Sumários
Ainda a Teoria da Arquitectura renascentista e a Utopia Edificatória.
12 Abril 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
O utopismo de Filarete não se limita a Sforzinda, a cidade ideal: há toda
uma série de propostas de edificação do
território, de que constam Portos de Mar, Aquedutos, Pontes, Igrejas,
Templos, Castelos, Torres, Palácios, Monumentos… Enfim, toda uma panóplia de
construções, em que parece ressoar a Utopia
Edificatória
de
Alberti, e um análogo desejo
de
construir
o
Mundo. A proposta urbanística de Leonardo da Vinci consiste num esquema
de
cidade
de retícula
quadrada, atravessada por canais derivados de um rio próximo; os canais e o rio tinham uma importância fundamental na estruturação
da
cidade do ponto de vista da higiene
e
da
salubridade,
e para a amenização do clima. As ruas seriam construídas em níveis diferentes: as do nível inferior eram destinadas à circulação
de carros e outros transportes para as
necessidades e
o abastecimento do povo… Pelas ruas altas não devem andar carros nem outras coisas similares, sim que são só para uso dos gentis-homens. Deste modo, à diferença em níveis
planimétricos das ruas corresponderia uma diferenciação de uso pelos níveis sociais da população. Pelas
passagens subterrâneas devem-se vazar as retretes, estábulos e similares coisas fétidas.Estas iriam desaguar no rio, através de grandes esgotos. As casas eram elevadas sobre arcadas e formariam quarteirões na sua disposição, sendo outras, tipo casa-páteo, voltadas para o seu interior, mas também formando quarteirões. A cidade esboçada e descrita por Leonardo da Vinci parece, por um lado, prefigurar as grandes cidades contemporâneas, com níveis diferenciados de tráfego, que começaram por ser
teorizadas, no princípio do Séc. XX, por Eugène
Hénard, com o seu conceito de rues pour étages, e que o crescimento do tráfego automóvel e dos meios de transporte
colectivo pôs em prática, através de túneis, viadutos sobre-elevados, e galerias. Por outro lado, se se atender à prescrição da total separação de classes sociais pelos diferentes níveis de arruamentos, parecem evidenciar-se as cidades descritas nas distopias
da Modernidade, de Aldous
Huxley, Eugeni
Zamiatine, e George Orwell, e que são o correlato urbanístico
das sociedades absolutamente estratificadas descritas nessas distopias.E,
na realidade, o progetto di città
e per una politica di urbanizzazione, parecem relevar mais da distopia do que propriamente da utopia. Com efeito, esta proposta de cidade, tão estratificada como jamais as houve (embora pareçam estar em marcha nos tempos que correm), e tudo isto conexionado com o desejo de autoridade para fazer a terra
obedecer; ou edificar e acrescentar a cidade para tornar eterna a fama do principe,
um condottieri, tende a caracterizar-se como expressando o desejo de edificação de uma cidade-sociedade radicalmente estratificada, onde se evitaria qualquer tipo de contacto entre os gentis-homens e a poveraglia, e vocacionada para o culto da autoridade, expansionismo, e obediência. É um tipo de ideal
aristocrático, análogo ao expresso no Trattato de Filarete, como se viu anteriormente, e que faz duvidar da caracterização idealista e positivista, à maneira de Hegel, ou de Michelet, da Cultura da Idade Moderna, com o suposto ideal de Homem no Centro do Mundo.
O utopismo atinge um ponto alto na Hypnerotomachia Poliphili, 1499, obra de autoria incerta (Francesco Colonna ?), que narra um sonho e, dentro desse sonho, o passeio de um par amoroso por uma selva densa e obscura (clara alusão ao Inferno de Dante), onde, quase como clareiras no meio dessa emaranhada selva, vão surgindo magníficos vestígios de um passado glorioso – a Antiguidade Clássica ! – materializados em monumentos, edifícios, ruínas e estátuas, além de amenos e agradabilíssimos jardins.Para os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura da Idade Moderna esta ilha é uma mina, pois tem analogias com as ilhas ou anéis concêntricos descritos por Dante em A Divina Comédia, e com a ilha de Atlântida descrita por Platão, e é claramente prefiguradora das ilhas de Utopia, de Thomas More, da New Atlantis, de Francis Bacon, e ainda da Civitas Solis, de Tommaso Campanella, além do que, pelo seu traçado, se deduz derivar da descrita cidade vitruviana e da filareteana Sforzinda, com os seus sistemas rádio-concêntricos. Mas o mais notável talvez é o sentido antecipatório, quer em relação às utopias urbanístico-arquitectónicas e utopias políticas, quer em relação ao culto dos jardins arquitectados ou pictóricos (picturesque), que se desenvolveria a partir dos Séculos XVII e XVIII, e que tantos aspectos utópicos viriam a revelar.
No total dos casos considerados os aspectos utópicos da Teoria da Arquitectura do Século XV salientam-se, revelando todo um forte desejo (libido aedificandi, como o designa Alberti) de transformação do Mundo, da Realidade, e da Vida, através de uma actividade edificatória (Industriam, Attività, a designaria Alberti), que toma por modelos a Arquitectura e Urbanística da Antiguidade, e que visaria restaurar o esplendor áureo (o aureo tutto, de Petrarca) dos Tempos Antigos, quando o Império Romano cercava todo o Mediterrâneo e se estendia pela maior parte da Europa Ocidental, Norte de África, e o Próximo Oriente Esse desejo, nas obras e casos considerados, exprime toda uma pulsão utópica (propensão utópica, como já foi designada), assinalada com maior evidência de significado de forma e conteúdo nos aspectos seguintes:
Utopia Edificatória, de Alberti: transformação do Mundo através da res aedificatoria (ou Arquitectura), visando tornar a vida feliz, mas não fornecendo modelos concretos, mimetizáveis, apenas um conjunto de regras operativas. Cidades Ideais, de Filarete e de Da Vinci: projectos de edificação de cidades ideais, inspiradas em Vitrúvio, marcadas pela regularidade do traçado geométrico – rádio-concêntrico (Filarete) ou ortogonal (Da Vinci) –, conexionadas com projectos de utopias de Estado, de sociedades aristocráticas.
Utopia Insular, da Hypnerotomachia Poliphili: representação de um ambiente paradisíaco (locus amoenus) e onírico, marcado pela regularidade de um traçado geométrico, inspirado em Vitrúvio ou Filarete, em que se operaria a união de Cultura e Natureza (com subordinação da Natureza pela Cultura), sublimada pela existência de Monumentos Arquitectónicos e Artísticos da Antiguidade, dispersos em todo o exótico ambiente por onde os amantes fazem a sua viajem. Ao contrário de Alberti, os outros casos exprimem-se em modelos desenhados.
Veja-se ainda o que se passa com as Imagens Pictóricas de Cidade Ideal.Existe um tipo de pinturas de ambientes urbanos imaginários, que se consideram como constituindo autênticas imagens de cidades ideais. A autoria das pinturas não está exactamente determinada, hesitando-se entre Luciano Laurana, Piero della Francesca, Francesco di Giorgio Martini. Em desenho, sob a forma de gravura, existe uma imagem do mesmo género que está identificada como sendo de Donato Bramante. São todas, sensivelmente, da mesma época: segunda metade do Século XV, princípios do Século XVI. – Vai-se mostrá-las e intentar uma interpretação visando evidenciar as suas características como imagens de cidades ideais, análogas às da Teoria da Arquitectura desse tempo.
Bruschi A., e.a. (a cura di), Scritti Rinascimentali di Architettura, Milano, 1978, Ed. il Polifilo.
Hénard, E., Études
sur
les
transformations
de Paris,
1903-1909, in
Sica, P., Antologia di urbanistica.
Dal Settecento a oggi,
Roma-Bari, 1980, Laterza.
A Utopia Arquitectónica e os seus pressupostos teóricos no dealbar do Renascimento.
7 Abril 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A «Utopia Edificatória» de L. B. Alberti. O caso da Sforzinda: A Cidade Ideal de Filarete. A Cidade Ideal de Leonardo da Vinci. A obra «Hypnerotomachia Poliphili» de Francesco Colonna: A Utopia Insular de Citerea. As Imagens Pictóricas de Cidade Ideal do Séc. XV. A existência de aspectos utópicos na Teoria da Arquitectura da Idade Moderna, que em meados do Séc. XV se começou a gizar com L. B. Alberti (1404-72), Filarete (c. 1400-c. 1465), Leonardo da Vinci (1452-1519), e na «Hypnerotomachia Poliphili» (ed. 1499) não é novidade, tendo-a já abordado. A utopia anuncia-se logo no Prologo do De re aedificatoria ao ser outorgada à Arquitectura, assim como às «molte e svariate arti… dai nostri antenati indagate», a missão de render felice la vita, além de que a Arquitectura, ou melhor, a «res aedificatoria», seria quanto mai vantaggiosa alla comunità come al privato, particolarmente gradita all’uomo in genere e certamente tra le prime» [ou seja, entre as principais artes] «per importanza»...Em Vitrúvio a missão da Arquitectura era contribuir para propiciar uma vida boa, com saúde e em segurança, como se explicita na história do recinto fortificado transferido por M. Hostílio de um lugar insalubre para outro saudável. A salubridade, nomeadamente a defesa em relação aos ventos e climas agressivos (na tradição hipocrática, o ar era visto como causa de todas as doenças), a par da segurança, que levava a recintar as cidades com muralhas, são dos principais e primeiros aspectos tratados no De architectura, ocupando os caps. 4 a 6, do Livro I.
Assim, quando Alberti proclama, nos alvores da Idade Moderna, como objectivo da Arquitectura, o tornar a vida feliz, opera-se uma deveras significativa mudança: o que até aí era tido como visando singelamente melhorar as condições de vida, propiciando saúde e segurança, e fazendo-o com intencionalidade estética (a venustas, de Vitrúvio), passa a ter uma finalidade eudemonística: aos homens da Idade Moderna já não bastava a vida boa, saudável e em segurança, queriam uma vida feliz! E a Arquitectura, particularmente agradável ao homem em geral e das mais importantes das artes, deveria ter papel de protagonista nesse projecto eudemonístico, que já se anunciava no citado poema de Petrarca, onde parece anunciar-se, também, o expansionismo das almas belas e da virtude amigas, que tanto veio a caracterizar o Ocidente, e em que nós, portugueses, embarcaríamos a partir de 1415 com a expedição a Ceuta. Mas aquilo a que se designa de Utopia Edificatória é a missão e o largo âmbito da Arquitectura, ou melhor, da res aedificatoria, tal como se define com Alberti, logo no Prologo do De re aedificatoria. Assim, à res aedificatoria é atribuído um tão vasto domínio, que somente os desertos lhe ficariam de fora, como séculos mais tarde o afirmará William Morris (1834-96), visando alertar para a delapidação da natureza pelos excessos da actividade edificatória do seu tempo. Neste Novo Mundo, operis futuri, no latim, expressa-se claramente o utopismo de Alberti, e o papel reservado aos Arquitectos e à Arquitectura. Mas esta postura parece também prefigurar a 11.ª tese sobre Feuerbach, de Karl Marx, que dá primazia à transformação do mundo em detrimento da sua interpretação.Os filósofos limitavam-se a interpretar o mundo, os arquitectos visavam a sua transformação e a da realidade. – Daí talvez, um filósofo, Nietzsche, os ter considerado os grandes serventuários do Poder. – Sim, porque Alberti é um espírito suficientemente nlúcido, consequentemente crítico, e demasiado complexo, para ter da Arquitectura uma visão simplista, apologética, ou corporativista. De resto, ao tempo, as corporações eram outras, contra as quais o conhecimento teórico de Alberti investe. A sua visão da Arquitectura, da res aedificatoria, está inserida numa estratégia de “cultura de dominação”, que tendia a colocar o homem e a sua vontade de poder no centro do mundo – a Weltanschauung da Idade Moderna mais determinante –, e de que a passagem em que afirma servir essa actividade para estender e consolidar o poder [da pátria e da comunidade] é bem significativa. E a isto não podia deixar de estar associada uma certa má consciência, de que a visão irónica e cínica, ora utópica ora distópica, que se expressa em muitas das suas obras literárias, serve como testemunho eloquente.
O Trattato di architettura, segundo texto teórico sobre Arquitectura produzido em Itália, e primeiro redigido em volgare (italiano) e contendo ilustrações, foi elaborado entre 1461-64, por Antonio Averlino detto il Filarete (φιλαρετής = amante da virtude), na corte de Francesco Sforza, Duca di Milano, ao tempo em que trabalhava nos projectos e obras do Ospedale Maggiore di Milano. No Trattato é proposta uma Arquitectura e um sistema de proporções com base nas medidas e proporções do homem, pois Adão fora o primeiro arquitecto, e a Arquitectura e as edificações, uma consequência do pecado original, porque o homem, exposto às agruras do tempo, tinha necessidade de abrigo. Apresenta uma proposta desenhada e exaustivamente descrita de cidade ideal, de natureza utópica, Sforzinda, de forma circular e traçado rádio-concêntrico de grande regularidade, inspirada na descrição da cidade eólica de Vitrúvio, de que, historicamente, constitui a primeira interpretação com expressão desenhada. Trata-se de uma utopia urbanística, correlacionada com uma utopia política – a utopia de uma cidade-estado, organizada segundo um ideal aristocrata, onde as casas da poveraglia são escassamente contempladas, reduzidas aos aspectos funcionais, perchè non v’entra troppa spesa, neanche magistero –, e com um carácter de obsessiva organização e previsão, como se veio a revelar próprio das utopias.BIBLIOGRAFIA:
Vitrúvio, Tratado de Arquitectura (De architectura ou De architectura libri decem, escrito entre 35-25 a.C., impresso entre 1486-1490, ed. G. Sulpicio), I, 4, 12, trad. do latim, introd. e notas por M. J. Maciel, ilust. Th. N. Howe, Lisboa, 2006, IST Press.Alberti, L. B., L’architettura (De re aedificatoria, escrito entre 1443-52, impresso em 1485), ed. crítica, trad. di G. Orlandi, introd. e note di P. Portoghesi, Milano, 1989, Ed. Il Polifilo.J. M. Simões Ferreira, Visões
de
Utopia:
As
Teorias
da
Arquitectura
e
as
Utopias
Políticas nos alvores da Idade Moderna, Dissertação de Mestrado em
Filosofia, FCSH / UNL, 2001
A lição iconológica: dois casos de estudo a partir das obras de Panofsky e Wittkower.
5 Abril 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Estuda-se, como exemplo do método iconológico panofskiano, o conjunto de frescos quinhentistas galegos das igrejas de Santa Baia de Banga e de Santa María de Mugares, ambos concebidos à luz dos princípios neoplatónicos de Marsilio Ficino, através de gravuras da 'Emblemata Liber' de Andrea Alciato (edição de 1548) e de outras fontes, por provável encomenda do erudito cónego italianizante Bartolomé de Bahamonte. A igreja de Santa Baia de Banga, no arciprestado de Carballiño, diocese de Ourense, guarda no seu interior um complexo programa de pintura, datado de 1555, com uma ilustrada composição de raíz neo-platónica em torno de três temas: os Dons da Divindade, a Influência Cosmológica e Astral, e a representação dos Videntes (Reis e Profetas da Antiguidade).Tudo denuncia um conhecimento entranhado das teses neoplatónicas e da sua representação imagética, com um forte sentido moral. Outro programa elaboradíssimo de pintura mural quinhentista na Galiza é o que decora a abóbada da capela-mor de Santa Maria de Mugares, que foi encomendada provavelmente por um culto cónego, Bartolomé de Bahamonte, c. 1575-80. Aqui se desenvolve e caracteriza a NATUREZA DA ALMA e do HOMEM, com a devida legitimação por parte de uma galeria de VIDENTES e de PROFETAS. A corrente filosófica do Neoplatonismo, expressa nas obras da Academia florentina de Careggi e, sobretudo, nos textos de Marsilio Ficino «Theologia Platonica» (1474), «Commentarium in Convivium Platonis» (1475) e «De Vita» (1489), expressa uma concepção do Universo, de Homem, de Divindade, de Amor, que assenta no primado da Beleza e no estudo da Astrologia e suas relações com Filosofia e Religião. Para Ficino, o Mundo reparte-se em QUATRO HIERARQUIAS, que em grau crescente oferecem o caminho da perfeição: 1) a MATÉRIA, meramente com forma, movimento e existência, contribuindo para definir a região da Natureza; 2) a NATUREZA ou MUNDO NATURAL, estádio sublunar ou terrestre, onde tudo é corruptível e efémero, porque é composto de matéria e forma, embora o mundo celeste possa influír no seu ritmo; 3) a ALMA CÓSMICA, que converte as ideias, inteligências e comportamentos estéticos em causas dinâmicas, estimulando a natureza a produzir obras visíveis; 4) e a MENTE CÓSMICA, região inteligível e supracelestial, a região perfeita das ideias, mundo da estabilidade e da incorruptibilidade, em que as inteligências (anjos) são protótipos de tudo o que existe nas zonas inferiores. A Mente Cósmica é representada pela forma circular, a mais perfeita. Para o Neoplatonsmo, o homem é uma alma racional que participa da mente divina e tem existência corpórea, embora com um ‘spiritus humanus’ incorruptível. MENS, ANIMA, NATURA e CORPUS são os níveis hierárquicos do género humano. A IMORTALIDADE, conceito desenvolvido a partir de Platão, é a meta da espécie humana, assim como o Amor Platónico e a busca da Beleza. Como exemplo do método iconológico de Rudold Wittkower, estuda-se a estampa de Johannes van der Straeten, ou Giovanni Stradano (1523-1605), gravura do livro de Antonio Pigafetta dedicado à viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães, com representação da ave ROCK, ou SIGHURT. O ROKH, RUKH, ROC, SIMURTH, é uma ave de caça mitológica, capaz de atacar elefantes. Conta o mito – dos mares da China à Índia e a Madagáscar -- que é tão grande que escurece a terra e encobre o sol. O historiador de arte Rudolph Wittkower (1901-1971) diz que o Rokh nasceu da batalha escatológica entre o pássaro solar indiano Garuda e a serpente Nãga. Julga-se que o mito de Rokh pode ter surgido tal como o mito dos dragões, através de má interpretação de fósseis. Outra hipótese das origens do Rokh liga-se a eclipses. Outra, ainda, liga-o à ave-elefante (agora extinta) de Madagáscar, que media 2,7 metros e pode ter originado o mito.O Roc pode ser encontrado na literatura do Médio Oriente do século VIII mas só passou a ser conhecido quando o explorador Marco Pólo (1254-1324) relatou em livro de viagens os aparecimentos de uma ave gigante. O Rokh também é conhecido entre contos de marinheiros, como os de Sinbad, que dizem ter visto uma montanha a pairar sobre o mar. O grupo da fabulosa ave Rokh, transportando um elefante, é a miraculosa «Roc» que o escritor Antonio Pigafetta descreve no seu relato da viagem de Fernão de Magalhães, como observado nos mares da China. O mito retoma as arcanas origens orientais segundo fontes cosmológicas que remetem para o combate indiano do deus solar Garuda e a cobra Naga, e para outros mitos das culturas indiana (tanto no Mahabharata, como no Ramayana) e perso-árabe que a transmudam em elefante.Segundo Wittkower, o ROC tem origem na luta entre a ave solar indiana GARUDA e a serpente NAGA (A.de Gubernatis diz que a palavra tanto significa cobra como elefante). O mito de Garuda a levar um elefante que lutava com uma tartaruga, aparece na famosa epopeia em sânscrito do MAHÁBHARATA (I.1353) e no RAMAYANA (III.39). No Arabic geographies and natural history e nos relatos de marinheiros é muito referida. IBN BATTUTA fala de uma montanha suspensa sobre os mares da China como sendo o ROC. Segundo Wittkower, nesta sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.
Erwin Panofsky e o método iconológico.
31 Março 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
A ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte. O seu bom uso aponta sentidos, descodifica programas, entretece mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou com ilustrações em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer, Rudolf Wittkower e Erwin Panofsky, entre outros...
Erwin Panofsky (Hannover, 1892-Princeton, EUA, 1968) foi discípulo de Warburg. Graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), mas também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968). Para Panofsky a História da Arte é uma ciência em que se definem três momentos inseparáveis do ato interpretivo das obras em sua globalidade: a leitura no sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo essencial como expressão de valores. A arte medieval e do Renascimento (que estudou profundamente), estão definidos no livro Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental. Foi amigo de Wolfgang Pauli, um dos criadores da física quântica.
Panofsky fez a distinção entre ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA em Estudos em Iconologia (1939) dando exemplos sobre as diferenças. Definiu iconografia como o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, em Estudos em Iconologia, Panofsky detalha as suas ideias sobre os três níveis da compreensão da história da arte: Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Se nos ativermos ao 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural. Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a Última Ceia. Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola com um leão poderia ser interpretado como o retrato de São Jerónimo. Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico. Trabalhando com estas camadas, o historiador de arte coloca-se questões como "por que é que São Jerónimo foi um santo importante para o patrono desta obra?" Essencialmente, esta última camada é uma síntese; é o historiador da arte se perguntando: "o que é que isto significa"?
Para Panofsky, era importante considerar os três estratos como ele examinou a arte renascentista. Irving Lavin diz que "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde ninguém suspeitava que havia - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais". Segundo o que já dizia Aby Warburg, o que importava à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades. O caminho escolhido por Erwin Panofsky busca a compreensão de como sob determinadas condições históricas objetos e eventos diversos são expressos por formas diversas; temas ou conceitos são expressos por objetos e eventos vários; tendências essenciais da mente humana são expressas por temas e conceitos específicos. A História da Arte para Panofsky é uma ciência que necessita da junção desses três exercícios de compreensão para se concretizar: a leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos. Foi sob esta óptica que ele empreendeu seus estudos sobre a arte renascentista, buscando na literatura, nas representações artísticas que comumente eram encontradas, nas leituras alegóricas ou simbólicas que a arte trazia os percursos seguidos pelos artistas da renascença para executarem suas obras. A leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos no entanto, prescinde das escolhas que porventura o artista possa fazer, assim como pode ser feita sem que o ambiente de vida do artista tenha que ser necessariamente explorado pelo historiador da arte. A busca das ressonâncias perceptíveis nas obras de arte envolvendo os motivos artísticos preferencialmente trabalhados, as imagens e alegorias conhecidas e eleitas nas representações e os valores simbólicos atribuídos às imagens representadas seriam capazes de permitir a leitura historiográfica da obra de arte. Talvez o que falte seja o que Aby Warburg considerava a presença divina, o peculiar, o ‘deus’ criador dentro de cada um que se manifesta no detalhe, no singular. A presença do indivíduo tão apregoada por Jacob Burckhardt em seu ensaio sobre a cultura do Renascimento na Itália é o elemento fundador daquela civilização que gerou as obras de arte perseguidas, esquadrinhadas e analisadas minuciosamente por aqueles estudiosos que, tal como Erwin Panofsky e Rudolf Wittkower, buscaram entender a arte da Renascença italiana.
OBRAS DE ERWIN PANOFSKY: Dürers Kunsttheorie, 1915; Dürers "Melencholia I", 1923 (with Fritz Saxl); Deutsche Plastik des elften bis dreizehnten Jahrhunderts, 1924; A Late-Antique Religious Symbol in Works by Holbein and Titian, 1926 (with F. Saxl, Burlington Magazine); Über die Reihenfolge der vier Meister von Reims, 1927 (Jahrbuch für Kunstwissenschaft, II); Das erste Blatt aus dem 'Libro' Giorgio Vasaris, 1930 (Städel-Jahrbuch, VI); Hercules am Scheidewege und andere antike Bildstoffe in der neueren Kunst, 1930 (Studien der Bibliotek Warburg, XVIII); Classical Mythology in Mediaeval Art, 1933 (with F. Saxl, Metropolitan Museum Studies, IV); Codex Huygens and Leonardo da Vinci's Art Theory, 1940; Albrecht Dürer, 1943 - The Life and Art of Albrecht Dürer (4th ed. 1955); Abbot Suger on the Abbey Church of St. Denis and Its Art Treasures, 1946; Postlogium Sugerianum, 1947 (Art Bulletin, XXIX); Style and Medium in the Motion Pictures, 1947 (Critique, Vol. 1 No 3); Gothic Architecture and Scholasticism, 1951; Early Netherlandish Painting: Its Origins and Character, 1953; Meaning in the Visual Arts, 1955; The Life and Art of Albrecht Dürer, 1955; Gothic Architecture and Scholasticism, 1957; Renaissance and Renascences in Western Art, 1960; The Iconography of Correggio's Camera di San Paolo, 1961; Studies in Iconology, 1962 (2nd ed.); Tomb Sculpture, 1964 (ed. by H.W. Janson); Problems in Titian, Mostly Iconographic, 1964; Dr. Panofsky and Mr. Tarkington, 1974 (ed. by Richard M. Ludwig); Perspective as Symbolic Form, 1991 (first appeared in 1927); Three Essays on Style, 1995.
Sobre Rudolf Wittkower e a análise iconológica.
29 Março 2016, 08:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade...
Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo’vasariano’ das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte.
Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer, Ruidolf Wittkower e Erwin Panofsky, entre outros...
Rudolf Wittkower (n. Berlim, 1901- fal. Nova York, 1971) foi um grande historiador de arte alemão, profundo conhecedor da arte italiana do Renascimento e do Barroco; orientou os seus estudos segundo a iconologia de Aby Warburg e de Panofsky e as formas simbólicas de Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras de arte. Estudou um ano Arquitectura em Berlim, para estudar depois História de Arte em Munique com Heinrich Wölfflin e em Berlim com Adolph Goldschmidt. Perito em arte renascentista italiana, recebeu a influência da Iconologia e demarcou-se do Formalismo de Wölfflin. No libro Born Under Saturn. The Character and Conduct of Artists: a Documented History from Antiquity to the French Revolution (de 1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a evolução da condição social do artista, assim como o seu carácter e a sua conducta social. Cumpriu o seu trabalho no Instituto Warburg de Hamburgo e em Londres. Entre outras publicações suas, cabe destacar:Principios arquitectónicos na época do Humanismo(de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de 1958), e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).
Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes: 1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14. Interpretation of Visual Symbols.
Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.
Quando uma obra de arte nos toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho, a História tendeu a denominá-la muitas vezes como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos, em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico, político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas que assumem fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se História de Arte sem recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às ditas «obras-primas» ? A questão tem a maior pertinência: a História da Arte tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos particulares da produção artística se poderá fazer História de Arte consequente. Mas será mesmo assim ? Lembrando Aby Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em cadeia de que todas e cada uma são a parte activa. A noção de ‘obra-prima’ – quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível, consciente da necessidade de o preservar.
Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melancolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.