Sumários

O corpo, o gesto , o movimento e a serpente

9 Outubro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

OUTUBRO                                     3ª FEIRA                              6ª Aula

 

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Estava prometida uma sessão de trabalho com o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg para que pudéssemos aferir diversas coisas.

Em primeiro lugar, queríamos dar seguimento às breves referências de Didi-Huberman, na sua pequena obra Que emoção! Que emoção?, sobre um específico entendimento da história da cultura e das artes em que «as imagens ao mesmo tempo transmitem e transformam os mais imemoriais gestos emotivos.» (Didi-Huberman, 2015: 36) Aqui se estabelecia também a proximidade a Darwin.

Mas para além desta favorável conjuntura quisemos incluir nesta observação da prancha 77 do Atlas de Warburg a percepção do movimento das imagens que ofereciam leitura individualizada e noutras se expandiam.

Este exercício nada facilitado pela qualidade de alguns dos exemplares revestia-se de um particular interesse para nós, uma vez que Aby Warburg dedicou grande parte do seu estudo de vida a observar e a comparar comportamentos e manifestações de gestualidade no contexto das artes cénicas.

 As ménades pré-áticas nas suas danças orgiásticas de celebração a Dioniso cruzaram-se no imaginoso pensamento de Warburg com a representação dos figurinos teatrais para os intermezzi de 1589 de Buontalenti e com os desenhos de cena para os mesmos Intermezzi de Agostino Carraci. Esta matéria investigativa está tratada em várias obras do historiador de arte alemão. Menciono aqui tradução portuguesa: Aby Warburg 2013. A renovação da Antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do renascimento europeu. Tradução de Markus Hediger, Rio de Janeiro: Contraponto Editora.

É na sequência de aturada observação destes materiais mencionados e correspondente produção discursiva (ver e-mail enviado) sobre a possibilidade de as imagens interceptarem a História, criando-lhes vida póstuma (Nachleben) fora de um contexto cronológico, que Warburg parte, em 1895, para os Estados Unidos da América, primeiro para assistir ao casamento de um dos seus irmãos em Nova Iorque, e a seguir, apoiado financeiramente por alguns mecenas e seduzido pela ideia de poder estudar não-europeus em estado ainda primitivo, conseguir instalar-se, durante cerca de um ano, entre os pueblos de Oraibi e Walpi (Novo México), onde habitavam os índios Hopi.

Muito haveria a dizer sobre esta estadia e investigação de Warburg entre os Hopi. No entanto, o nosso interesse está em sublinhar que as verificações espectaculares sobre imagens pré-clássicas e renascentistas apuradas por Warburg, na gestualidade e comportamentos cénicos analisados, encontram entre os Hopi idêntico posicionamento em desfiles, danças e rituais associados à figura da serpente (já anteriormente estudada por Warburg) e em cortejos realizados ao ar livre como celebração de fertilidade, integração de morte e renascimento e como valorização do pensamento mítico e do pensamento simbólico.

A figura da serpente com a sua longa história no pensamento ocidental reveste-se de idêntico significado entre os Hopi, o mais antigo povo autóctone nos EUA, com mais de 3.000 anos de existência.

 

Leituras recomendadas:

DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América. (só para citação)

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. (leitura complementar segundo os interesses de cada um)

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

WARBURG, Aby, 2010, Atlas Mnemosine, Madrid: Ediciones Akal, S. A. (PDF enviado aos alunos)

                                 

http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/aguerreiro-pwarburg/

http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/aguerreiro-pwarburg/image.htm

http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/aguerreiro-pwarburg/pinotti.htm

http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis17/Poiesis_17_EDI_Mnemosyne.pdf


Inverter os papéis. Uma nova performance?

4 Outubro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

OUTUBRO                                     5ª FEIRA                               5ª Aula

 

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Abrimos a aula com um pequeno vídeo do Youtube que nos mostrava Marina Abramovic, em 2010, no MoMa de Nova Iorque, trajando vermelho do pescoço aos pés, sentada numa cadeira. Tinha então lugar a performance The artist is present, a que Frazzetto se reporta no livro em estudo (p. 205) e onde, segundo Frazzetto, Abramovic rejeita o teatro como «uma falsidade». Defende a artista que, ao contrário do que acontece no teatro, na Performance Art «as emoções são reais.» (ibidem)

Esta é uma questão antiga e Frazzetto encontra uma solução plausível apelando à capacidade humana «para distinguir entre o verdadeiro e o falso, o real e o imaginado.» (p. 206)

Nem sempre esta linha de fronteira é assim tão evidente. Nós como espectadores bastantes vezes nos interrogamos sobre o que, sendo alvo da nossa observação, nos não deixa assim tão tranquilos quanto à separação destas categorias. Uma boa comédia, por exemplo, bem gizada e bem representada, é capaz de pôr em causa o que Frazzetto afirma. Ocorre-me um autor do séc. XIX francês, Eugène Labiche, que com o seu feroz humor e uma aceleração rítmica da contracena nos faz muitas vezes perder o pé entre os vários campos da nossa capacidade perceptiva.

Aceitemos, entretanto, que Marina Abramovic defende bem os seus argumentos a favor da performance artística, mas aquilo que nenhum de nós pode aceitar é que a representação teatral, porque é um desdobramento, seja em si arte falsa. O treino consciente dos actores para dar vida à representação é com certeza tão sério e tão exigente quanto a moldagem entre mente e corpo a que se dispõe a artista sérvia.

 

Voltemos à sequência de 3’37 do vídeo, que nos mostra Marina Abramovic a receber espectadores anónimos, e que em frente dela se vão sentando um a um, por cerca de um minuto, tendo a separá-los uma mesa. Cenário simples, em amplo espaço. O lugar de Marina Abramovic e de cada anónimo está delimitado ao nível do chão por adesivo branco. Deste procedimento resulta a compreensão desse espaço como o lugar da acção em tempo real. O fora e o dentro adquirem a permeabilidade entre o antes e o depois, onde o simulacro do íntimo se joga dentro do quadrado. A performance tem regras e o museu está vigilante.

O exercício destinava-se a estabelecer contacto pelos olhos e a testar as reacções dos voluntários. Muitos controlavam-se como a artista, oferecendo à câmara que os filmava a superfície lisa de um rosto. Outros afivelavam uma máscara que não sabemos se era capaz de controlar tendões e fibras alojadas sob a pele. E havia aqueles que procuravam alívio para o excesso de dor e sofrimento que consigo transportavam. Para esses o encontro com Abramovic, com uma mesa de permeio, estaria em aguardo o tempo que fosse preciso até se tornar uma realidade. O ritual estabelecido e em multiplicação sucessiva cumpria uma espécie de santificação, adoração da artista, visível nas qualidades da sua arte e do seu carácter. Abramovic é um ser inabitual. E justamente àqueles que mais fragilizados se mostrassem diante de Marina, afinal uma presença real e verdadeira, maior seria a esperança de alívio. Vimos correr lágrimas em rostos de mulheres e de homens que afinal não se encontravam no consultório de psiquiatria, de psicologia, mas, face a face com outro ser, a fim de se confrontarem com as suas emoções. Exercício difícil e ainda por cima público. Que ficámos nós a saber destas pessoas? Teríamos nós sido estimulados a fazer o mesmo?

E ela, que permanecia sentada por sete horas e meia seguidas? Conduzir uma performance baseada no auto-controle, exposta num grande museu de Nova Iorque, que significado terá? Seriam as suas temporalidades idênticas às dos seus observadores/observados? Qual o papel do acaso nesta performance?

Pudemos observar inexplicáveis manifestações de comoção, mais ou menos contida, que atingiu anónimos, colunáveis como Lady Gaga que não chegámos a ver, e que se serviram de um lugar público com se fosse íntimo. O instante do primeiro encontro dos olhos parecia mudar tudo o que antes fora, e que tanto para Abramovic como para os expostos correspondia de facto a uma presença real.

Abramovic oferecia consolo controlado, agradecia intimamente ter sido escolhida e procurada. Mas a sua postura era claramente a de quem controlava a acção. A performance era dela, a arte em presença, como explica o título, justificava a sua mostração, após criadas as condições para que ela acontecesse. O elevado número de horas (sete e meia) sentada era uma elevada fasquia que Abramovic bem conhece e que até já antes superara.

Tudo parecia seguir um curso mais ou menos previsto, aceite por ambas as partes. O público do MoMa podia escolher entre ser protagonista, distrair-se conversando, circular com ou sem destino, observar outros sentados na cadeira.

A entrada de Ulay (artista e fotógrafo, ao tempo já com 74 anos de idade, e o grande amor de juventude de Marina Abramovic) na sala onde decorria a performance deixa-nos algumas dúvidas sobre a casualidade daquela proposta de encontro. Talvez outros dos presentes na sala, e próximos de ambos, conhecessem a intenção do artista alemão em surpreender a mulher que não via há muitas décadas. Importante foi para nós podermos acompanhar Ulay até se sentar em frente a Abramovic. O inesperado, repentino e decidido movimento do corpo dele que parecia querer superar de uma só vez a distância, um infinito mundo em que nenhum deles soubera do outro, replica-se em poderosos gestos que o precisam de fortalecer para que o perturbado estado emocional não o faça sucumbir. Este comportamento terá ao longo do minuto estabelecido um efeito de contraponto muito poderoso, com fissuras visíveis a cada segundo, uma vez que passamos a assistir à inversão de papéis: é a Ulay que cabe agora desempenhar o papel de Marina, de conforto e apaziguamento, de criação de confiança. Ulay fá-lo com muita dificuldade, também ele profundamente emocionado. Na fragilidade do corpo de Marina e, em particular, no seu rosto, espelham-se centenas e centenas de anónimos que diante dela se mantiveram leais a si mesmos. A presença real efectiva-se de modo surpreendente quando as mãos de ambos quebram a longa ausência sem toque. Neste caso, não basta o olhar, nem as lágrimas da artista. A empatia precisou de emoção de fundo.

 

Leituras recomendadas:

DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América. (só para citação)

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. (leitura complementar segundo os interesses de cada um)

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

WARBURG, Aby, 2010, Madrid: Ediciones Akal, S. A.. (PDF enviado aos alunos)

                                 

Vídeo observado:

https://www.youtube.com/watch?v=OS0Tg0IjCp4


Até onde nos pode levar a empatia?

2 Outubro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                     3ª FEIRA                               5ª Aula

 

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Esta não foi uma aula bastante produtiva. É essa pelo menos a minha percepção. Talvez os alunos estivessem «low». Talvez eu tivesse criado expectativa mais elevada em relação ao que acabou por acontecer.

Tratando-se de uma aula que anunciava o comentário ao capítulo sobre Empatia: A verdade escondida do livro de Giovanni Frazzetto, essa leitura não pareceu revelar-se empática, apesar do autor ser um grande fã de teatro e de ter dedicado várias páginas desse capítulo ao desempenho de actores, à observação de espectáculos, às práticas e teorias teatrais de um Peter Brook, de um Constantin Stanislavsky, de um Bertolt Brecht, de um Daniel Day Lewis, à experiência que terá sido conviver com uma actriz em palco, cujo modo de representar a transformou numa figura mítica, consagrada como diva, pela relação empática que estabelecia com os seus espectadores - Eleonora Duse (1858-1924). Não esquece o autor a extraordinária Marina Abramovic e a sua performance The Artist is Present (2010).

E tendo as artes cénicas como contexto, o que é particularmente atractivo para nós, Giovanni Frazzetto expõe-nos o que entende por empatia, a partir do seu estudo da neurociência, e de como esse fenómeno está dependente, entre outros aspectos, do funcionamento do nosso cérebro. Salienta o neurocientista a existência de uma pequena zona conhecida por GFI (Giro Frontal Inferior, localizada na área de Broca), como é mostrado na Fig. 13, do livro em estudo (p. 183), e à qual estão ligados neurónios com a função de espelharem o nosso comportamento empático.

Apesar de não podermos comprovar observando aquilo que Frazzetto nos diz (podê-lo-íamos fazer através de observação imagiológica, que não nos é acessível), o que importa é podermos possuir informação e conhecimento testado que nos permitem contemplar outros em acção interpretativa, compreendendo que as nossas reacções têm fundamento no nosso próprio cérebro e que lá se encontram os ‘dispositivos’ que nos fazem amar ou odiar o que contemplamos em muitas gradações.

 

Interrogo-me ainda sobre se teria sido escasso o tempo para o exercício de observação das pranchas de Warburg destinadas ao seu Atlas Mnémosine? Estou em crer que sim, e pelo facto vos peço desculpa.

Talvez na 3ª feira, dia 9.10, possamos escolher uma ou duas pranchas desse museu de imagens em movimento para as comentarmos.

Voltaremos na próxima aula a Frazzetto e à condição empática.

 

Leituras recomendadas:

DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América. (só para citação)

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. (leitura complementar segundo os interesses de cada um)

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

WARBURG, Aby, 2010, Madrid: Ediciones Akal, S. A.. (PDF enviado aos alunos)


Somos emoção. Tornamo-nos razão.

27 Setembro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

SETEMBRO                         5ª FEIRA                               4ª Aula

 

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Abandonámos temporariamente o trabalho de interpretação da pequena obra de Didi-Huberman Que emoção! Que emoção?

Destacámos ao longo de três aulas a prevalência progressiva em termos histórico-reflexivos do ponto de vista do autor francês que claramente defende a presença da emoção como um elemento essencial dos comportamentos da vida humana e dos animais.

O facto de ele nos ter elucidado sobre a pouca importância que foi sendo atribuída ao longo dos tempos pela filosofia racionalista às manifestações emocionais, não pôs em causa a sua intrínseca defesa de um conceito como pathos e do que a ele está associado: «Esta história é, justamente, a da palavra grega pathos, que é tão importante para os autores trágicos desta época – Ésquilo, Sófocles, Eurípedes – quanto, posteriormente, foi a palavra logos para os grandes filósofos exploradores da ‘linguagem’ ou da ‘lógica’, Platão e Aristóteles.» Didi-Huberman, 2015: 20)

Daqui podemos deduzir que a aproximação ao conceito de emoção não recebeu grandes favores dos filósofos da Grécia Antiga, posição que viria a influenciar o pensamento pós-socrático na cultura ocidental e até ao Século das Luzes. No caso dos filósofos gregos, e em particular Platão, obras como o Banquete e o Fedro, por exemplo, tratam de questões relacionadas com o amor, o erotismo, o desejo. O que está, porém, em causa não é a opção por temas e assuntos, mas é o tipo de discurso argumentativo utilizado nos diálogos. É através desta discursividade organizada a partir do logo, da razão, tão cara à filosofia antiga a partir do séc. V a. C. e tão pouco cara às tragédias de então, que é possível escrutinar o que aproximou os gregos do pathos ou do logos. Neste «campo de batalha» excepções houve também: a voz de Diotima de Mantineia no Banquete de Platão, os poemas de Safo sobre a experiência amorosa.

Didi-Huberman procura reabilitar a atenção que poderemos dar ao campo emocional através da contemplação de imagens e igualmente estabelecendo uma genealogia do termo pathos considerado na sua vertente passiva e activa. (Didi-Huberman, 2015: 21-30)

È na p. 30 da conferência que pela primeira vez deparamos com o entendimento das emoções de um ponto de vista ético e como possibilidade de relacionamento activo com outros, apresentada como um comprometimento social mútuo, como uma extensão do que é particular para o universal, como uma forma de empatia, ou sua ausência, mas que claramente diz respeito não apenas a nós mas a todos. Como diz Didi-Huberman, «A emoção não diz ‘eu’: (…)» E este reportar-se a todos vem recuperar o que em nós sobrevive de mais primitivo (como dizia Darwin). O primitivismo das emoções contém a sua universalidade.

«As emoções passam por ser gestos que efectuamos sem nos darmos conta de que vêm de muito longe no tempo. Esses gestos são como os fósseis em movimento. Têm uma história muito longa – e muito inconsciente.» (Sublinhado meu) (Didi-Huberman, 2015: 32)

É neste contexto de alargamento da ideia de emoção que Didi-Huberman convoca para o espaço da sua conferência o historiador de arte alemão Aby Warburg (1866-1929).

Em Warburg encontramos um retorno ao pathos agora sob a designação de «fórmulas de pathos» que significam o movimento estratificado (aquilo que um fóssil deixa ver), a moção fossilizada, cristalizada (como nas emoções) das imagens transmitidas pela memória histórica. Estas imagens, segundo Warburg, pedem a nossa atenção como polarizações de si mesmas e em relação a outras imagens, e podem ser «reactivadas na sua significação, resgatadas, assumidas pelo complexo expressivo de uma determinada época.» (Palavras de António Guerreiro no seu ensaio O Pathosformel e a imagem dialéctica; correspondências entre Warburg e Benjamin in: Anabela Mendes et altri (org.) Qual o tempo e o movimento de uma elipse? – Estudos sobre Aby M. Warburg, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 76)

Talvez que esta proposta nos possa interessar, se pensarmos como Warburg equacionou o seu megalómano (mas bem-vindo!) projecto, já na última fase da sua vida, de criar um atlas de imagens em circulação e mutação a que deu o nome de Mnémosine (a deusa da Memória).

Que terá este atlas de imagens a ver com as emoções? Não é sobre sequenciação histórica nem sobre factos que essas imagens nos inquirem. Elas pedem para ser reavivadas, querem pertencer-nos na nossa contemporaneidade e agitam-nos, emocionam-nos na sua plenitude a descobrir. E porquê? Porque são elas movimento, emoção, que se nos atravessa no caminho?

Didi-Huberman utiliza na sua conferência uma palavra-chave: «as imagens são uma espécie de cristais (…)» (Sublinhado meu) (Didi-Huberman, 2015: 35), na acepção de receptáculo visível que preserva alguma coisa, sendo que essa coisa são os próprios gestos que se transmitem de ser para ser, e que ao mesmo tempo criam «moção», «movimento».

 As imagens transportam consigo uma genealogia antiquíssima (lembremo-nos das pinturas rupestres de há milhares e milhares de anos) que podemos equiparar ao funcionamento das emoções. Saliento aqui as «emoções de fundo» que, segundo António Damásio, na sua obra O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, exprimem «o núcleo interior da vida e o seu alvo é mais interno do que externo.» (Damásio, 2000: 73)

Quer isto dizer que apesar de ser a exterioridade das imagens que nos atrai, é dentro de nós que se prepara a capacidade de as recebermos.

Diz-nos então Damásio: «Quando sentimos que uma pessoa está «tensa» ou «irritável», «desanimada» ou «entusiasmada», «em baixo» ou bem-humorada», sem que uma única palavra tenha sido dita para traduzir quaisquer destes possíveis estados, estamos a detectar emoções de fundo. Conseguimos detectar emoções de fundo através de pormenores subtis relacionados com a postura corporal, com a velocidade e contorno dos movimentos, com modificações mínimas na quantidade e velocidade dos movimentos oculares e no grau de contracção dos músculos faciais.

Os indutores das emoções de fundo são habitualmente, internos.» (Damásio, 2000: 73)

Para concluir, demos ainda atenção a Damásio: «(…) as emoções de fundo podem ser causadas por um esforço físico prolongado – desde o «high» (sentir-se bem) que se segue ao jogging, até ao «low» (sentir-se em baixo) devido a um trabalho físico desinteressante e monótono ~pelo remoer de um a decisão difícil de tomar – uma das razões que explicam a tristeza de Hamlet – ou, pela antecipação de um acontecimento magnífico que nos aguarda.» (Damásio, 2000: 73.)

Umas páginas mais adiante do seu livro aqui citado, Damásio acrescenta: «O efeito purificador, catártico, que, segundo Aristóteles, deveria fazer parte de todas as grandes tragédias baseia-se na suspensão súbita de um estado de medo e pena até aí mantidos sem quartel. Muito tempo depois de Aristóteles, Alfred Hitchcock construiu uma brilhante carreira neste simples arranjo biológico e Hollywood nunca mais deixou de nele apostar. (…) No que diz respeito à emoção, não temos maneira de escapar à armadilha que a natureza nos preparou. Caímos nela à ida ou apanhamo-la à vinda.» (Damásio, 2000: 80-81.)

 

 

Leituras recomendadas:

DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e aq Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América.

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

 

 

Aulas previstas em Setembro – 4

Aulas dadas em Setembro - 4

Saídas culturais - 0

Saídas cá dentro - 0


Em torno da expressão das emoções

25 Setembro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

SETEMBRO                         3ª FEIRA                               3ª Aula

 

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Encontrei nesta aula um clima apreensivo entre os alunos. Não em todos, claro, mas uma grande parte dos presentes parecia nada ter para dizer sobre a obra disponibilizada de Georges Didi-Huberman. Tratava-se de uma pequena conferência destinada a um público juvenil e aos seus acompanhantes, apresentada em Montreuil, França.

O assunto da conferência, apresentado em 2013 e publicado dois anos depois, era sobre emoções. O próprio título desse escrito - Que emoção! Que emoção? anunciava-se já como um instrumento de trabalho curioso. Através da expressão Que emoção! consagrávamos o nosso espanto, Que emoção? abria-nos o campo das perguntas.

E porque as emoções, ainda que estudadas e trabalhadas desde a Antiguidade Clássica, nunca foram o campo especulativo mais apetecível do pensamento ocidental até meados do séc. XVIII, e porque, como dizia Darwin, segundo Didi-Huberman, «a emoção é considerada um estado primitivo» Didi-Huberman, 2015: 15), daí decorrendo talvez o fraco interesse por elas, não deixa de ser verdade que, por exemplo, as lágrimas propiciam um directo benefício a todos nós e que o seu primitivismo continua, e certamente continuará a integrar-nos como seres e como espécie. Tal é o caso decorrente de observação e análise da expressão emocional em animais e seres humanos, levado a cabo por Darwin, e que fazem o biólogo e naturalista escrever: «a secreção de lágrimas serve para aliviar o sofrimento. E quanto mais forte e histérico for o pranto, maior é o alívio que proporciona – de acordo com aquele mesmo princípio que nos diz que a contorção do corpo, a emissão de gritos penetrantes e o ranger dos dentes são acções que produzem alívio quando se está sob o efeito de uma dor muito forte.» (Darwin, 2006: 161)

O carácter terapêutico das lágrimas não deixa por isso de manifestar uma outra componente comportamental associada a estados emocionais e a sentimentos. E é talvez por isso que a pequena conferência de Didi-Huberman nos pode interessar.

No final do seu livro aqui citado, Darwin diz o seguinte: «Vimos também que em si própria a expressão, ou a linguagem das emoções, como há quem lhe chame, é sem dúvida importante para o bem-estar da humanidade. Compreender, na medida do possível, a fonte ou origem das várias expressões que a todo o momento presenciamos no rosto dos homens que nos rodeiam, ou até nos animais domésticos, há-de ter necessariamente grande interesse para nós. Por todas estas razões, podemos concluir que a filosofia desta questão merece toda a atenção que lhe tem sido dedicada por alguns excelentes observadores, e que o seu estudo merece ser aprofundado, especialmente por algum fisiólogo competente.» Darwin escreveu estas frases em 1872, no fim de um belíssimo livro, com uma segunda edição em 1889. Talvez hoje o lugar do fisiólogo, a que Darwin se referia, seja ocupado pelos neurocientistas e antes deles pelos psicólogos, psicanalistas e outros estudiosos do comportamento humano.

Mas não sendo nós neurocientistas nem desempenhando outras profissões que se ocupam do estudo do cérebro, não estamos tolhidos da capacidade de observar, muito distinta da capacidade de olhar e de ver.

De certo modo o que Didi-Huberman procura demonstrar na sua pequena palestra é justamente qualquer coisa de que talvez não nos apercebêssemos assim com tanta facilidade: nos pratos da balança da reflexão europeia e ocidental, as emoções não têm, até ao final do séc. XIX, um peso muito expressivo. Poderemos invocar a pujança de um Século das Luzes que se ocupou em defender o pensamento ordenado e sistemático que tinha por princípio autonomizar o ser humano na sua dimensão prática, política e espiritual. Estamos de acordo em termos gerais com esta perspectiva de criar condições e incentivar a saída do ser humano «de um estado de menoridade», como dizia Kant. Mas entendemos que a saída desse «estado de menoridade e servilismo» só se alcança na plenitude das capacidades de cada um. É por isso que dar particular atenção à expressão das emoções, e cada vez mais neste nosso século isso deveria ser uma prioridade, tal como preconizava Darwin, a propósito do insuspeito bem-estar para o qual a «linguagem das emoções» poderia contribuir.

As emoções, os estados emocionais vários que nos habitam, na sua condição simples ou mais complexa, são o fundamento primeiro das artes, da ciência, da filosofia.

E é por isso que Didi-Huberman escolhe exemplos das artes plásticas, da fotografia e do cinema para demonstrar a sua presença em objectos que ele nos ajuda a descobrir. Tal exercício poderá ser sempre feito por nós em relação às Artes do Espectáculo, área em que talvez sejamos mais experientes do que o próprio historiador de arte francês.

Esta conferência destina-se a abrir-nos horizontes sobre a história geral do conceito e sobre a capacidade de observarmos o mundo sensível e de o interpretarmos. Naturalmente que o próprio estado observacional pressupõe que façamos juízos de valor enquanto apreciamos o que nos é dado observar.

Uma possível forma de nos aproximarmos de Que emoção! Que emoção? será acompanharmos o percurso histórico (tarefa já iniciada e que suscitou alguma polémica), mas sobretudo o traçado especulativo do autor sobre a ideia de emoção individual e colectiva. Faremos isso na próxima aula.

 

Leituras recomendadas:

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água.

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.