Sumários

Teoria da Arte e Contra-Reforma catóilica: as teses do Cardeal Baronio.

28 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

As teses do Cardeal Cesare Baronio destacaram a importância da memória patrimonial e do restauro storico, o estudo filológico das fontes e o decorum na representação sacra. Segundo o Cardeal Baronio nos Annales Ecclesiastici, a cumplicidade territorial e a memória histórica fundiam-se na busca de uma identidade cristã comum. Seguidores de Trento em Portugal, Fr. Bartolomeu dos Mártires na Diocese de Braga, e os Arcebispo de Évora Cardeal D. Henrique e D. Teotónio de Bragança, seguiram tais princípios (cf. De Antiga et Veneranda Species Aedificatione Religiosa in Regni Portucalensis Pro Maxima Causa Christiana). A identidade lusa e católica reforça-se com o  tópico de um carácter  providencial, onde a crónica do passado integra milagres e novos santos – uma hagiologia autóctone e, mesmo, uma “encomenda heróica” (de tipo baroniano) onde a arquitectura religiosa integra discursos como apontamento documentais e memoriais.

O mss.  De Antiga et Veneranda Species Aedificatione Religiosa in Regni Portucalensis Pro Maxima Causa Christiana, que tem como marca copista o monograma M.L. (Biblioteca Vallicelliana, cf. Gabriella Casella), prova por via baroniana tal intenção apologética sobre a antiguidade cristã e a identidade de uma comitência heróica nacional.  Aí refere Portugal com a intenção subliminar que Baronio lhe atribui: a importância que teve na Reconquista da Península e defesa da causa cristã traduzida na aedificatione ecclesiae et fondatione monasterii per mano genus portucalensis. Gregório XIII, que Baronio elogia pela sua politica de restauro, envia a 17-XI-1572 o Breve Cum sicut ao Arcebispo de Braga e Vigários Gerais das igrejas de Braga e Lamego e ordena que as pessoas eclesiásticas, por ocasião das visitações, fizesse paga dos seus rendimentos na restauratio das antigas igrejas.

As Instructionum Fabricae (1572-1577) e os princípios baronianos seguindo os ditames conciliares no campo da arquitectura, da escultura e da pintura dão corpo ao conceito do bom artista cristão, o doctus architectus e o doctus pictor. Existe, segundo estes princípios, uma relação dialéctica que se fortalece entre encomendante e intenditore. Os princípios normativos de um projecto artístico são estruturados seguindo o programa funcional, a pormenorização técnica, a definição do modus aedificandi, a instrumentalização de novos modelos arquitectónicos seleccionados na antiga arquitectura  equacionando os parâmetros da “memória histórica” (planta basilical).

Estudam-se as gravuras da obra Via Vitae Aeternae de Jacques Sucquet, editada em Antuérpia em 1620 e que conheceu diversas edições. Defende-se aí a eloquência das imagens em relação à palavra, o seu grande sentido moral, e o seu papel em apoio à meditação. Segundo Sucquet, «meditar é considerar na mente, e pintar com o coração, o mistério das doutrinas da Sagrada Religião, por meio da representação das circunstâncias reais: pessoas, acções, palavras, lugares e tempo». Pelo poder das imagens, a mente ascende das «coisas terrenas» à esfera do divino. Por isso  o livro (e as gravuras que o ilustram) se desdobra  num discurso de justificação do fio de conduta moral e do rigorismo no exercício de representar visando o  combate ao «falso dogma» e à «formosura dissoluta».


A teoria da arte e o Concílio de Trento: Gilio da Fabriano, Cesare Bartonio, Carlos Borromeo. A teoria do 'decorum'.

26 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Análise histórico-artística, iconográfica e iconológica de ‘casos’artísticos e de debates estéticos da segunda metade do século XVI e do século XVII, a partir da formulação, recepção e adaptação dos cânones do Concílio de Trento no seu tónus catequizante, dando-se ênfase à ideologia subjacente, a temas proibidos, a exemplos de iconoclasma e de censura, ao combate ao protestantismo e  ao «falso dogma», à promoção de novos temários, ao novo estatuto social do «bom pintor cristão», etc. Situam-se as novas directrizes de representação (cardeal Baronio, cardeal Borromeo) e moralização (Gilio da Fabriano), o contrôle das 'imagens sagradas' e da produção artística geral, o conceito pedagógico de pittura senza tempo e também as medidas para modernizar a linguagem das artes, à luz dos princípios tridentinos. AD PERPETUAM REI MEMORIAM VS. AD MAIOREM GLORIA DEI:  o papel do Concílio de Trento na reorganização interna da Igreja, com acento nas funções da conservação e reconquista da própria auctoritas, a revalorização do cristianismo primitivo, a reafirmação litúrgica de cultos (mariano, dos santos, das relíquias e das imagens) e a definição de princípios normativos de controle da ecclesia. A sessão de 1562, o debate sobre a arquitectura e as normas de representação da arte sacra.

Estabeleceu o Concílio de Trento (na sua XXVª sessão, de 1562) que as imagens sacras servem para «anatemizar os principaes erros dos Hereges do nosso tempo». Assim, buscou combater a heresia iconoclasta do calvinismo e reafirmar o sentido tradicional do culto das imagens sacras como intermediárias de fé em afirmação catequética. Proibiu-se, por isso, «que se exponha imagem alguma de falso dogma», retomando directrizes do velho Concílio de Nicéia II. Defendeu-se que se deviam multiplicar nos sítios de culto imagens de Cristo, da Virgem e dos santos, não por se crer que haja nessas imagens alguma divindade ou se lhes prestar um culto só devido a Deus, mas como intermediárias de oração. Também definiu nas reproduções artísticas dos mistérios da fé o sentido de uma qualidade capaz de as adequar ao objectivo pedagógico. Contra as imagens de «falso dogma» e de «formosura dissoluta», afirmou-se  a intenção  de ensinar  que a divindade não é  percebível pelos sentidos nem através de  cores ou formas, mas que estas concorrem para  abrir os olhos da alma. A arte sacra na primeira linha de resposta ao ataques dos protestantes: Baronio, Paleotti, Borromeo. As Centurias de Magdeburgo (1559-74), compiladas por teóricos protestantes como Iliricus Flacius, atacavam a Igreja romana pelos alegados desvios ao ideal evangélico, seguindo um método de trabalho assente na compilação de textos e com estrutura muito inovadora (p. ex., organizado por séculos e não por pontificados). Quer o tempo quer a noção moderna da História tornam-se transparentes nestes questionamentos sobre os princípios da Igreja. Em resposta, abre-se uma verdadeira ‘cruzada apologética’ por parte dos teólogos e historiadores católicos para refutar as ideias protestantes. Ao jesuíta Roberto Belarmino coube uma defesa teológica das bases tridentinas em estudos sobre Controvérsias Religiosas (1586-93) onde    usa um documentado método   filológico e hermenêutico aos textos sagrados e patrísticos.

O padre Roberto Belarmino (Controversiae, Roma, 1586-93) e o padre oratoriano Cesare Baronio (Martyrologium Romanum, cum notationibus Caesaris Baronii, Roma, 1598). O papel do historiador católico como investigator veritatis e o papel da arquitectura e da arte como fonte afectiva, documental e pedagógica são destacados por Cesare Baronio (inspirador de Frei Bartolomeu dos Mártires e D. Teotónio de Bragança)  na sua defesa dos factos históricos através da compilação de uma História da Igreja  onde defende como fundamental metodologia a análise das fontes, organizadas filologicamente, nelas integrando as preexistências arquitectónicas (paleocristãs e românicas). As fontes passam, assim, a ser objecto de investigação filológica e desvelos patrimoniais. Figura fundamental na nova orientação da Igreja tridentina sobre as imagens sacras foi o Cardeal Gabriele Paleotti (1522-1597) e o seu livro De immaginibus sacris et profanis, de 1582, onde defende que a representação artística deve seguir um sentido de decorum, de rigorismo, de apego à ut ars rhetorica divina.  Quanto às obras de arquitectura, o princípio de RESTAURATIO EST RINNOVATA CREATIO indica a subordinação do espaço sagrado a uma orgânica litúrgica e a uma necessidade retórica de animos impellere (seduzir). Ou seja, o valor histórico-devocional passa a ser   o motor determinante da intervenção sobre a obra preexistência, que deve ser transformada por necessidades de adaptação (instaurare).

Figura chave da teoria e prática artísticas no quadro de Trento, o Cardeal Cesare Baronio dedicou de 1564 a 1567 várias leccios sobre a história da Igreja em San Girolamo della Carità.  Em 1567, dá início da compilação dos seus Annales, com recurso a informação provinda de toda a Europa e Médio Oriente, obra só editada em 1588-1609. Define uma sólida metodologia de investigação histórica, baseada no estudo crítico das fontes.  Entre 1596 e 1600, o Cardeal coordena a obra de restauro da igreja dos Santos Nereo e Acchileo, em respeito pelas préexistências e com acento no conceito do ristauro storico. As obras de ‘restauro storico’ do Cardeal D. Henrique e do Arcebispo D. Teotónio nas igrejas da Arquidiocese eborense (Santa Maria de Machede, S. Manços, Tourega) e velhos Santuários e lugares hierofânicos nos anos pré-Jubileu de 1600, reclamam estudo histórico-artístico pois atestam boa prática das teses baronianas. Casos como S. Manços (1596) atestam o pleno respeito da préexistência e até o papel arqueológico de verificação. Arquitectos como Mateus Neto e Pero Vaz Pereira têm importância que importa reconhecer. Na linha de André de Resende, a arte sacra tomou os santos paleocristãos locais (S. Manços, S. Gens, os mártires de Évora Vicente, Sabina e Cristeta, S. Cucufate, Sta Anonimata, S. Brissos, S. Torcato, os mártires da Concórdia, etc) como temas tridentinos que reclamam novas iconografias.


Benito Arias Montano, a Reforma católica e o conceito de ‘ideia’.

21 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A tese da bondade das artes e a teorização estética ao serviço dos valores do Humanismo cristão.

     O humanista, teólogo e latinista Benito Arias Montano (n. Fregenal de la Sierra, 1527 -- fal. Badajoz, 1598) é uma das mais notáveis personalidades da cultura europeia de Quinhentos. Contribuíu com as suas ideias e as suas escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte, defendendo as harmonia, o rigor doutrinário mas também a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica dotada de um largo sentido de trans-contextualidade. Explorou as relações meta-textuais e imagéticas através da emblemática e um sentido profundo da Ut pictura poesis. Publicou estudos de antiguidade latina, grega e hebraica, e temas eruditos como Rhetoricorum libri IV (1569), Discurso del valor y correspondencia de las monedas e Monumenta humanae salutis (1571). Deixou poesia em latim, Hymni et saecula (1593), em castelhano, inspirada em Fr. Luís de León (escrevendo, como este, uma versão do Cântico dos Cânticos).

O prestigiado erudito, formado nas Universidades de Sevilha e de Alcalá de Henares, membro da Ordem de São Tiago, estante em 1562 no Concílio de Trento, responsável pela Biblioteca do Real Mosteiro de San Lorenzo (Escorial), adepto da Família da Caridade, amigo pessoal de Filipe II e falecido em Sevilha em 1598, é conhecido dos estudiosos pela famosa Bíblia Poliglota, a sua opus magnum, trabalho enciclopédico de Filosofia e de Teologia. Como conselheiro de Filipe II, teve relações com Christophe Plantin, com quem supervisionou o projecto da Bíblia Políglota, discutindo-o na cúria papal e dando-a à estampa em oito volumes em 1572. Fruto deste convívio em Antuérpia, revendo provas, escolhendo estampas e redigindo prólogos, é a amizade com Gerhard Kremer Mercator, Abraham Ortelius, Gemma Frisius, Charles l'Escluse, Rembert Dodoens e Philippe Galle, entre outros.

Ainda não foram alvo de análise os contributos de Arias Montano como humanista do ‘largo tempo do Renascimento’ para a teoria das artes do tempo e o curso da arte portuguesa, que foi significativo, mas se mantém subestimado. Descendia de uma família de conversos; seu pai era notário da lnquisição. Cursou Filologia e Teologia nas Universidades de Sevilha e Alcalá de Henares. Destacou-se pelo talento em interpretar a Bíblia e dominar línguas orientais. Por volta de 1569, ingressa na Ordem de Santiago e segue para Trento com Pérez de Ayala. Ao regressar, escreve o Comentario a Doce Profetas. Filipe II, que o estimava, propôs-lhe realizar, com Christophe Plantin, a edição monumental da referida Bíblia Políglota.

As suas ideias sobre a concepção das artes, o valor pedagógico das imagens, o poder da ars memoriae e a carga emotiva do discurso plástico, mostram  que não esteve alheado do debate sobre as imagens sacras aberto no Concílio de Trento (onde participou) e sobre a acentuação de uma cultura de raíz neoplatónicaAmigo do editor Plantin, dos pintores-gravadores Cornelis Cort, Crispín van den Broeck e Philippe Galle, dos escultores dos Países Baixos Willem van der Broecke, chamado Palludanos, e Jacques Jonghelinck, Arias Montano nunca deixou de ser um instrumento inspirador nas criações desses artistas, sendo da sua responsabilidade o modelo composicional usado por estes estampistas flamengos. Conhece-se a influência dos livros de Arias em pinturas portuguesas, o que atesta que a sua obra circulava e era estimada.

O seu interesse pela estampa de livro, cuja criação acompanhou de perto, e o pendor por um pensamento de tolerância, mostram-no sempre muito atento ao poder das gravuras de ilustração nas suas relações com a palavra, a narração, o exemplo, a sensibilização dos olhares e o apego aos sentidos mor. O seu conhecimento como crítico de arte foi usado na definição de programas de estampas (na Bíblia poliglota, etc) e empreendimentos como o polémico monumento ao Duque de Alba ou o projecto do Patio de los Reyes de El Escurial. Como inspirador de gravuras junto aos melhores artistas do tempo, viu-as sempre com uma estrutura tripartida de lema, ícone e epigrama, em que palavra / narração / imagem se articulam num mesmo corpo de coerências. Arias contava entre os seus amigos íntimos com Pedro Villegas Marmolejo, pintor que mereceu receber uma lápide com homenagem imortalizada por uma poesia latina do próprio Arias.


BIBLIOGRAFIA:

Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999.

Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995.

Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998.

Aires Augusto NASCIMENTO, «Erudição e livros em Portugal ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança», Actas do Congresso Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, coord. José María Maestre Maestre, Eustaquio Sánchez Salor, Manuel Antonio Diaz Gito, Luis Charlo Brea, Pedro Juan Galan Sánchez, vol. II, 2006, pp. 723-750. 

Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

Idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Lisboa, 2008.


Felicitá e Utopia na Cultura Artística Portuguesa do Século XVI: algumas considerações teórico-metodológicas a propósito.  

19 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumira que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza. Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã. 

Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.•Embora não tenha existido no Portugal quinhentista uma literatura artística abundante, a exemplo do que sucede em Itália e na vizinha Castela, os temas ligados às letras e artes tiveram alguma expressão sob influência do Humanismo cristão e o signo do neo-platonismo (quadro que seria alterado, a breve trecho, com a Contra-Reforma). A cultura do tempo de Luís de Camões, disse Sylvie Deswarte, situa-se num «campo de criação dotado de uma forma mentis, com uma imagística e uma inspiração filosófica idênticas»; tal clima, se não gerou um tratadismo artístico como género autónomo, veio abrir mesmo assim debates em torno da mudanças de paradigmas de vida em nome da efervescência criadora que exprimiu discursos de actualização face à Bella Maniera a seguir à viagem a Roma de Francisco de Holanda, António Campelo, Gaspar Dias, Venegas, e outros artistas. O ambiente de cortes literárias em que as humaniores litterae eram matéria de estudo, de debate arqueológico, abertas ao bucolismo do locus amoenus, à ressonância das antigualhas, a reflexões em torno de Vitrúvio e a ruína, às obras de Alberti e Serlio, o Mundo Antigo, as novidades cosmológicas, o estudo da matemática, temas agrícolas, citações de Hermes Trimegistro e outros autores clássicos, tudo gerou um ambiente propício à recepção da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa, e à produção de alguma expressão literária. Existiu um re-conhecimento da ideia motriz da arte, da consciência liberal dos praticantes e do sentido de felicidade que dela advinha (com Benito Arias Montano no seu presumível legado lusitano). Mesmo em clima repressivo de Contra-Maniera (que fechava o campo da irreverência dos artistas) a tradição do legado intelectual permanecia em aberto, e é de crer que dentro da Irmandade de São Lucas, instalada no Mosteiro da Anunciada, se seguissem linhas de debate teórico sobre o primado do debuxo e a ideia motriz da criação das artes, à luz do que ensinavam os tratados disponíveis. A tratadística de arte em Portugal nos séculos XVI -XVII não abunda de textos que se possam dizer significativos. Salvo os escritos de Francisco de Holanda e Félix da Costa Meesen, não dispomos de uma produção original de testemunhos sobre a essência da arte, para além do que marginalmente integra os receituários e manuais de trabalho de pintores, iluminadores e desenhadores. Mas é verdade que circulavam exs da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa sobre Arquitectura e Pintura .À dimensão do país, pouco de original se escreveu além de traduções e reapropriações de ideias. Entre 1548, data em que o pintor e  arquitecto Francisco de Holanda escreve  o famoso tratado Da Pintura Antigua (onde põe tónica do seu discurso na scintilla divina e no primado  do  disegno) e 1696, ano em que o pintor, escritor e poeta sebastianista Félix da Costa redige a Antiguidade da Arte da Pintura (elogio da liberalidade e memória sobre a nossa produção), mal se pressente na produção literária o ardor da teorização que permita falar de um corpo autonomizado de textos comparável a outras situações da Europa coeva. Desenvolveu-se, sim, a Caligrafia. No Renascimento, os humanistas, de Erasmo a Juan Luís Vives e João de Barros, preocuparam-se pela educação dos filhos-família a quem se destinavam lugares no aparelho de Estado, razão acrescida para dar bases de caligrafia harmoniosa segundo o humanismo cristão e a doutrina neoplatónica. Em clima de desenvolvimento das artes e letras no Portugal do séc. XVI, sob signo do neoplatonismo e influência do Humanismo (quadro alterado com a Contra-Reforma), a cultura do tempo de Camões, disse Sylvie Deswarte, situa-se num «campo de criação dotado de uma forma mentis, com uma imagística e uma inspiração filosófica idênticas».

Tal clima não gerou um tratadismo artístico como género autónomo, mas abriu debates a mudanças de paradigma e uma efervescência criadora que exprimiu discursos de actualização face à Bella Maniera a seguir à viagem a Roma de Francisco de Holanda, António Campelo, Gaspar Dias, Venegas, etc.O ambiente de cortes literárias em que as humaniores litterae eram matéria de estudo e se abria ao debate arqueológico, ao bucolismo do locus amoenus, à ressonância das antigualhas, a reflexões em torno de Vitrúvio e as ruínas,  a obra de Alberti e Serlio, os templos do Mundo Antigo, as novidades cosmológicas, estudos da matemática, temas agrícolas, citações de Hermes Trimegistro e demais autores clássicos, tudo gerou um ambiente propício à recepção da tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa. Existiu sim um re-conhecimento da ideia motriz da arte, da consciência liberal dos praticantes. e mesmo em clima de Contra-Maniera (que fechava a irreverência dos artistas) a tradição do legado intelectual permanecia em aberto, e é de crer que dentro da Irmandade de São Lucas no Mosteiro da Anunciada, se seguissem linhas de debate teórico sobre o primado do debuxo e a ideia motriz da criação, à luz do que ensinavam os tratados disponíveis. 


Teoria da Arquitectura no dealbar do renascimento e Utopia edificatória.

14 Abril 2016, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O utopismo de Filarete não se limita a Sforzinda, a cidade ideal: há toda uma série de propostas de edificação do território, de que constam Portos de Mar, Aquedutos, Pontes, Igrejas, Templos, Castelos, Torres, Palácios, Monumentos… Enfim, toda uma panóplia de construções, em que parece ressoar a Utopia Edificatória de Alberti, e um análogo desejo de construir o Mundo. A proposta urbanística de Leonardo da Vinci consiste num esquema de cidade de retícula quadrada, atravessada por canais derivados de um rio próximo; os canais e o rio tinham uma importância fundamental na estruturação da cidade do ponto de vista da higiene e da salubridade, e para a amenização do clima. As  ruas  seriam  construídas  em  níveis  diferentes:  as  do  nível  inferior  eram destinadas  à  circulação  de  carros  e  outros transportes para as necessidades e 
o  abastecimento  do  povo…  Pelas   ruas  altas  não  devem  andar  carros  nem outras coisas similares, sim que são só para uso dos gentis-homens.  Deste modo, à diferença em níveis planimétricos das ruas corresponderia uma diferenciação  de  uso  pelos  níveis  sociais  da  população.  Pelas  passagens subterrâneas  devem-se  vazar  as  retretes,  estábulos  e  similares  coisas  fétidas.Estas  iriam  desaguar  no  rio, através  de  grandes  esgotos.  As  casas  eram  elevadas sobre arcadas e formariam quarteirões na sua disposição, sendo outras, tipo casa-páteo,  voltadas  para  o  seu  interior,  mas  também  formando quarteirões. A cidade esboçada e descrita por Leonardo da Vinci parece, por um lado,  prefigurar as grandes cidades contemporâneas, com níveis diferenciados de tráfego, que começaram por ser teorizadas, no princípio do Séc. XX,  por Eugène Hénard, com o seu conceito de rues pour étages, e que o crescimento do tráfego automóvel e dos meios de transporte colectivo  pôs  em  prática,  através  de  túneis,  viadutos sobre-elevados,  e  galerias. Por  outro  lado,  se  se  atender   à  prescrição  da   total  separação  de  classes  sociais pelos diferentes níveis de arruamentos, parecem evidenciar-se as cidades  descritas  nas  distopias  da Modernidade,  de  Aldous  Huxley,  Eugeni Zamiatine, e George Orwell, e que são o correlato urbanístico das  sociedades  absolutamente  estratificadas  descritas  nessas  distopias.E, na realidade, o progetto di città e per una politica di urbanizzazione, parecem relevar mais da distopia do que propriamente da utopia. Com  efeito,  esta  proposta  de  cidade,  tão  estratificada   como  jamais  as  houve (embora  pareçam  estar  em marcha  nos  tempos  que  correm),  e   tudo  isto  conexionado  com  o  desejo  de  autoridade  para  fazer  a  terra  obedecer; ou edificar e acrescentar a cidade para  tornar  eterna  a  fama  do  principe, 
um  condottieri,  tende  a  caracterizar-se  como  expressando  o  desejo  de edificação  de  uma  cidade-sociedade  radicalmente  estratificada,  onde  se evitaria qualquer tipo de contacto entre os gentis-homens e a poveraglia,   e vocacionada  para  o  culto  da  autoridade, expansionismo, e  obediência. É  um  tipo  de  ideal  aristocrático,  análogo  ao  expresso  no  Trattato  de Filarete, como se viu anteriormente, e que faz duvidar da caracterização  idealista e positivista, à maneira de Hegel, ou de Michelet, da Cultura da Idade  Moderna,  com  o  suposto  ideal  de  Homem  no  Centro  do  Mundo.

O utopismo atinge um ponto alto na Hypnerotomachia Poliphili, 1499, obra de autoria incerta  (Francesco  Colonna ?),  que  narra um  sonho  e,  dentro  desse  sonho,  o  passeio de  um  par  amoroso  por  uma  selva densa  e obscura  (clara  alusão  ao  Inferno  de Dante), onde,  quase  como  clareiras  no  meio  dessa emaranhada  selva,  vão  surgindo  magníficos  vestígios  de  um  passado  glorioso  –  a Antiguidade Clássica ! – materializados em  monumentos, edifícios, ruínas e estátuas, além de amenos e agradabilíssimos jardins.Para os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna esta ilha é uma mina, pois tem analogias com as ilhas ou anéis concêntricos descritos por  Dante em A Divina Comédia, e com a ilha de Atlântida descrita  por  Platão, e é claramente prefiguradora das ilhas de Utopia, de Thomas More, da New Atlantis, de Francis Bacon, e ainda da Civitas Solis, de Tommaso Campanella, além do  que,  pelo  seu  traçado,  se  deduz  derivar  da  descrita  cidade  vitruviana  e  da  filareteana  Sforzinda,  com  os  seus sistemas  rádio-concêntricos.  Mas  o  mais notável talvez é o sentido antecipatório, quer em  relação às utopias urbanístico-arquitectónicas e utopias políticas, quer em relação  ao  culto  dos  jardins  arquitectados ou pictóricos (picturesque), que  se desenvolveria a partir dos Séculos  XVII e XVIII, e que tantos aspectos utópicos viriam a revelar.

No total dos casos considerados os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura do Século XV salientam-se, revelando todo um forte desejo (libido aedificandi, como o designa Alberti) de transformação do Mundo, da Realidade, e da Vida, através de uma actividade  edificatória (Industriam, Attività, a designaria Alberti), que toma por modelos a Arquitectura e Urbanística da Antiguidade, e que visaria restaurar o esplendor áureo (o aureo tutto, de Petrarca) dos Tempos  Antigos, quando o Império Romano cercava todo o Mediterrâneo e se estendia pela  maior  parte  da  Europa  Ocidental,  Norte  de  África,  e  o  Próximo  Oriente Esse desejo, nas obras e casos considerados, exprime toda uma pulsão utópica (propensão utópica, como já foi designada), assinalada com maior evidência de significado de forma e conteúdo nos aspectos seguintes:

Utopia Edificatória, de Alberti: transformação do Mundo através da res aedificatoria  (ou  Arquitectura),  visando  tornar  a  vida  feliz,  mas  não  fornecendo modelos  concretos,  mimetizáveis,  apenas  um  conjunto  de  regras  operativas. Cidades  Ideais, de  Filarete  e  de  Da  Vinci:  projectos  de edificação de cidades  ideais,  inspiradas  em  Vitrúvio,  marcadas  pela  regularidade  do  traçado  geométrico – rádio-concêntrico (Filarete) ou ortogonal (Da Vinci) –, conexionadas com projectos de utopias de Estado, de sociedades aristocráticas. 

Utopia Insular, da Hypnerotomachia Poliphili: representação de um ambiente paradisíaco (locus amoenus) e onírico, marcado pela regularidade de um traçado geométrico, inspirado em Vitrúvio ou Filarete, em que se operaria a união de Cultura e Natureza (com subordinação da Natureza pela Cultura), sublimada pela  existência  de  Monumentos  Arquitectónicos  e  Artísticos  da  Antiguidade,  dispersos em todo o exótico ambiente por onde os amantes fazem a sua viajem. Ao contrário de Alberti, os outros casos exprimem-se em modelos desenhados.

Veja-se ainda o que se passa com as Imagens Pictóricas de Cidade Ideal.Existe um tipo de pinturas de ambientes urbanos imaginários, que se consideram  como  constituindo  autênticas  imagens  de cidades ideais.A autoria das pinturas não está exactamente determinada, hesitando-se entre Luciano Laurana, Piero della Francesca, Francesco di Giorgio Martini. Em  desenho, sob  a  forma  de  gravura, existe  uma  imagem do mesmo género que está identificada como sendo de Donato Bramante. São todas, sensivelmente, da mesma época: segunda metade do Século XV, princípios do Século XVI. – Vai-se mostrá-las e intentar uma interpretação  visando  evidenciar  as  suas  características  como  imagens  de cidades ideais, análogas às da Teoria da Arquitectura desse tempo.


BIBL.

Bruschi A., e.a. (a cura di), Scritti Rinascimentali di Architettura, Milano, 1978, Ed. il Polifilo.

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