Sumários

O que nos diz o nosso corpo?

5 Abril 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

ABRIL                                   2ª FEIRA                               9ª AULA

 

 

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Recebemos hoje a exposição e diapositivos comentados por Rocio Perez como uma sequência de exercícios práticos de questionação e entendimento sobre o corpo, suas emoções, sentimentos e consciência. Resultando esta apresentação de diversos trabalhos oficinais realizados com formandas, verificámos encontrar-se a investigação em processo, se bem que a doutoranda fosse alargando o seu campo investigativo a testemunhos das alunas com quem trabalha e igualmente socorrendo-se do pensamento de António Damásio para formular conceptualização.

A apresentação foi muito estimulante, em particular, pela valorização de alguns dos exercícios como o que foi realizado com o gelo e a que tivemos acesso por imagens visuais.

Para a pesquisadora é essencial que nos “deixemos tocar pelos sentidos” e que na sua companhia e presença possamos fruir a experiência artística partindo da consciência do corpo de cada um. Esta proposta que parece ser acessível como descrição corresponde a um universo muito mais complexo do que a realidade linguística deixa antever.

Neste contexto faria referência a leitura de Damásio, que Rocio Perez menciona e mostra, mas sem indicação bibliográfica, presente agora em A estranha ordem das coisas – A vida, os sentimentos e as culturas humanas, pp. 181-192, e que nos faz tomar consciência de que afinal existem dois sistemas nervosos e não um: o sistema nervoso central e o sistema nervoso entérico, também designado como sistema nervoso periférico.

Trago a terreno este assunto por me parecer que a linguagem extremamente poética de Rocio Perez na sua apresentação parece desconhecer o comportamento do corpo nas suas mais elementares condições e a que Damásio se reporta: «(…) a função do sistema nervoso entérico está, em grande medida, sob o seu próprio controlo. O sistema nervoso central não diz ao sistema entérico o que fazer, nem como fazê-lo, mas pode modular as suas operações. Em resumo, existe uma troca contínua entre o sistema nervoso entérico e o sistema nervoso central, embora o fluxo de comunicações se verifique, geralmente, dos intestinos para o cérebro «superior». (p. 190) O conhecimento desta realidade corporal poderá fomentar novas possibilidades de leitura das imagens (diapositivos 2, 4, 9, 10, 11, 12, por exemplo) que vimos na apresentação de Rocio, nomeadamente aquelas que exprimiam a sensação de frio, de tristeza.

Ainda com Damásio: «Ultimamente o sistema nervoso entérico tem vindo a ser referido como «segundo cérebro», uma honrosa classificação que se deve à grande dimensão e autonomia do sistema. No estado atual da evolução não há qualquer dúvida de que o sistema nervoso entérico fica atrás do cérebro «superior» em termos estruturais e funcionais. Todavia, tudo indica que, historicamente, o desenvolvimento do sistema nervoso entérico terá precedido o do sistema nervoso central. Há bons motivos para que assim tenha sido isso, todos relacionados com a homeostasia.»  (p. 190)

E que sistema nervoso é este responsável, tal como aquele que aprendemos a conhecer como sistema nervoso central, pelas relações entre o corpo e o cérebro? Este é aquele sistema «que regula o tubo digestivo, desde a faringe e o esófago até à outra extremidade.» (p.189) Tratado até muito recentemente como «periférico» este sistema nervoso «não é periférico mas central!» (p. 189)

Talvez Rocio possa reflectir sobre estes aspectos centrais do corpo quando estiver a realizar exercícios com as suas alunas. A distinção entre os diversos estádios de emoção, sentimentos e humor. Falo aqui dos humores do corpo no seu trânsito gastrointestinal.

Certo é que a sua apresentação nos conduziu para obra de arte que resultou do trabalho com as suas discípulas e que nos surpreendeu.

Assumido como exercício prático, tivemos oportunidade de acompanhar processos evolutivos e resultados de experiência.

Diz-nos ainda Damásio no subcapítulo O lugar dos sentimentos: «Localizamos a dor, o que útil, evidentemente, mas não menos importante, a resposta emotiva à dor sentida e que atrai toda a nossa atenção. Parte da nossa interpretação e quase toda a nossa reação depende do sentimento. Reagimos em conformidade e, se possível, avisadamente.» (p. 193)

Participativa foi a discussão em torno do trabalho de Rocio Perez. Eliane Ramin referiu o seu processo de actriz-directora cénica acentuando a importância do teatro enquanto processo para salientar a dimensão terapêutica do mesmo. Maria Josefina Fuentes centrou-se especificamente no processo de investigação e no trabalho com a memória emotiva, criando um fluxo de atenção nesse trabalho. Maria João Vicente salientou o trauma como ponto de partida e a consciência da afectação na tomada de consciência do corpo em transformação e como ele é ao mesmo tempo veículo de tradução. Acrescentou a aluna ainda a importância de preparar um laboratório como possibilidade de construção entre proximidade e distância. Patrícia Anthony centrou-se na questão pedagógica desta experiência, inquiriu Rocio sobre a duração de cada laboratório e o número de participantes que nele agem.

A referência do corpo como arquivo foi também levantada no âmbito da discussão.

Deixei uma pergunta à assembleia: Como se escuta um corpo interno?


Férias da Páscoa

29 Março 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Férias da Páscoa


Em torno da voz natural e do trabalho artístico com a voz

22 Março 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

MARÇO                                2ª FEIRA                               8ª AULA

 

 

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Iniciámos o nosso seminário com uma chamada de atenção que visa lembrar às alunas e ao aluno a necessidade de apresentar um manifesto de intenções que nos esclareça sobre o trabalho final a realizar por todos.

Essa informação deverá chegar-me até ao fim das férias da Páscoa.

Defendi antes que considerava possível e desejável como exercício de treinamento futuro que cada um escrevesse um pequeno capítulo da tese ou partes da mesma, de acordo com o andamento das investigações de cada um.

Muitas vezes a “folha” em branco é criadora de angústias que talvez possam ir sendo ultrapassadas.

Esta opção, face à habitual escrita de um relatório, parece-me ser mais exigente, mas ao mesmo tempo também funciona como contra-prova do que cada um já alcançou em termos metodológicos e investigativos e o que precisa de fazer em etapas futuras. (Ver indicações dadas na 1ª aula, agora adaptadas a esta modalidade.)

Caso a sugestão aqui apresentada não colha o vosso interesse, por esta ou aquela razão, o que muito me entristeceria, manteremos o formato de relatório sem mais.

 

Teve hoje lugar a 2ª apresentação de Maria-Josefina Fuentes a partir da estruturação escrita de dois exercícios práticos – “El pasado adelante” e “Crisálida” -, abrindo ainda espaço para “Cariñarse”, todos em processo de rememoração e fixação em forma coerente.

A aluna enviou aos colegas e a mim documentação que suporta a fase investigativa e de inquirição actual sobre as performances anteriormente visionadas e comentadas.

Expôs-se ela no assumir da verdade do seu processo como escutadora especial e em função da especificidade auditiva que a caracteriza: «Mis umbrales auditivos son muy bajos, lo que implica que escucho intensidades

muy sutiles.» Este aspecto de natureza biológico-aural (formação do seu ouvido interno) torna-se num elemento preponderante para a condução do processo investigativo no que à voz também diz respeito.

Paralelamente a esta característica endógena, Maria-Josefina abre o seu mundo perceptivo a outros elementos, agora exteriores, que tornam a investigação muito rica do ponto de vista da aquisição e tratamento de materiais. É o caso do visionamento de um pequeno vídeo – Last Knit – a partir do qual nasce a versão que observámos de “El pasado adelante”. Estarmos por dentro do processo criativo permite-nos desenvolver perspectivas de meta-colaboração e interpretação que se tornam essenciais para a recepção daquilo a que somos expostos.

O entendimento do corpo vocal para Maria-Josefina Fuentes apresenta já uma boa sustentação bibliográfica que prossegue sem parar, o que não a impede de dedicar também uma significativa parte do seu tempo à escrita que vai ensaiando em modo de variação, isto é, adequada a cada objecto e ao que ele requer para prosseguir com voz própria, adaptando-se a um puzzle de construção.

Das intervenções dos colegas destaca-se a ideia de polifonia que a investigação apresenta no processo associativo da voz (com integração de muitas vozes) e em que interferem diversos aspectos de uma mesma realidade, como defende Paúl Sanmartin. Torna Rocio Perez relevante na sua colaboração receptiva a ideia de espaço vocal como lugar de encontro, como forma de exercitação de proximidade actuante através da voz e seus matizes. Acrescenta Maria-Josefina que esse espaço vocal tem a função de ser transformador como forma de conhecimento para outros, o que aliás já está presente no que nos foi apresentado nas duas aulas dedicadas a este assunto.

Eliane Ramin fala-nos da sua experiência como actriz no contexto da percepção auditiva como capacidade de eliminar ruídos/zunidos de variada espécie e que são um factor de perturbação em diversos níveis, secundados por manifestações exteriores como, por exemplo, o uso de linguagem por interlocutores cuja língua não entendemos.

Patrícia Anthony reporta-se ao universo de diversas vozes, adequado também à sua experiência materna, em que o filho pequeno exercita já o bilinguismo com diferentes sonoridades. Salienta ainda Patrícia a dimensão emocional a que fomos sujeitos com o trabalho de Maria-Josefina e que nos proporcionou um conjunto de sensações e percepções de que não só tivemos conhecimento, como constituiu um acesso aos bastidores da pesquisa.

Este último aspecto resultou da clara e pormenorizada exposição de Maria-Josefina que de facto nos conduziu a alguns aspectos que passaram a adquirir sentido para nós (recorde-se o vídeo Last Knit). A partir do momento em que foram desvendados os fios que tudo ligam e que desocultados estabeleceram com o trabalho da investigadora uma nova relação que ela quis de proximidade e esclarecimento. Vem a propósito como foi alcançado o caminho para a sua 3ª produção performativa e a que deu o nome de Cariñar. Foi-nos explicado que esta palavra nasceu de um neologismo criado por uma das suas filhas. Reforça este exemplo outras opções de que fomos tendo conhecimento e que justificam no contexto metodológico a sensibilidade com que maria-Josefina aborda e trabalha as suas obras artísticas sempre em torno de um cada vez mais intensivo aproveitamento da voz, do canto, da linguagem oral e, obviamente também, da palavra escrita.

O trabalho da pesquisadora revela maturidade na sua condução, tendo-nos permitido a realização de uma aula muito produtiva.

 

Aulas previstas em Março – 4

Aulas dadas em Março – 4

Saídas culturais – 0

Saídas cá dentro – 1 preparação de trabalho de leitura sobre Rotas da Escravatura de Jordi Savall


Apresentação de ensaio escolhido por Patrícia Anthony

15 Março 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

MARÇO                                2ª FEIRA                               7ª AULA

 

 

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Dedicámos esta nossa aula à escuta de apresentação e de reflexão crítica de Patrícia Anthony sobre ensaio de Luciana Hartmann, Performance e Experiência nas Narrativas Orais da Fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai (2005).

A aluna procedeu ao levantamento das questões essenciais do ensaio em estudo, situando-se nas diferentes modalidades do conceito de performance e salientando a diferença entre “acto performatizado” e “evento ordinário do quotidiano”. Patrícia Anthony reconheceu que o campo em debate não oferece uma garantia conceptual unívoca, ainda que não possamos negar que a performance “é um acto reflexivo que cria uma experiência”.

Pergunto-me quantos actos reflexivos são criadores de experiência sem que possamos afirmar tratar-se de uma performance?

Expressa-se a nossa aluna, e partindo sempre do ensaio escolhido, sobre dois termos que claramente pretendem tornar a etnologia e a antropologia extensíveis a novas áreas do conhecimento. A saber: etnocenologia e antropocenologia. A desmultiplicação científica alcançada com estas designações procura fragmentar conhecimento que explicita e implicitamente estará presente nas artes cénicas sem que elas se possam libertar desta nomenclatura, embora reconheçamos as ligações existentes.

Patrícia Anthony centra-se em área da sua investigação defendendo com a autora do ensaio dois tipos de performance que emergem, ou irão emergir das suas investigações e exercício prático com respondentes.

São, pois, consideradas: 1. a performance como desempenho narrativo e 2. a performance como espectáculo. A exemplificação apresentada pela mestranda socorre-se de textos recolhidos por Luciana Hartmann. Em ambos os casos o comentário é de natureza linguística, formalmente considerado de natureza poética (1.), o que se revela mais em termos formais do que propriamente como expressividade natural que parece ser o que na verdade acontece com o 1º relato.

A linguagem oral captada nos dois exemplos, e considerando o que os distancia entre si, poderá conter para nós leitores e auditores momentos de teatralidade específica em função da personalidade, da natureza de vida de cada orador e através da respectiva ambivalência do discurso, como também na visão metafórica do lugar fronteiriço de onde são feitos os relatos apresentados. Interessante este aspecto do projecto de Luciana Hartmann.

A nós ficou a faltar-nos a visibilidade da experiência. A tradutibilidade do processo que, apresentado por escrito, omite, pelo menos para nós, a narração com o corpo. Transcrever não pode substituir a viva comunicação do próprio que na realidade nunca se desliga do que escutamos. Neste caso não escutámos. O corpo como escuta e visualidade é uma parte insubstituível do acto de narrar e que tem naturalmente valor performático.

Patrícia Anthony, na esteira de Luciana Hartmann, deseja aplicar ao seu estudo em curso a capacidade de compreender as realidades culturais dos indivíduos e das comunidades a que pertencem a partir de histórias de vida. A originalidade de um pequeno quadro branco no qual se pede a alguém que conte a sua história, como nos mostrou a Patrícia, parece-me ingénuo tendo presente o tipo de pessoas – migrantes – que com este objecto são confrontados. Tenho uma sugestão para a nossa aluna e para quem entender alargar artistica e eticamente o seu horizonte sobre a dificílima vida de migrantes e refugiados.

Na Galeria Filomena Soares em Lisboa, encontra-se uma exposição com o título PLACES OF WAR de Daniel Nave. Esta mostra tem como objecto a destruição na Síria causada pela longa guerra que não tem fim. É de inquietação, ruínas e caos que são feitos estes “Lugares de Guerra”. As imagens em teia e a música identificam o que resta de um país de onde fugiram os que puderam fugir e cujas memórias transportam um antes e um depois de onde as marcas de uma casa que foi abrigo e protecção deixou de o ser, dando lugar ao que deixou de ter forma e que as teias da exposição invocam.

A exposição está aberta até 30 de Abril.

gfilomenasoares.com

Sinto dificuldade em compreender como o ensaio de Luciana Hartmann tão luminoso e ensolarado na sua recolha de histórias divertidas, cheias de humor

e muito ao sabor de vivências que contadas ajudam a passar o tempo, possa na vertente prática do trabalho da Patrícia ter correspondência nas histórias de gente que foge da guerra, que morre no mar e, saltando fronteiras, procura um abrigo temporâneo sem nunca esquecer de que cultura veio.

Foram sendo colocadas perguntas à Patrícia e a todos os colegas ela respondeu com entusiasmo e convicção, associando as práticas do contar de histórias a duas formas de teatro que, na sua opinião, estão próximas do Teatro de Rua e do Teatro Comunitário. Alguma razão terá a Patrícia ao invocar estes dois subgéneros teatrais que nascem de partilha e vivência comum e onde as histórias de uns e de outros aí têm lugar.

Quem sabe se as histórias dolorosas de migrantes e refugiados poderão ter um rumo novo e de esperança, quando narradas à investigadora.

De entre as questões apresentadas, Paúl Sanmartin referiu justamente um aspecto curioso relacionado com o ensaio em estudo. A personagem de fronteira provém de um “corpo que é parte de um complexo cultural” e esse corpo traduz experiência e exprime um dizer próprio. Maria João Vicente acrescentou um aspecto importante no contexto de ensaio e que se relaciona com a prática do contrabando. Esse aspecto está presente nas narrativas comentadas e é, mais uma vez característico de uma vivência cultural. Referiu a Maria João um elemento crucial da apresentação de Patrícia que foi a inclusão na apresentação de um vídeo feito com a própria investigadora e que criou uma dimensão individualizada num contexto colectivo. Maria Josefina Fuentes coloca uma questão já mencionada: como se relaciona a Patrícia com narrativas de emigrantes? A resposta não sofre grandes alterações ao que já fora dito, embora seja sublinhado que poderão ser contadas histórias de amor, histórias de emigração, histórias que refiram comportamentos do quotidiano. Patrícia acrescenta ainda a experiência que já tem de escutar histórias. Josefina acrescenta uma segunda pergunta: Como agir com a pragmática?” e termina lembrando que a voz (sua área de investigação) deverá ter um lugar na análise. Paúl acrescenta que é importante acolher o outro como ele é. Rocio Perez menciona a importância do espaço e como ele é decisivo para a experiência que nesse espaço se produz. Eliane Ramin ocupa-se da diferença entre realidade e ficção no contar de cada história. Patrícia socorre-se da sua própria história para encerrar a indagação de todos.

Também a propósito deste final, em que Patrícia se apresenta como emigrante em França onde fez o seu curso de Mestrado, sinto alguma dificuldade em estabelecer comparação com o seu trajecto e o trajecto das pessoas que a aluna pretende investigar ou já estará a investigar.

Pontos de vista incoincidentes não significa que não tenhamos apreciado o trabalho de apresentação da aluna que mantém grande vivacidade e entusiasmo pelo seu assunto: Migrações na cena – Influências e Desdobramentos das Migrações na Criação Teatral entre Portugal e Brasil


da voz ao canto

8 Março 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

MARÇO                                2ª FEIRA                               6ª AULA

 

 

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Iniciámos o nosso seminário escutando Maria-Josefina Fuentes sobre as duas performances – Crisálida e El pasado adelante – que nos apresentou na semana passada em pequenos vídeos. Pedimos para rever as duas produções para recuperarmos o que nos poderia interessar como contra-diálogo.

Maria João Vicente interpretou em Crisálida as folhas rasgadas do caderno e cosidas umas às outras como uma mortalha sobre a performer, explorando a ideia de “cura pela arte”: “dói-me/cura-me”. Josefina defendeu a sua produção através do elemento voz – a área da sua investigação doutoral – como a única possibilidade de a integrar como processo de sublimação, chamando a atenção para o facto de que a gravação revelava a disfonia das vozes justamente durante o momento em que se procede à cosedura.

Rocio Perez salientou uma expressão de Josefina que afirma: «Esta não é a minha voz” como sendo um aspecto a relevar no contexto de toda a performance, criando um ambiente emotivo e comovedor como se a voz se comentasse a si própria. Para Josefina, a voz é trabalhada como «ressonância interior».

Por sua vez, Patrícia Anthony salienta na segunda performance, El pasado adelante, a questão que tem representatividade na fraqueza humana, a propósito do que lhe é dado observar do desempenho da colega, enunciando como objecto artístico a ideia de crise que acompanha o estado psico-físico da performer, e salienta como contraponto a beleza dos sons naturais que pudémos escutar.

Reportando-se a Crisálida, Josefina explica e sublinha que a utilização de uma canção como uma única melodia contínua tem a função de tentar reconstruir um corpo, talvez uma vida em certa fase. É através do desempenho vocal, defende a aluna, que o corpo se recompõe e reconstrói, daí a tónica sobre a voz em relação a outros elementos constitutivos da performance. Em contrapartida El pasado adelante não usa uma canção como unidade vocal, mas sons sob a forma de display. A criação de distinta atmosfera produz efeito mais discrepante quando comparado com a primeira performance.

Eliane Ramin revela ter-se sentido muito tocada pelas apresentações da colega e sublinha a necessidade de um rompimento com um tempo anterior para que haja uma redescoberta num tempo seguinte. Acentua ainda Eliane que não parece fácil este processo no âmbito de uns poucos minutos de trabalho artístico.

Paúl Sanmartin segue uma outra estratégia de abordagem destes dois objectos artísticos, estabelecendo entre eles comparação. Apesar de ter sido proposto que nos ocupássemos de cada performance por si, é compreensível que sejamos tentados a olhar/ouvir ambas como um conjunto entre si comparável. Foi isso que foi acontecendo e que se tornou mais evidente no caso da intervenção de Paúl. Na sua perspectiva, o som revelado em cada momento específico corresponde a um estado corporal próprio, a uma coreografia emocional que se desdobra em voz, canto, som, criando um desdobramento entre pessoa que investiga e pessoa que se escuta e se mostra. Chegados à compreensão deste processo podemos inferir que a multiplicidade das sucessivas etapas das performances permite ao espectador/auditor aproximar-se de distintos níveis de um mesmo objecto artístico e, neste caso, das duas performances.

Josefina Fuentes interroga-se sobre quantos corpos tem uma voz. Maria João Vicente destaca da sua visualização que em Crisálida a boca da performer está pintada de vermelho. Em El pasado adelante a boca está oculta conduzindo a uma escuta biológica e simbólica de todo um corpo sem rosto..

Ainda em jeito de conclusão Patrícia refere o recurso a várias posições de Yoga na última performance. Eliane recorda a compreensão do corpo como ressoador.

Rocio Perez relembra a presença e a importância de uma canção, na primeira performance, e também na segunda performance, a abertura do espaço e a captação dos lugares associados à respiração do corpo e seu ressoar. A aluna capta ainda diferentes níveis de construção de um lugar de afectos na escuta dos sons oceânicos integrados na segunda performance.

Verificamos na apresentação destas duas performances que existe uma opção por dois distintos espaços para a função. Em Crisálida a performer opta por uma sala de aula descarnada, onde a projecção de voz é condicionada pelas condições acústicas desse espaço. Espaço fechado como projecção para o seu corpo e para o seu estado de espírito. Teríamos neste caso a representação da negatividade em presença.

Em El pasado adelante temos o espaço natural aberto onde ecoam os sons próprios desse lugar. O estado de espírito da performer não é menos cauteloso do que antes, mas revela um distinto posicionamento, naquilo que arrisca com o seu próprio corpo. Estar à beira de um precipício (confirmado por Josefina) determina que a nossa leitura possa incorporar uma fronteira entre a vida e a morte.

Essa ideia de transição era já aflorada na primeira performance, ainda que o título da mesma – Crisálida - configure um estádio de passagem entre o larvar e o tornar-se adulto para certos insectos. Não vemos nunca a borboleta que se deveria seguir à larva. A performer apresenta outras opções.

E essas opções situam-se na relação estabelecida com o espaço acústico de onde se escuta uma canção, de onde a voz é projectada como amplificação para o exterior, sabendo nós que aquele exterior é um interior opressivo. Mas é o espaço acústico interno que conduz o desenrolar de todas as acções.

Dessas acções destaco o coser dos papéis, uma imagem potente, que tem por função religar as memórias escritas no diário de bordo, na perspectiva de que elas possam conhecer novo destino. Cobre-se a performer de papel como se fosse um pano montado nos seus pedaços. O seu corpo parece silenciado num tempo de espera/talvez esperança, mas visivelmente amortalhado. A ideia de vida e morte deixa em aberto um futuro e esse futuro está na canção interpretada. Ao fazer confluir espaço acústico exterior com espaço acústico interior, verificamos que dessa tensão pode nascer qualquer coisa inesperada que o cosimento das folhas enuncia.

Quanto à segunda performance - El pasado adelante – também o título é providencial e é nele que uma primeira leitura óbvia do risco de morte é superada. Ir para lá do passado significa dar-se uma chance de recomeço.

E mais uma vez esse recomeço é sublinhado pela voz. Não há letra, não há melodia uniforme. Há sons brutalmente expressos de um corpo que caminha a quatro patas sobre uma ravina. Um corpo filmado sem rosto, como se a voz fosse essse rosto, esse testemunho identitário que agrega em si todos os passos dados, algo que não se apalpa, não se cheira, nem se mede à vista, algo que revê o próprio título da performance e recupera o corpo para o futuro.

A ideia de futuro plasma-se no corpo sentado sobre um rochedo, de costas para o observador, tornando-o cúmplice no mesmo olhar que se abre sobre oceano e céu com sol. A luz não é futura. É já presente.

Talvez um dia Maria-Josefina Fuentes possa connosco exercitar como a voz nos ama e nos acompanha até ao nosso fim. A idade transforma-a, mas não lhe retira os traços que nos individuam.

                           

Falámos finalmente de Lambarena que foi sendo escuta dos alunos ao longo de algumas semanas. Recordámos que a Händel se seguiu Bach como criador musical nas nossas propostas artísticas. Johann Sebastian Bach foi o compositor escolhido pelo médico e filantropo alemão Albert Schweitzer (1875-1965) para povoar de sonoridades estranhas o universo dos habitantes de Lambarena, a capital da província de Moyen-Ogooé no Gabão.

Ao contrário da nossa experiência canadiana, a audição do CD Lambarena não procurou repor nenhuma ordem anteriormente posta em causa.

A fundamentação do projecto africano nasce de um duplo amor de Schweitzer: Bach e os lambarenos aos quais dedicou toda uma vida, tratando-os de muitas doenças.

O nosso encontro com esta experiência resulta de homenagem artística musical ao médico alemão. Escutamos um passado feito presente no final da década de oitenta de uma perspectiva que valoriza o encontro de culturas -Europa e África – a contrapelo de uma História sangrenta e devastadora ao longo de séculos.

A ética da arte está aqui contida como excepção que justifica na beleza deste CD o que valoriza os seres humanos na sua gratidão e proximidade.

 

https://www.youtube.com/watch?v=EyNTCyPFFJA