (rever a escolha)…

Bruno Santos – A Adoração dos Magos de Domingos António de Sequeira (MNAA).

Carolina Ramos – A Fonte do Jardim Real de Caxias.

Carolina P. B. Alexandre – O Elevador de Santa Justa e a arte do ferro nas Lisboa de viragem do século XIX para o XX.

Catarina Fernandes Rodrigues – Uma peça de porcelana chinesa ou japonesa no Museu Gulbenkian (a escolher)…

Constança Costa Santos – análise das serigrafia Radioactive I de Robert Rauschenberg.

Diogo Mota – ‘Maus’ de Art Spiegelmann: BD, arte e ideologia, uma reflexão crítica.

Diogo Rodrigues – A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David.

Francisca Martins – O Julgamento das Almas (MNAA), pintura renascentista portuguesa.

Gabriel Domingues – Mãe Migrante de Dorothea Lange: análise crítica.

Gabriel Paiva de Paulo – La Nymphe Surprise de Édouard Manet.

Inês Guedes – O Despertar de José Simões de Almeida no Jardim da Estrela.

Inês Sambas Cabral – Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci. A teoria antropocêntica renascentista e o ideal de harmonia clássica.

Inês Sebastião – A Capela de São Frutuoso de Montélios (Braga): análise artística.

Jéssica Martel Perú -- Só Deus !, de Francisco Metrass, no MNAC.

Jéssica Mira Freitas – Inês de Castro pressentindo os assassinos de Francisco Metrass.

Jéssica Oliveira – Casa do Relógio do Porto ou Casa Manuelina (de ?)….

Joana Dominguez – A Raposa Azul de Franz Marc.

João Belo – O painel Começar, de José de Almada-Negreiros (FCG).

João Pedro Silva – A ‘Grande Revista à Portuguesa’ (2013-14) de La Féria: análise de um espectáculo artístico à luz dos conceitos abrangentes de Arte do Espectáculo.

Jorge Espinel Romo – Crucifixión de San Pedro de Caravaggio.

Laura Farias -- O Nascimento de Vénus de Sandro Botticelli à luz da Iconologia de Warburg (…)

Laura Torres – Estudo a partir do Retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez, por Francis Bacon.

Leonor Nogueira – O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro …

Lily Chadwick – Um têxtil (a escolher) da colecção MNT: sobre o revivalismo egípcio no início do século XX.

Mafalda Roças – ‘The largest cok mosaic’, em Ponte de Sor, obra de Samig Strati.

Maria Ângela Silva – Vhils (obra a escolher).

Maria da Luz Pinheirão – São Vicente, Patrono de Lisboa, painel de Azulejos da Estação do Rossio, por Lima de Freitas.

Márcia Martins – O Casal Arnolfini, de Jan Van Eyck, e a questão da perspectiva científica …

Mariana Nascimento – Picture Emphasizing Stillness de David Hockney (Col. Berardo).

Mariana Silva – O Martírio de São Sebastião (1536) da Charola de Tomar por Gregório Lopes.

Marie Céline – O Mapa do Inferno de Sandro Botticelli (…).

Marta Almeida – A Tabacaria Mónaco e a Arte Nova em Portugal.

Marta Silva Pereira – O Bailado ‘Pedro e Inês’ de Olga Roriz. Performance e arte em movimento.

Miguel Ángel Martín Manuel – Nuestro Padre Jesús Nazareno, de escuela castellana (escultura).

Natacha Sofia – O Fado, de José Malhoa.

Olívia Chantre – O Inferno, de mestre desconhecido, no MNAA: análise do fantástico e do exótico na pintura renascentista portuguesa.

Patrícias Feital – O Fado, de José Malhoa: estudo analítico-descritivo, histórico-artístico, iconográfico, iconológico e simbólico.

Raquel Ribeiro dos Santos – O Retrato de Fernando Pessoa por José de Almada-Negreiros (FCG).

Raquel Soares – A persistência da memória de Salvador Dalí.

Rita Esteves – Os frescos da igreja de São Sebastião de Castro Marim.

Rita Serra – One and three plants, Joseph Kosuth.

Rita Silva – Las Meninas de Diego Velázquez: estudo sobre o estatuto social do artista.

Rodrigo Fidalgo – Estudo de caso da chaminé na paisagem construída algarvia.

Sandra Novo – O Diadema das Estrelas, cobre da Rainha D. Amélia.

Teresa Ribeiro – Rapariga com Brinco de Pérola de J. Vermeer (…).

Tomás Gorjão – O Pugilista, de Paula Rego: análise histórica, iconográfica, iconológica, estética, simbólica e comparatista.



Um caso de estudo para explicitaçãso de ficha analítico-descritiva ideal: a obra de Diogo Pereira.

13 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     Conhecem-se hoje doze versões de pinturas com o tema Tróia abrasada da autoria de Diogo Pereira. Essas pinturas revelam todas as mesmas características, desde o engenhoso efeito fantasista, ao recurso a atmosferas apocalípticas e a derivações labirínticas dos planos, pese o facto de ao nível das figuras o artista se mostrar mais duro e com derivação de modelos gravados. Três dessas Tróias, como a da colecção Franzini, de Milão (apesar de ter o monograma D.P.p.), andavam até então mal atribuídas a François De Nommé, o famoso lorenense conhecido em Nápoles como Monsú Desiderio, atribuição sem consistência histórica mas que atestava a qualidade do artista em causa. A sequência de obras de Diogo Pereira que na altura foram alvo de estudo e restauro, como as telas que haviam pertencido à colecção do Marquês de Penalva, permitiram identificar um núcleo sólido de trabalhos do artista e definir-lhe base estilística. Desta ‘reabilitação’ resultou que Diogo Pereira pudesse ser percepcionado, de novo, à luz das qualidades que o público do século XVII (e XVIII) justamente lhe destacou. Reconhecendo-se que o desenho do pintor é quase sempre fruste, revelando falta de uma sólida formação, o que se explica aliás pela conjuntura difícil de isolamento vivida por Portugal no segundo terço do seu século (e justifica juízos negativos como os que lhe dirigiu o Conde Raczynski em 1847), a verdade é que a paleta é sempre solta e a modelação ousada, com acento num paisagismo idealizado e fantástico, onde as ‘rovine’ clássicas abundam, sendo essas as características que melhor o valorizam. Muitas das suas Tróias abrasadas se inspiram, no que diz respeito ao grupo de Eneias a transportar o velho Anquises, em fontes gravadas como uma edição parisiense de 1584 do Emblemata Liber de Alciato, por Jean Richer, e a edição, também de Paris e de 1619, das Metamorfoses de Ovídio, com gravuras de Jean Mathieu e tradução e notas de Nicolas Renouard. Foi nesta última obra, aliás, que o pintor se inspirou para as figuras do cobre da BNP.

     Diogo Pereira esteve activo em Lisboa entre 1630 e 1658, data da sua morte, e aí realizou obra importante para os mercados religiosos e da nobreza, incluindo obras para fora do país. Ligado às altas esferas políticas do seu tempo, época conturbada do Portugal Restaurado e das guerras com Castela, Pereira seguiu uma via artística absolutamente distinta da corrente tenebrista oficial -- um facto que contribuíu para o seu sucesso contemporâneo mas que justifica, também, que se tornasse de seguida um pintor muito esquecido. A fama deve-se a ter desenvolvido um ‘género’ ao tempo sem rival, como criador de catástrofes, fogos, Tróias abrasadas, Infernos, Sodomas, Meses, países, bambochatas, borrascas de mar, bodegones, dilúvios e temas afins. Nesse domínio, e com as devidas distâncias, Pereira foi uma espécie de Monsú Desiderio português de tal modo mostra paralelos com a arte daquele famoso pintor lorenense que se estabeleceu em Nápoles, chamado François de Nommé. Autor de telas extravagantes e caprichosas, Pereira integra-se melhor na tradição final do Maneirismo, pelo apego ao fantástico e ao surreal, do que no ‘realismo’ barroco da pintura oficial do seu tempo, a época de José do Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos ou Bento Coelho da Silveira. Sabemos que em 1637 servia de escrivão da Irmandade de São Lucas, espécie de academia dos pintores de Lisboa, que em 1638 pintou telas para a igreja de Santa Catarina do Monte Sinai, que em 1640, 1642 e 1645 teve filhos baptizados em Santa Catarina, que nesses anos pintou um Incêndio de Sodoma assinado (outrora na colecção Afonso de Sommer, ao presente paradeiro ignorado, elogiado por Reynaldo dos Santos pelo seu «gosto à Gerard Dou», que pintou uma Morte de Philopómenen (ass. D.P.p.), hoje em paradeiro desconhecido, que em 1649 pintou telas para as capelas do Senhor Jesus dos Passos da Graça, que em 1652 servia de escrivão na mesa de São Lucas, sendo mordomo em 1654, e de novo escrivão em 1658, na mesa presidida pela nobre amadora D. Maria Guadalupe de Lencastre e Cardenas, duquesa de Aveiro e mecenas das artes, falecendo nesse ano. Embora a tradição recolhida em 1758 por Pietro Guarienti diga que morreu pobre, o percurso documentado parece infirmar essa suposição.

     Como escreveu o exigente crítico Félix da Costa Meesen no seu tratado Antiguidade da Arte da Pintura (1696), «Diogo Pereira genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercicio foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna. Aprendeo de si proprio por mera inclinação; era Dom de Deos de que foi dotado, juntamente com alguma comonicação dos pintores de seu tempo; e merecem suas obras, muita veneração, porem o serem de Portuguez, lhe faz o mayor dano». Especializou-se em sub-géneros de tragédia e capricho, com carga simbólica que dificulta a interpretação imediata das suas obras, e sofreu o silenciamento dos séculos, mas explica o imediato sucesso, atestado por Meesen: como especialista em Incêndios de Tróia, cenas pastoris, meses, países, Infernos, Sodomas abrasadas, bambochatas, fogos, dilúvios, borrascas de mar, bodegones, floreiros e temas de simbologia histórica-profana e tónus fantasista, teve fama no seu tempo e obra disputada por clientelas de renome. Ao lado de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos e Bento Coelho, foi uma das estrelas da nossa pintura do século XVII.

     Trata-se de pintor singularíssimo, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches, que reclama adequada exposição monotemática. Famoso num ‘género’ que o aproxima do mundo complexo de François de Nommé (Monsú Desiderio) e dos demais pintores activos em Nápoles, resta saber por que vias se aproximou do mercado napolitano, ao tempo território da Corte de Madrid, ainda que pudesse conhecer obras oriundas dessa ‘escola’ em palácios peninsulares, que os possuíam. O poeta Diogo de Noronha e Nápoles, homem do partido brigantino, era um desses admiradores de Pereira que tinha, ademais, relações com a cidade italiana. O modo como o pintor se inspirou nessas fontes e a forma sedutora como usa a tradição do capricho arquitectural do mundo ‘De Nommé’ e a liberdade cenográfica das suas rovine, na sua atitude internacional que representa um certo esforço de actualização, torna-o afim a um mundo fantasista e onírico que o aproxima muito de mestres como Juan de la Corte, Francisco Collantes, Michel Bestard e, ainda, Claude Deruet, Sebastián Franck, David Teniers II, Didier Barra, Cornelio Brusco, Isaac Schawenbourg, Filippo Napoletano, François De Nommé ou, mesmo, Claude Lorrain. São essas, mais que os flamengos e holandeses do tipo Gerard Dou, as fontes artísticas precisas em que Pereira deve ser situado. As duas dezenas e meia de peças que hoje subsistem de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre», no sentido tradicional que o termo encerra, e mais como divagações em torno de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como paisagens e arquitecturas idealizadas, traduzidas cenograficamente em efeitos de ilogismo que aparentam o pintor seiscentista (dentro das naturais distâncias) com o referido e misterioso Monsú Desiderio. Existem potencialidades de paisagista em Pereira, muito superiores às de pintor de figura, mas a sua visão da «realidade» pautou-se, não propriamente por registos de «ar livre» e sim como elocubrações intelectualistas em torno de um restrito temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, afirma-se na visão cenográfica das rovine e na liberdade das touches e a sua obra assume-se o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no Seiscentismo nacional, com um detalhismo de arquitectura antiquizante, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da «catástrofe» que interpreta com grande dose de pessoalismo.

     O ambiente idealizado do cobre da BNP, o abismo sinistro que conduz ao lago gelado no Inferno da colecção Penalva, o claro-escuro fantástico das telas de Oeiras e do Palácio da Ajuda, recordam as stregonerie napolitanas de Isaac Schawenbourg e Filippo Napoletano; no último caso, inspiram-se também numa inesperada fonte clássica, a edição francesa de 1546 da célebre Hypnerotomachia Poliphili de Francesco Colonna (Veneza, 1499), atestando a formação literária, senão do artista, dos seus melhores clientes. Sobre estes, sabemos hoje, pelos inventários de bens da nobreza lisboeta, que todos os membros ilustres do partido da Restauração possuíam quadros de Pereira. Em 1676, no inventário de D. Madalena de Castro, Marquesa de Alorna, refere-se uma Tróia sua. Em 1739, na Descriptio Poetica Villae Calarisaenae do Dr. Matos da Rocha, indica-se uma Tróia e um Rapto de Helena, ambos no Palácio do Calhariz em Sesimbra. Em 1753, o pintor italiano Pietro Guarienti elogia muito Diogo Pereira, «stimatissimo pittore de fuochi, incendi, Torri abbruciate, Sodome, purgatori, e inferni», sendo aliás um dos raros artistas nacionais que lhe merecem destaque, registando quadros seus «a lume di luna, o di candele», e enumerando telas nas casas dos Marqueses de Marialva e Orisol, de D. Diego de Nápoles, do Conde de Assumar, do Patriarca D. Tomás de Almeida, do Conde de Tarouca e outros amadores de arte. Em 1758, o pintor régio Francisco Vieira Lusitano elogia na grande colecção de quadros do Marquês de Penalva várias obras de Pereira, avaliadas entre as mais caras do acervo, incluindo os famosos Dilúvio e Inferno, que aliás retocou: «(…) extinguio quazy todas as figuras que havia do dito Pereira e lhe introduzio outras de seu empenho e lhe acrescentou o Jeroglifico da Divina Justiça no lugar mais eminente do dito quadro av. em 192.000 rs». Muitos são os elogios a obras de Pereira em autores do século XIX como Ribeiro dos Santos, Cyrillo, Taborda, Vilela da Silva e Cardeal Saraiva, ainda que os connoisseus de então, como Raczynski, gradualmente lhe infirmem os méritos, fruto de novos critérios de avaliação vigentes.

     Conhecem-se doze versões de Tróias abrasadas da autoria de Pereira, todas elas com suas atmosferas apocalípticas e efeitos labirínticos. Reconhece-se hoje melhor quão eficaz este tipo de pintura se assumiu no tempo da Restauração, funcionando como arma de legitimação e propaganda da causa nacionalista dos Braganças. Após 1640, de facto, o tema adquiriu imensa popularidade: entre os documentados possuidores desses quadros estavam, entre outros, o Bispo D. Manuel da Cunha, capelão do rei, D. António Álvares da Cunha, senhor de Tábua, conspirador de 1640 e fundador da Academia dos Generosos, os membros das famílias Mascarenhas e Sousas, soldados da Restauração, o Conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc. Como se vê, também existiam peças deste tipo em espaços religiosos, desde colecções de eclesiásticos a fundos conventuais portugueses: sobre a origem do cobre da BNP, nada se apurou, mas é bem provável que se trate de uma das Tróias que a documentação inventarial privada referencia e cuja localização actual entretanto se perdeu.

     O tema era visto, nestes «anos de ferro» da Restauração portuguesa e das sangrentas guerras com Castela (1641-1668), como dotado de funções moralizantes que atestavam o Amor piedoso de Eneias (precursor de Jesus, segundo as interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio) que salva Anquises e os deuses Lares, simbolizando a fraternidade cristã; aliás, o tema justificava, também, a ideia da resistência dos povos face à tirania, pelo que servia bem a retórica cristã-brigantina à luz do espírito de 1640; em terceiro lugar, encarnava a tese da ancianidade de Portugal, uma tese legitimadora da Restauração através da lenda da fundação de cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Tróia (caso dos livros de Gabriel Pereira de Castro e de António de Sousa de Macedo, na senda dos de Frei Bernardo de Brito); enfim, simbolizava as virtudes do monarca cristão tal como a empresa XXVI da Idea del Principe Cristiano de Diego Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia face ao inimigo e ao alerta contra o perigo da falta de unidade nos reinos. A identidade de Eneias com o Restaurador transparece, também, em parangonas de homenagem a D. João IV, tanto em textos laudatórios oficiais (como o da Universidade de Coimbra de 1641 aquando da aclamação) como em várias orações parenéticas. Algumas das obras de Pereira com o tema de Tróia foram dadas a conhecer com inesperado sucesso na exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris-Roma, 2001-2002) e destacaram, então, essa memória primeira de intuitos político-parenéticos, em que o pintor tanto se esmerou. O profundo sentido do trágico, ao modo napolitano, interessou então a crítica, pela actualidade artística do seu autor, a sua ousadia plástica, e o facto de se tratar de nome praticamente desconhecido nos meios historiográficos e, ainda, nos círculos antiquários e de mercados da arte, onde estas obras passaram a ser muito revalorizadas.

     As pinturas de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre» e mais como divagações morais de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como bem se destaca na peça da BNP. Existem potencialidades de paisagista superiores às de pintor de figura, mas em visão da realidade que se pauta com elocubrações intelectualistas em torno de um temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, pelo tónus fantástico, assume-se como o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no tempo do Barroco nacional, com detalhismos antiquizantes, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da catástrofe, que o equiparam quase a um maneirista fora de época

     No belíssimo cobre da BNP, e na generalidade das Tróias que pintou, Pereira assume a identificação implícita da figura de Eneias como o rei-restaurador D. João IV, espécie de 'novo Eneias' libertador da pátria, campeão das liberdades cívicas, defensor da refundação de uma 'nova Roma' em Lisboa, e áspide da imagem do 'bom príncipe cristão' que conduz o antiquíssimo Portugal à tradição das glórias passadas. É por isso que estas pinturas eram tão estimadas pelas clientelas do tempo da Restauração, e que os partidários dos Braganças viam nessas obras um testemunho de parenetização de cunho nacionalista, com evidente carga simbólica: na evocação clássica da guerra de Tróia, o perfil de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom governo cristão, espécie de metáfora às virtudes do rei-restaurador. É de esperar que venham a aparecer novas obras de Diogo Pereira em reservas de museus ou colecções privadas portuguesas e estrangeiras, e é sintomático que algumas das obras que foram entretanto identificadas andassem atribuídas à esfera e mesmo aos próprios pincéis de Monsú Desiderio !


BIBLIOGRAFIA: Maria Rosaria Nappi, François De Nomé e Didier Barra, l'enigma Monsù Desiderio, Milano, Roma, Jandi Sapi Editori, 1991; Vitor Serrão «Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 1621-1684», catálogo da exposição Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77; Il mondo della pittura barocca portoghese. Naturalismo e tenebre. 1621-1684», Rosso e Oro. Tesori d’Arte del Barocco Portoghese, Musei Capitolini, Roma, Electa, 2002, pp. 44-61; «O mito do Herói redentor: a representação de Eneias na pintura do Portugal Restaurado», Quintana -- Revista do Departamento de Historia da Arte da Universidade de Santiago de Compostela, nº 1, 2002, pp. 71-82; «Contribuição para o estudo das representações histórico-mitológicas na arte portuguesa do século XVII. O ciclo da «Guerra de Tróia» pelo pintor Diogo Pereira», Actas do Colóquio Antiguidade Clássica: Que Fazer com este Património?, volume de homenagem a Victor Jabouille, org. A. Aires Nascimento, Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Lisboa, 2003, pp. 91-100, e ainda A. Raczynski, Les Arts en Portugal, Paris, 1846, e Dictionnaire Historique et Artistique du Portugal, Paris, 1847, e George Kubler, The Antiquity of Art of Painting by Felix da Costa, Harmondsworth, 1968, pp. 269-270.


Um caso de estudo: os Painéis de São Vicente, de Nuno Gonçalves.

10 Outubro 2016, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

       Há pouco mais de cem anos, era revelado ao grande público na Academia Nacional de Belas-Artes o processo de restauro dos chamados Painéis de São Vicente, conduzido por Luciano Freire, e dado à estampa o livro do Dr. José de Figueiredo O pintor Nuno Gonçalves (1910), considerado ainda hoje uma das peças incontornáveis na magna questão suscitada pelas famosas tábuas quatrocentistas. Longe de estarem solucionados, os problemas da identidade da obra continuam a abrir campo às paixões e às polémicas, a teses contrafactuais e mesmo a especulações. Sendo tantos os mistérios que na obra permanecem insondáveis, à míngua de documentação de arquivo esclarecedora ou de dados sólidos de cotejo estilístico para a identificação de personagens, é natural que a altíssima qualidade da obra atraia proporcione esclarecimentos deste ou daquele aspecto da pintura e explica-se também que, à margem da ciência histórico-artística, continue a dar lugar a um elán irresistível que gera leituras sensacionalistas e pseudo-teses sem a mínima fundamentação.

     Mesmo assim, a História da Arte avançou, e não pouco, no decurso do último século a respeito do sentido e potencialidades desta formidável galeria de retratados da Dinastia de Avis reunidos em acto de adoração a um santo diácono duplicado ao centro. Sabemos, por exemplo, que se trata de um grandioso ex-voto gratulatório a São Vicente, diácono-patrono da Cidade, do Reino e das Conquistas do Norte de África, reunindo a corte, os fidalgos, o Cabido da Sé, as ordens religiosas, gente de ofícios e da administração, pescadores, mercadores, um trabalhador braçal.  Também sabemos que estes seis painéis (e mais outros dois com martírios de São Vicente, hoje no MNAA) integravam a decoração da antiga capela de S. Vicente na Sé Catedral de Lisboa, junto ao venerado túmulo e relíquias do santo, e que esse altar era constituído por mais tábuas colocadas em fiadas sobrepostas, com cenas de milagres e martírios do santo (de que nos chegaram as duas referidas), podendo ser melhor esclarecida a vida desse famoso altar conforme à vasta documentação reunida (34 documentos), que mostra ser alvo de grande devoção de todos que visitavam Lisboa. Sabemos, ainda, que as tábuas foram executadas cerca de 1460-70, dadas as características do estilo, da técnica e dos elementos compositivos, que os exames laboratoriais confirmaram. Sabemos, enfim, o nome do pintor que dirigiu a empreitada, que se chamava Nuno Gonçalves, artista muito elogiado por fontes antigas como uma das Águias da Pintura, e que exerceu a actividade de pintor régio de D. Afonso V desde 1450, pintando em 1471 um retábulo para a Capela do Paço Real de Sintra, sendo agraciado por esses anos pelo Infante D. Pedro da Catalunha com um cavalo estante em Barcelona, e que faleceu em Lisboa pouco antes de 1492.

     Não são poucas, assim, as bases de conhecimento do artista a quem se devem as tábuas do Museu Nacional de Arte Antiga... aliás oito e não seis, pois  a  descoberta do historiador de arte Adriano de Gusmão, em 1955, das duas outras tábuas de Nuno Gonçalves, o excepcional S. Vicente atado à coluna e o fragmento de S. Vicente na cruz em aspa, como painéis restantes do antigo retábulo da Capela de S. Vicente da Sé de Lisboa, veio dar a verdadeira identidade estilística que faltava para se compreenderem as seis da Veneração. E não só identidade estilística, também iconográfica, sendo óbvio que a figura martirizada de S. Vicente era (é) a mesma que, trajando dalmática, se encontra como diácono e com seu nimbo luminoso de santidade no centro dos Painéis chamados do Infante e do Arcebispo.    

     Mas são muitas as questões que continuam sem resposta. Não sabemos quem são os sessenta representados.  Nâo sabemos para quê a obra foi feita, ou seja, que evento político ou militar específico é tratado e com que objectivo veneratório ou gratulatório. Não sabemos quem a encomendou, se o Cabido, a Corte, o Senado da Câmara, a Confraria de São Vicente da Sé, se todas estas entidades em conjunto. Não sabemos como se dispunha exactamente a obra na sua primitiva capela da Sé, destruída com o terramoto (ainda que os painéis não estivessem lá à data do megassismo, estando provada a sua oportuna transferência em 1742 para o palácio do Patriarcado em Marvila). Enfim, não sabemos onde se formou Nuno Gonçalves -- embora a referência do atento tratadista renascentista Francisco de Holanda, em 1548, quando dele diz ser o único português que «merece memória» e que deve o saber aos «antiguos e italianos pintores» cuja «discrição» quis «imitar» --, levem a concluír que o pintor, como retratista exímio dotado de um naturalismo requintado e senhor de uma técnica aprimorada, com o seu cromatismo cálido, sensibilidade por camadas transparentes e personalizado desenho, conhecia o ambiente proto-renascentista mediterrânico de Gozzoli, Mantegna, Castagno, Gentile da Fabriano, e até de Huguet, que a documentada estadia em Barcelona vem comprovar -- sendo de todos os modos uma questão insolúvel o modo como se pode entender a altíssima qualidade e maturidade estética da peça no contexto internacional do seu tempo, sobretudo num país ainda tão arreigado à tradição goticista. 


BIBLIOGRAFIA:

1910 – JOSÉ DE FIGUEIREDO, O Pintor Nuno Gonçalves, Lisboa.

1957 – ADRIANO DE GUSMÃO, Nuno Gonçalves, ed. Europa-América, Lisboa.

1988 -- DAGOBERTO L. MARKL, O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os novos documentos, ed. Caminho.

1994 – AAVV., Nuno Gonçalves – Novos Documentos, coord. de I. Vandevivere, J. Pessoa, D. Rodrigues, J. A Seabra Carvalho, D. L. Markl, ed. Instituto Português de Museus e Instituto José de Figueiredo, Lisboa.

2002 – FERNANDO ANTÓNIO BAPTISTA PEREIRA, Imagens e Histórias de Devoção. Espaço, Tempo e Narratividade na Pintura Portuguesa do Renascimento (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

2006 – PEDRO FLOR, O Retrato na arte portuguesa (1450-1550), Doutoramento, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa.