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Ainda a Iconologia de Aby Warburg.: as célebres pinturas de Botticelli.

15 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Warburg destrói as bases de uma imagem evolucionista da história cultural, ao declarar impraticáveis as periodizações tradicionais. No estudo Arte Italiana e Astrologia Internacional no Palácio Schifanoja de Ferrara (1912) conclui: «A História da Arte tem sido até aqui impedida, por inadequadas categorias gerais da evolução, de colocar o seu material à disposição da ‘psicologia histórica da expressão humana’, que na verdade ainda não foi escrita». Com esse estudo, Warburg propõe a metodologia da «análise iconológica» que «não se deixa intimidar por um exagerado respeito pelas fronteiras e considera a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade como épocas ligadas entre si». Como conclusão final, uma frase tantas vezes citada, talvez pela estranha conjunção da nietzschiana referência ao «bom europeu» com a profissão de fé numa Aufklärung pouco convencional: «Com esta vontade de restaurar a Antiguidade, “o bom europeu” iniciava a sua luta pela Aufklärung naquela época de migrações internacionais das imagens que nós – de modo demasiado místico – chamamos época do Renascimento». Warburg  definiu como condição do pensamento a criação de uma distância entre o eu e o mundo a que chamou Denkraum, isto é, espaço de reflexão ou pensamento. A criação do Denkraum, do intervalo entre pólos opostos (oposição entre magia e lógica, conciliada nunca de maneira definitiva no pensamento), é definido como um modo essencialmente simbólico. O símbolo apresenta-se como produção da consciência da distância e a arte, enquanto órgão da memória social, a mais elevada produção simbólica. Na apresentação do Bilderatlas, em 1929, na Biblioteca Hertziana de Roma, Warburg disse: «Introduzir uma distância consciente entre o eu e o mundo exterior é aquilo que podemos designar como o acto fundador da civilização humana; se este intervalo [Zwischenraum] se torna o substrato da criação artística, então esta consciência da distância pode tornar-se uma duradoura função social, cuja adequação ou insuficiência como instrumento de orientação intelectual significa justamente o destino da cultura humana.A primeira vez que Warburg mencionou explicitamente a noção de memória colectiva foi quando apresentou publicamente o programa da sua Biblioteca, numa conferência na Câmara de Comércio de Hamburgo: «Ela propõe-se mostrar a função da memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã». Se é possível acompanhar as imagens da Antiguidade na sua migração imparável, na sua deslocação histórica e geográfica, é porque elas permanecem como tensão energética, como «vida em movimento» (bewegtes Leben), cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade. É importante sublinhá-lo: o que Warburg entende por Nachleben e remete para uma sobredeterminação temporal da história que não é a da continuidade do tempo cronológico; não são nunca conteúdos mas valores expressivos que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel, fórmula de pathos, onde se dá a ver uma «mímica intensificada», uma gestualidade expressiva do corpo, com origem nas paixões e nas afecções sofridas pela humanidade. Cada época selecciona e elabora determinadas Pathosformeln, à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua energia inicial. Em contacto com a «vontade selectiva» de uma época, elas intensificam-se, reactivam-se, carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é, «polarizam-se». 

É assim que a Melancolia de Dürer pode ser vista não apenas como manifestação das forças mais obscuras e imobilizantes mas também como a emergência da reflexão e do pensamento; é assim que a «polaridade» se torna, para Warburg, uma categoria interpretativa de todos os fenómenos culturais. Tudo entra numa relação bipolar: cultura antiga e moderna, cristã e pagã, pensamento mágico e pensamento lógico, etc . A polaridade fundamental é, no entanto, a que Warburg vai buscar a Nietzsche: o apolíneo e o dionisíaco, que correspondem, em Warburg, ao olímpico (olympisch) e ao demónico (dämonisch). O conceito warburguiano de «polaridade» é essencial para se perceber como determinadas formas vindas de um passado longínquo encontram em determinadas épocas uma disposição para acolhê-las e noutras não; ou de que modo, em contacto com uma nova época, o seu sentido é completamente invertido. Assim, as cadeias da tradição não têm nada de transmissão e recepção passivas, precisamente porque cada época particular transforma o material mnésico de acordo com as suas exigências. Uma concepção historiográfica fundada na polaridade e numa dialéctica sem síntese em que o passado fica detido no presente, não é compatível com a ideologia do progresso, própria do historicismo. 

Esta concepção historiográfica está confrontada com um modelo complexo de temporalidade da História que não é compatível com o conceito de uma evolução, de um devir, num sentido e numa direcção da história. A dimensão da história da cultura que se pode deduzir das investigações de Warburg está longe de ser aquela idealista e cumulativa da hegeliana «Geistesgeschiche».  No ensaio «Dürer e a Antiguidade Italiana», de 1905, Warburg desenvolve pela primeira vez a noção de Pathosformel, a partir da análise de um desenho de Dürer, representando a morte de Orfeu, inspirado numa gravura anónima do atelier de Mantegna. E a linguagem que utiliza é a que fala de «pathos heróico e teatral», expressão física intensificada, «vida em movimento» e «vida mimicamente intensificada».  Abre-se a questão da descoberta de uma dimensão dionisíaca do Renascimento, oposta à visão habitual de um Renascimento apolíneo, onde triunfa a ordem, a clareza, a harmonia.A tese que apresentou em 1891, em Estrasburgo, sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, é o início de um trabalho de investigação de décadas que tem como objecto o tema do Renascimento e a sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Mas, logo aí Warburg começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como ela resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” o verdadeiro centro nevrálgico da sua investigação, Warburg tentou compreender o modo como ela é  dotada de uma enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e, portanto, inserida num processo de transmissão da cultura, facto que se mostra cheio de implicações na própria arte viva. Trata-se, assim, de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Benjamin, ele “escova a história a contra-pêlo”), em que estas, não se reduzindo a um simples documento da história, aparecem dotadas de uma “vida póstuma” e mostram como é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar como completamente diferentes. No estudo importantíssimo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época Moderna. A partir desta antropologia histórica das imagens que põe em acção um complexo interdisciplinar, uma “ciência sem nome” que aspira a um ideal de unidade da ciência, Warburg aproxima-se progressivamente de uma “ciência universal da cultura” que fornece provas decisivas das “ideias universais”. Assim, a cultura seria um processo de “sobrevivência” (de Nachleben), isto é, de transmissão, recepção e polarização.

É nesta perspectiva que podem ser compreendidos os dois grandes projectos daquele que Walter Benjamin definiu como um “espírito nobre e notável”, representante de “um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz”: a Biblioteca que tem o seu nome (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg - KWB), e o Atlas de imagens, o Bilderatlas, a que deu o título Mnemosyne, palavra grega que também tinha sido colocada, numa placa, à entrada da Biblioteca (o que mostra a íntima relação entre ambos). Tanto ou ainda mais do que os seus escritos (cuja edição, ainda em curso, se tem revelado um processo complicado e cheio de sobressaltos), estes dois projectos constituem uma herança fundamental deixada por Aby Warburg, em termos de conhecimento e de metodologia.Para a sua Biblioteca, Warburg começou a coleccionar livros quando tinha cerca de vinte anos, mas ela só foi fundada em 1902. Foi sobretudo a partir dos primeiros anos do século XX que ela começou a enriquecer-se de maneira sistemática e a ganhar a configuração de uma biblioteca particular que, no entanto, já começava a ser pensada para ter um uso público. Quando, em 1918, Warburg tem de ser internado numa clínica por causa de uma doença mental, é Fritz Saxl quem fica a dirigi-la e a organizar nela conferências interdisciplinares que, na época, têm um papel importantíssimo. Isto mostra como a Biblioteca Warburg tinha adquirido a capacidade de se autonomizar do seu criador. É à sombra desta biblioteca, e dos métodos de Warburg, que nomes tão importantes como Ernst Cassirer e Panofsky, entre outros, desenvolverão uma parte muito importante da sua investigação. Em 1933, a Biblioteca, composta de sessenta mil livros e de um enormíssimo arquivo de imagens, é transferida para Londres, em dois barcos, justamente a tempo de ser salva da fúria nazi. Mais tarde integrada na Universidade de Londres, esta Biblioteca é o núcleo fundador do importante Instituto Warburg. 

O estudo da relação entre a palavra e a imagem, para o qual tanto o Bilderatlas como a Biblioteca Warburg (cada um por si e na relação mútua que estabelecem) oferecem um importante material. É esta relação que pode iluminar  a concepção warburgiana de iconologia, para a qual reservava o nome de “iconologia do intervalo”. Por outro lado, as imagens do seu Atlas (tal como os livros na sua Biblioteca), podiam estar sempre a ser alteradas na sua disposição. Nesse aspecto, representam aquilo a que hoje poderíamos chamar um hipertexto visual. Ora, não só é possível relacionar os métodos de investigação de Warburg com os “media” actuais, mas ver também o seu Bilderatlas como o percursor da biblioteca de arte electrónica ou do ciber-museu, tal como a Internet, hoje, nos faculta. Em 1923, numa célebre conferência que pronunciou na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, onde esteve internado durante cinco anos, e com a qual deveria provar que já estava em boas condições mentais para regressar a casa, Warburg fez uma incursão antropológica ao «ritual da serpente» dos Índios Pueblo, que tinha visitado vinte e oito anos antes, numa viagem à América. Aí, mostrando como o paganismo primitivo dessa tribo índia passa pelo paganismo da Antiguidade clássica e chega até ao homem moderno sob a forma de Nachleben, Warburg defende que  cultura humana evolui para a razão, o que significa, explicado na sua linguagem, que o símbolo substancial se transforma naquele simbolismo que só existe no pensamento. É a isto, e só a isto, que ele chama evolução da cultura humana. A história da cultura, mostrada em imagens, em símbolos, em monumentos que sobrevivem à história efectiva, apresenta-se, assim, para ele, como um processso de conquista (nunca finalizado, nunca obtido de uma vez por todas) deste Denkraum que é o resultado do confronto entre os pólos da realidade e da abstracção, da religião e da lógica, da prática mágico-religiosa e da visão matemática do mundo. O problema fundamental que se apresenta a Warburg, aquele que determina toda a sua visão da história, é este entrelaçamento de mito e iluminismo como componente essencial do pensamento ocidental. Nalguns momentos paradigmáticos do advento da razão – como são o Renascimento e a Reforma – ele descobre que o processo de desmitização (a dialéctica da Aufklärung) se revela problemático. Por isso é que o confronto entre as tensões bipolares tem a dimensão de uma luta trágica. Assim, a concepção da história de Warburg  implica um diagnóstico que nos dá conta de uma tragédia: a tragédia da cultura.

A Primavera de Sandro Botticelli

 Sandro Boticelli nasceu e morreu em Florença (1445-1510). Foi discípulo de Fra Filippo Lippi, cujos modelos seguiu no início da actividade. Salvo curto período em Roma (1481-82; História de Moisés, Capela Sistina), permaneceu sempre em Florença. Serviu os Medici, em especial Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (primo de Lorenzo de Medici), muito ligado às obras de Poliziano e Marsilio Ficino), para quem pinta em 1478-1484 as célebres Primavera e Nascimento de Vénus. Foi para Lorenzo di Pierfrancesco que Botticelli fez os desenhos para uma das edições da Divina Comédia de Dante. A leitura do quadro deve ser feita da direita para a esquerda. A primeira tríade de personagens representa a metamorfose da ninfa Clóris na esplendorosa Flora, por acção do vento fecundante da primavera, Zéfiro, inspirando-se num passo dos Fastos, do poeta latino Ovídio. Assim se justificam as cinco centenas de espécies botânicas representadas, atapetando os diferentes planos da composição, documentando o interesse para-científico dos artistas do Renascimento pela Natureza. Em contraponto, no lado oposto, vemos uma segunda tríade, constituída pelas Três Graças, Castidade, Beleza e Volúpia. Entre as duas tríades, Vénus, Deusa do Amor, comanda a acção que seu filho, Cupido, energia do Amor, desencadeia, ao disparar, cego, as flechas com o fogo da Paixão, na direcção da Castidade. Se, na primeira tríade, vemos um princípio produtor, em que a Paixão fecunda a terra e a transforma «em sons e cores» (como diria Fernando Pessoa), na segunda emerge um princípio conversor, em que a energia do Amor Divino desencadeia na Alma a procura da Verdade. E, de facto, o olhar da Castidade vira-se para Mercúrio, última figura desta istoria, mensageiro dos Deuses, líder das Graças e intérprete dos segredos, que, afastando com o seu caduceu as nuvens da obscuridade, conduz o intelecto  na contemplação da luz escondida da Beleza intelectual. Uma tão sublime interpretação plástica do ideal do Amor e da Beleza, tal como o concebia o Humanismo florentino,  dificilmente voltaria a ser alcançada, pelo que este quadro  se transformou no ícone do próprio Quattrocento, coração  artístico e filosófico de um Renascimento que será sempre,  na história dos homens, uma eterna Primavera.

O título da obra, Primavera, decorre de uma referência do pintor e escritor florentino Giorgio Vasari (nas suas Vite, 1550), segundo o qual a pintura “significa a Primavera”. De acordo com E. Wind, as fontes clássicas utilizadas por Botticelli foram principalmente os textos de Poliziano e, deste, as referências às Odes de Horácio e aos Fastos de Ovídio, sempre em episódios não forçosamente interrelacionados.  Na cena da direita vê-se Zéfiro, o vento da Primavera, de bochechas inchadas a tentar tocar a ninfa Cloris, que procura escapar-lhe sem, no entanto, o conseguir. Do vento que sai da boca de Zéfiro escapam algumas flores que, ao tocarem Cloris, a transformam em Flora, a terceira figura do grupo e a mensageira da Primavera. Iremos encontrar nos Fastos de Ovídio o jogo etimológico que transforma a ninfa Cloris a deusa romana Flora: (Chloris eram quae Flora vocor).  Há neste primeiro grupo clara alusão a um ciclo de tempo, não um tempo cronológico stricto sensu, mas do tempus  que a idea platónica compõe ciclicamente. Como diz Wind,  a criatura primitiva e tímida de Cloris (como Ovídio a descreve)  dá lugar à beleza vitoriosa da Flora. Mas foi essa timidez e singeleza de vestuário - uma túnica transparente e denunciar nudez -  que atraiu Zéfiro e fez dele “um fiel marido que a fez germinar e  exibir mil cores de flores novas( Cf. Fastos)”. O grupo da direita está evidentemente relacionado com as três figuras da esquerda, as Três Graças, baseado numa dialéctica ovidiana da trilogia pulchritudo, castitas, voluptas. Enquanto no grupo da direita se denota a criação da Beleza, na figura central da pintura – a deusa Vénus, como sugeria Vasari –, é desta divindade que decorre a presença das Três Graças, as ninfas sempre ao seu serviço. Ao alto, sobre a cabeça da deusa, um Cupido de olhos vendados dirige a seta para a Graça no centro do grupo de três. Observando o grupo das Três Graças vemos que se relacionam com uma dança, denunciada pelo modo e sequência de movimento. A Graça ao centro é, pelo seu vestuário e ausência de adornos, a Castitas. Veja-se a simplicidade do vestuário e a simplicidade das pregas da túnica, em evidente contraste com as suas companheiras. Por outro lado o rosto apresenta uma expressão triste e melancólica enquanto a Voluptas exibe vistoso penteado, com serpenteantes tranças, uma jóia sumptuosa no peito, e túnica a acentuar as curvaturas do corpo. É a energia voluptuosa. A terceira graça, a Pulchritudo, é a mais atractiva e exibe com orgulho a  sua beleza. A sua jóia é mais modesta e os cabelos não esvoaçam, serpenteantes, mas exibem um penteado cuidado menos espectacular que o da Voluptas.      O facto de as Três Graças se apresentarem vestidas com túnicas e não nuas, como acontece em pinturas de outros mestres em épocas mais tardias, decorre uma vez mais de autores clássicos como Horácio e Séneca. A Horácio se deve  a gestualidade e o facto de não olharem, de modo exibicionista para o exterior.

Aquilo a que Wind chama coreografia da dança corresponde, mais uma vez, a alusões na literatura clássica: “Ille consertis manibus in se redeuntium chorus” (Séneca). Estes atributos e gestualidade, que decorrem de fontes literárias, «reforçam o sentido da acção» (Wind). «Enquanto a “verde” Castitas e a “abundante” Voluptas avançam uma para a outra, a Pulchritudo mantém-se pura e serena no seu esplendor, aliando-se à Castitas, agarrando-a pela mão e unindo-se à Voluptas num gesto florido» (Wind).  Há, naturalmente, um sentido dialéctico neste relacionamento entre as Três Graças  (e sob este ponto de vista encontramos aproximações entre as perspectivas de E. Wind e de E. Panofsky), sentido que se definirá pela «oposição», «acordo» e «acordo na oposição», atitudes reflectidas pelos movimentos corporais, a elegante colocação das mãos entrelaçadas e, no caso da Voluptas e da Pulchritudo, unidas como que formando uma coroa sobre a Castitas, que elas próprias vão iniciar no Amor e, consequentemente, na tríade que acompanha Vénus. A ideia de Vénus, tradicionalmente identificada com a deusa do amor, sofreu algumas alterações desde as palavras do humanista Pico della Mirandola (que seguiu Plutarco) até Marsílio Ficino que, ao retomar, em versão própria, o mesmo Plutarco,  permitiu a Sandro Boticelli a introdução na dança das Três Graças de um sentido de decoro, sentido ausente da «enérgica vitalidade» (Wind) da relação do grupo da direita, quando Zéfiro se aproxima de Cloris, produzindo uma Flora com o «aspecto de jovem camponesa louçã» (Wind). Seguindo à letra a interpretação de Edgar Wind, “quando a Paixão (na figura de Zéfiro) transforma a fugidia Castidade (Clóris) na Beleza (Flora), a progressão representa o que Ficino chamou de «tríade produtiva»”. Daí que, quando estas três figuras se “transformam” nas Três Graças, passam a uma «tríade convertida» em que a Castitas, ao centro, se mantém virada de costas para o observador dirigindo o olhar para o “mais além”. E esse mais além é, nada mais nada menos, que a figura de Mercúrio que ergue o caduceu não para os frutos que pendem da árvore, mas sim para o pequeno grupo de nuvens que se acumula junto dos ramos. Qual a razão da presença de Mercúrio neste conjunto ? Resumindo os textos de Wind e as fontes clássicas, designadamente Vergílio (Eneida) e Boccaccio (Genealogia dos Deuses), conclui-se que Mercúrio, o guia das Três Graças, é simultaneamente quem conduz ao mais além, simbolizado na pintura pelas nuvens. Curiosamente, esse mais além pode ser «lido» como a morte, identificável no seu manto pelo símbolo neoplatónico das múltiplas chamas invertidas  (divinus amator). Mercúrio assume aqui uma multiplicidade de funções e significados que estabelecem o relacionamento não só com os grupos citados, mas também com a deusa Vénus. O deus que domina as nuvens e ventos “não era apenas o mais astuto e veloz de todos os deuses, o deus da eloquência [...], o guia das almas dos mortos, o acompanhante das Graças, o mediador entre mortais e deuses, o que salva a distância entre a terra e os céus; para os humanistas, Mercúrio era, sobretudo, o deus engenhoso, o do intelecto indagador, sagrado aos olhos dos gramáticos e metafísicos, o patrono dos eruditos e da interpretação, o revelador do conhecimento hermético, do qual o seu bastão mágico (o caduceu) chegou a ser símbolo” (Wind). De todas estas funções, a que mais se aproxima do significado do  grupo das Três Graças será a da divindade que atinge o «mais além». E não por acaso, Botticelli representou a Castitas de costas para o observador, dirigindo o olhar para o mais além representado no poder de Mercúrio, seu guia e companheiro. Será ele que romperá as nuvens e permite acesso à luz divina.

   Dada a filiação da pintura nos textos clássicos e no Humanismo que retoma essas referências, é de concluir, como Edgar Wind (e também como Panofsky e, de certo modo, com André Chastel), que “não é possível compreender totalmente a composição da pintura, nem completamente o papel de Mercúrio, até que se observa a simetria de composição entre esta divindade e Zéfiro”.  Virar as costas ao mundo com o distanciamento de Mercúrio e regressar a ele com a impetuosidade de Zéfiro são duas forças complementares do Amor, de que Vénus é a guardiã e Cupido o agente: «A Razão é a rosa dos ventos, mas a paixão é a tempestade» (Alexander Pope, sefgundo Wind)”.  Se Zéfiro simboliza o vento, Mercúrio é o condutor das nuvens e, por consequência, espécie de deus do vento (Ventus agere Merurii est, Boccacccio, in Genealogia dos Deuses). “Zéfiro e Mercúrio representam duas fases de um processo periodicamente recorrente: o que desce à terra como sopro da paixão regressa ao céu no espírito da contemplação”.

 

 Biliografia seguida neste texto de apoio

André Chastel, Marsile Ficin et l’Art, Genève, Droz, 1996

Giorgio Vasari, Les Vies des Meilleurs Peintres ...., Vol 4, Paris, Berger-Levrault, 1983, pp. 253-266.

Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Lisboa, Presença, 1981

Erwin Panofsky, Estudos de Iconolgia, Lisboa, Estampa, 1986

Edgar Wind, Pagan Mysteries in the Renaissance, Oxford University Press, 1980 (ed. espanhola Los Misterios Paganos del Renacimiento, Madrid, Alianza, 1998). Um Mirella Levi d’Ancona, Due quadri del Botticelli eseguiti per nascite in Casa Medici, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1997

 


Aby Warburg (1866-1929) e a Iconologia.

13 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O grande fascínio provocado pela herança de Aby Warburg e pela Iconologia é explicada como sintoma de um certo descontentamento entre a nova geração de historiadores de arte, para quem a noção warburghiana de pathos, de sobrevivência de formas, de Nachleben (vida póstuma das imagens), e a montagem do seu BilderAtlas (criado em 1926, como processo de conhecimento através das imagens), ganham a maior actualidade.A História da Arte não se define no sentido cronológico ou evolutivo da análise estilístico-formal, mas sim através do estudo do sentido da involução morfológica que afecta de anacronismo todos os modos históricos e estilos. Urge estabelecer um espaço de reflexão e de investigação – Denkraun – que permita o projecto de uma psicologia histórica da expressão humana a partir do estudo das imagens. Esse teatro será a Biblioteca, construída a partir de 1926 em Hamburgo para albergar a Kultgurwissenschstliche Bibliothek Warburg.  

Aby Warburg nasceu em 1866, em Hamburgo, no seio de uma antiga família de ricos banqueiros judeus, e teve a existência assegurada pela fortuna familiar, o que mostra, “pelo exemplo pessoal – disse-o em carta ao irmão Max Warburg de 30 de Junho de 1900 – que o capitalismo pode também levar a cabo um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance”. A tese que apresentou em 1891 em Estrasburgo sobre O Nascimento de Vénus e A Primavera, de Botticelli, inicia um trabalho de investigação de décadas com objecto no Renascimento e na sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. Logo aí começa a dar-se conta dos limites de uma História de Arte “esteticizante” e “formal”, tal como resulta de uma abordagem meramente erudita da história dos estilos e da avaliação estética. Fazendo da “imagem” centro nevrálgico da sua investigação, tentou compreender o modo como ela é  dotada de enorme permeabilidade às sedimentações históricas e antropológicas e inserida num processo de transmissão de culturas, facto esse pleno de implicações na própria arte viva. Tratou de conceber uma complexa temporalidade das imagens (à maneira de Walter Benjamin, “escova a história a contra-pêlo”...), em que estas, não se reduzindo a simples documento da História, são dotadas de vida póstuma e mostram como é possível estabelecer uma ligação entre épocas que a historiografia nos habituou a considerar completamente diferentes. No estudo que fez dos frescos do Palácio Schifanoia, de Ferrara, onde pela primeira vez refere o método iconológico, Warburg mostrou precisamente que há uma ligação entre a Antiguidade, a Idade Média e a época moderna. 

Fala-se hoje de um renascimento das teorias de Aby Warburg  para designar o interesse crescente pela sua obra e reconhecer que terá chegado ao momento da sua legibilidade. Este renascimento não é motivado por interesse arqueológico, mas pela constatação de que todo o seu trabalho -- elaborações teóricas, investigações, a constituição da grande biblioteca que o ocupou a vida inteira -- são um contributo fundamental para pensar a História da Arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada – nos seus métodos, nos seus pressupostos – como a própria historicidade das obras de arte. E de modo mais alargado para pensar o vasto campo das ciências da cultura.É certo que contingências de vária ordem tornaram difícil a transmissão e recepção de um legado que nunca adquiriu uma forma fixa e acabada e nem sempre se materializou em «obra». Quando morreu, em 1929, com 63 anos, Warburg deixava a seguinte herança:

1) o exemplo pessoal de alguém destinado a gerir a os negócios da família de banqueiros judeus de Hamburgo, com enorme relevo na vida da cidade desde o século XVII, mas que opta por uma vida de Privatgelehrter (de erudito trabalhando em regime livre e privado), sustentada pela fortuna familiar, que o torna um representante notável e quase certamente último de «um tipo de erudito senhorial, esplendidamente inaugurado por Leibniz», como o classificou Walter Benjamin no seu ensaio sobre Bachofen. 

2) uma biblioteca erguida à custa de investimento privado (de acordo com o entendimento de que «o capitalismo pode também permitir a realização de um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance», prescindindo para um irmão das suas prerrogativas de herdeiro) e reflectindo, na sua complexa organização, os interesses, métodos e conhecimentos do seu criador, acabaria por se tornar em 1921 uma instituição parcialmente pública, desempenhando ao mesmo tempo as funções de instituto de investigação, cuja direcção foi assegurada por Fritz Saxl; 

3) um conjunto de estudos em grande parte consagrados ao Renascimento, campo onde centra a sua investigação histórica e antropológica, apresentados sob a forma de conferências ou comunicações em congressos em parte nunca editados; um volume imenso de notas, apontamentos e escritos diarísticos que reflectem um processo de trabalho com dificuldade em se cumprir (a cada página escrita correspondem dezenas ou centenas de páginas de notas); 

4) um «Atlas» consistindo num conjunto de 63 painéis, onde agrupa mais de mil fotografias a que deu o nome grego colocado à entrada da biblioteca, Mnemosyne, através do qual queria mostrar a permanência de certos valores expressivos dotados de uma «força formadora de estilo» (stilbildende Macht), que sobrevivem como património sujeito a complexas leis de transmissão e recepção. 

A administração de tal herança tem-se revelado difícil. Os dois volumes de escritos reunidos só são editados em 1932 por Gertrud Bing, fiel assistente de Warburg, e só vieram a ter continuidade quando em 1998 foram reimpressos, inaugurando uma edição dos Gesammelte Schriften que compreende seis secções. Até à data, para além desses dois volumes com o mesmo título da edição de 1932, Die Erneurung der heidnischen Antike. Kulturwissenschaftliche Beiträge zur Geschichte der europäischen Renaissance, foram ainda publicados o Bilderatlas Mnemosyne (2000) e o Tagebuch der kulturwissenschaftlichen Bibliothek Warburg (2001), o que parece indicar que a tarefa editorial está finalmente em andamento. É ainda uma parte do anunciado, mas já encontramos material que antes só se conhecia em segunda mão, através das referências de quem trabalhou no arquivo do Instituto Warburg, em Londres, especialmente através de E. H. Gombrich, seu director a partir de 1959 e autor de uma biografia intelectual de Aby Warburg saída em 1970. 

Apesar de muito criticado por nem sempre ter entendido qual o significado e alcance  das propostas de Aby Warburg e dada a sua dificuldade em libertar-se dos modelos convencionais da historiografia da arte, Gombrich desempenhou um papel fundamental na descoberta de uma obra que permanecia escondida por detrás da instituição. De facto, em 1970 e até muito recentemente, eram ainda válidas as palavras de Giorgio Pasquali escritas em 1930 como «ricordo»  do seu amigo, falecido seis meses antes: «Mesmo entre os universitários, muitos interrogam-se se aquele nome é não apenas o de uma instituição mas também o de um homem (...). Que a pessoa, o grande investigador Warburg, tenha desaparecido mesmo enquanto vivo, por detrás da instituição que criou, é conforme às suas intenções». A célebre KBW (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg), biblioteca para as ciências da cultura, era peça fundamental do projecto científico de Warburg, na medida em que permitia dar expressão muito concreta à sua ideia de uma unitária Kulturwissenschaft, de uma «ciência universal da cultura» que anula rígidas divisões disciplinares. Ela constituiu a sede e ponto de partida – material, metodológico e temático – de importantes investigações que têm a sua origem bem localizada no «círculo Warburg». Concebida, na sua variedade interdisciplinar, como uma biblioteca de estudos e investigação, a KBW  obedecia a um complexo sistema de ordenação que, em si, servia desde logo o programa de Warburg de constituir uma rede de enunciados universais. De facto, Warburg classificava os livros, não segundo a ordem alfabética ou aritmética, mas segundo os seus próprios interesses e o seu sistema de pensamento. Aquilo a que ele chamava a lei da “boa vizinhança” era o princípio que estava na base da sua Biblioteca: partir em busca de um livro deveria sempre conduzir a um outro que estava ao lado, que se revelaria mais importante do que aquele que tinha sido o objecto inicial da busca. Na descrição de Ernst Cassirer, esta Biblioteca era um verdadeiro labirinto que podia provocar algumas perturbações aos visitantes.

Segundo Franz Saxl, «os livros estavam organizados em quatro níveis: no 1º, estavam aqueles sobre problemas gerais de expressão e a natureza dos códigos e símbolos, e daí se passava para a religião,  a antropologia, daí para a filosofia e a história da ciência; no 2º, continham-se os volumes sobre a expressão na arte, a  sua teoria e a sua história; no 3º nível, estavam as obras dedicadas à linguagem e à literatura. no 4º, enfim, estavam s obras dedicadas às formas sociais da vida e do trabalho, a história, o direito, o folclore, etc.

No caso de Panofsky, reconhecendo-se que o autor da Perspectiva como Forma Simbólica orientou a sua análise das imagens num sentido que está longe de lhes reconhecer a complexidade de formas expressivas dotadas de «vida póstuma», há ecos da Nachleben, mas é certo que não captou a análise formal e autónoma. Foi também em proximidade com o «círculo Warburg» que Ernst Cassirer escreveu A Filosofia das Formas Simbólicas. A mulher de Cassirer relatou a impressão que a Biblioteca Warburg provocou no marido quando a visitou em 1920: «Lembro-me que Ernst, depois da primeira visita, entrou em casa num estado de viva excitação (coisa raríssima nele): contou que a biblioteca era algo absolutamente único e grandioso; que o Dr. Saxl, que lha tinha mostrado, lhe tinha parecido um homem maravilhoso e original. No entanto, que depois da visita guiada através das longas filas de estantes, tinha sentido necessidade de lhe dizer: “Não regressarei aqui porque, neste labirinto, acabaria por me perder”. A descoberta da Biblioteca Warburg foi para Ernst como que a descoberta de uma mina onde podia descobrir um tesouro a seguir a outro». Sabemos que Cassirer, afinal, regressou muitas vezes: no texto «Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften» (Vorträge der Bibliothek Warburg, 1923) lemos: «Senti aquilo de que se falou na conferência de abertura do ciclo [Saxl falara sobre «Die Bibliothek Warburg und ihr Ziel»]: não se trata de uma colecção de livros mas uma colecção de problemas»…«O que provoca tal impressão não são os domínios abrangidos mas o princípio da sua disposição, pois as secções de história da arte, religião e mito, assim como a história da língua e da cultura não se limitam a estar ao lado umas das outras, mas remetem para um centro comum ideal. Sem dúvida que esta relação parece ser de carácter puramente histórico: é o problema da vida póstuma [Nachleben] da Antiguidade”. Em 1933, quatro anos após a morte de Warburg, a sua biblioteca, então com cerca de sessenta mil volumes e um enorme arquivo de imagens, foi transferida para  Londres, escapando às ameaças que, com o nazismo, pesavam sobre tal instituição que tinha o nome de uma das mais importantes famílias judaicas da Alemanha. Constituiu a base do «Warburg Institut», integrado na Universidade de Londres em Novembro de 1944.

As contingências da forçada implantação de um instituto num universo cultural completamente estranho aos seus métodos e conceitos determinou o destino pouco próspero da herança warburgiana. Não é que o Warburg Institut não se tenha tornado um centro reconhecido, mas o pensamento de Warburg, que o tinha levado a descobrir uma rede de fórmulas expressivas universais e trans-históricas (sujeitas a leis históricas na sua vida póstuma, pois não são pura e simplesmente transmitidas como algo a imitar: cada época tem a sua maneira de seleccionar, reanimar e intensificar), presentes em todas as produções simbólicas da humanidade e não apenas na arte, não encontrou desenvolvimentos. Só recentemente se começou a perceber o que ele verdadeiramente significa.O núcleo da Biblioteca implica uma determinada concepção da História da Arte e do trabalho historiográfico que segue aquele preceito de «escovar a história a contra-pêlo», que W. Benjamin, alguns anos depois, iria formular numa das suas teses «Sobre o Conceito de História». Na conferência sobre os objectivos da Biblioteca Warburg, O seu assistente Frank Saxl (1890-1948) afirma que o seu carácter específico reside em se tratar de uma Problembibliothek, uma biblioteca que, não se limita a reunir o material de que é composta, mas o coloca segundo uma ordem sistemática, «de tal modo que a sua disposição leva-nos ao problema»... No topo da biblioteca, a secção de filosofia da história; como objecto central da investigação que estava habilitada a servir, o problema da vida póstuma, a Nachleben, da Antiguidade Pagã, de onde se deveriam «tirar conclusões gerais sobre a função da memória social da humanidade: de que espécie são as formas cunhadas pela Antiguidade, que faz com que elas sobrevivam? Porque é que em determinadas épocas se dá um “renascimento”da Antiguidade, enquanto que outras, com a mesma herança cultural, não a assumem como seu património vivo?» O conceito de história em Warburg é fundado na sua teoria da memória social ou colectiva. Esta questão começa a ganhar forma no  seu estudo de 1893 sobre o Nascimento de Vénus e a Primavera de Botticelli, que apresentava já no subtítulo ser «um estudo sobre as representações da Antiguidade no primeiro Renascimento italiano». Ao investigar a recorrência de antigas formas de movimento expressivo na obra de Botticelli, de gestos dotados de um pathos que se refere a uma linguagem mímica cuja migração histórica e geográfica é possível acompanhar, Warburg começa a encarar a História da Arte em termos de uma memória errática de imagens que constantemente regressam como sintomas (fazendo apelo a uma «psicologia histórica da expressão humana») e a Nachleben da Antiguidade como objecto central do seu programa historiográfico.

Se o Renascimento italiano constituiu um campo de eleição, não foi tanto por um interesse em si, mas porque lhe fornecia o mais avançado exemplo do funcionamento da memória cultural e das sobrevivências primitivas. Tentando compreender em Botticelli e Ghirlandajo as leis que regem o regresso de formas outrora impressas e que a memória colectiva conserva e transforma, ou descobrindo que as figuras dos frescos do palácio Schifanoia, nas suas características clássicas, eram afinal os decanos indianos, emigrados da simbologia oriental e medieval, mas sob cujas vestes «bate um coração grego», Warburg não estava a seguir os modelos canónicos da História da Arte nem da história tout court, mas a construir um específico modelo temporal para os factos da cultura ao nível da sua Kulturwissenschaft unitária, abrindo-a a muitos campos do saber, como a Antropologia. Desde logo, porque encara o Renascimento (o histórico mas também, por extensão, o processo transistórico dos «renascimentos») não como um revivalismo através do qual se procederia à recuperação da tradição perdida, mas como um mecanismo inconsciente, próprio da memória colectiva, e portanto capaz de se manifestar através de sintomas. Muitas vezes Warburg fala de sintomas. Por exemplo, num estudo de 1905 sobre «As Trocas da Cultura Artística Entre o Norte e o Sul no Século XV» quando designa certos elementos «como sintomas de uma época de transição». É precisamente como estruturas sintomáticas que Georges Didi-Huberman definiu e analisou, em L’image survivante, as Nachleben. É como categoria histórico-filosófica central que a memória preside à Biblioteca: sobre a porta da entrada, Warburg tinha colocado uma placa com a palavra grega Mnemosyne. Escrevendo sobre o significado do conceito warburguiano de Kulturwissenschaft, Edgar Wind  interpretou-a num duplo sentido: «Exortação ao investigador a recordar-se que, interpretando obras do passado, administra o património da experiência nelas depositado – e alusão a esta mesma experiência enquanto objecto de investigação, isto é, convite a analisar o funcionamento da memória social com base no material histórico. No estudo sobre o primeiro Renascimento florentino, a eficácia desta memória social tinha-se-lhe deparado em toda a sua realidade: como verdadeiro renascimento de antigas formas figurativas na arte desse tempo».A primeira vez que Warburg mencionou explicitamente a noção de memória colectiva foi quando apresentou publicamente o programa da sua Biblioteca, numa conferência na Câmara de Comércio de Hamburgo: «Ela propõe-se mostrar a função da memória colectiva europeia enquanto poder formador de estilo, assumindo como constante a cultura da Antiguidade pagã». Se é possível acompanhar as imagens da Antiguidade na sua migração imparável, na sua deslocação histórica e geográfica, é porque elas permanecem como tensão energética, como «vida em movimento» (bewegtes Leben), cujos traços significantes estão inscritos na memória da humanidade. É importante sublinhá-lo: o que Warburg entende por Nachleben e remete para uma sobredeterminação temporal da história que não é a da continuidade do tempo cronológico; não são nunca conteúdos mas valores expressivos que ganham forma naquilo a que chamou Pathosformel, fórmula de pathos, onde se dá a ver uma «mímica intensificada», uma gestualidade expressiva do corpo, com origem nas paixões e nas afecções sofridas pela humanidade. Cada época selecciona e elabora determinadas Pathosformeln, à medida das suas necessidades expressivas, regenerando-as a partir da sua energia inicial. Em contacto com a «vontade selectiva» de uma época, elas intensificam-se, reactivam-se, carregam-se de um significado que entra em conflito com um pólo oposto, isto é, «polarizam-se».  É assim que a 'Melancolia I' de Dürer pode ser vista não apenas como manifestação das forças mais obscuras e imobilizantes mas também como a emergência da reflexão e do pensamento; é assim que a «polaridade» se torna, para Warburg, uma categoria interpretativa de todos os fenómenos culturais. Tudo entra numa relação bipolar: cultura antiga e moderna, cristã e pagã, pensamento mágico e pensamento lógico, etc.


Trans-Memória: espçaços habitados, espírito de lugar, identidades memoriais de sítio.

8 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

   Trans-Memória: espçaços habitados, espírito de lugar, identidades memoriais de sítio.

Seja qual for a circunstância histórica de concepção, de produção ou de fruição, as imagens artísticas são sempre um testemunho estético dotado de muitos sentidos. Elas apresentam-se ao nosso olhar com significações distintas e com variados traços de comunicabilidade que se expressam tanto no plano da sua estrita conjuntura de tempo e de espaço como, sobretudo, no plano de uma dimensão trans-contextual que lhes confere novos níveis de leitura.

As obras de arte são, quase sempre, uma espécie de jogo de espelhos na sua qualidade natural de objectos vivos, dotados da capacidade de prolongarem a sua função pela fruição, de assumirem novos contextos e de se exprimirem em plenitude face a novos olhares. Aptas a gerar novos públicos na sucessão dos tempos, as obras de arte comunicam impressões, resguardam a sua complexidade originária e renovam os seus traços de encantação estética. Como afirmou o escritor Antoine de Saint-Exupéry, elas encerram tanto uma dimensão onírica quanto uma dimensão tangível, ambas essenciais para caracterizar a sua essência artística.

   É precisamente a dimensão memorial das imagens artísticas com os seus contornos nunca efémeros, ou neutrais, que se impõe analisar à luz das suas razões de ser, sejam ideológicas, religiosas, políticas, ou outras. ... E, sabemo-lo pela experiência que a Iconologia, a Semiologia e a Sociologia da Arte nos oferecem, as obras de arte são mais atraentes como interlocutoras dinâmicas de diálogos interrompidos quanto melhor explicáveis na essência do acto de produção que lhes deu origem, e na consequência dos actos de contemplação que, muito tempo depois, continuaram a legitimá-las, mesmo com o peso do esquecimento colectivo sobre os significados reais que um dia lhes deram origem e modelação criadora...

     Parece-me ser útil, assim, para uma maior riqueza metodológica na prática da História da Arte, recorrer à utilização de um novo conceito: o conceito de trans-memória aplicado ao estudo integral das imagens artísticas.  Tal dimensão teórica tem em vista o entendimento de que a obra de arte, mais que um testemunho trans-contextual (como diria Arthur Danto, ou U. Eco  com o conceito de ‘obra em aberto’) apto a formar novos públicos cada vez que é alvo de um novo acto de fruição, é também um laboratório de memórias acumuladas que sobrevivem e perduram, seja nas franjas do subconsciente, seja na prática da criação e da re-criação dos artistas.

     A Musa Polimnia (na origem grega, Polymnia), a inventora da lira, é desde sempre representada em moldes variados: ora em pose meditativa e merencorosa, com o pé sobre uma rocha e a cabeça apoiada numa das mãos, ora segurando na outra mão uma orelha (gesto que simboliza o esquecimento) e um buril (que significa o modo como a alma humana grava as viagens da imaginação); podendo aparecer também apoiada num tabuleiro onde os cinco sentidos estão representados pelos seus símbolos (o olho, a orelha, a boca, o nariz, a mão) e acompanhada por um cão (presença essa que atesta como os animais também são dotados da faculdade de memória). Num plano fundeiro, em algumas representações de Polimnia, podem surgir as outras Musas, todas elas filhas da Memória na acepção precisa em que, sendo todas elas filhas dos amores ilícitos de Zeus e Mnemésis, consagram, também elas, o conjunto dos factos dignos de memorização.
      Casos de Arte Pública em Lisboa à luz dos seus múltiplos contextos: exemplos diversos.


Trans-Memórias: Rudolf Wittkower e os intercâmbios dos códigos artísticos.

6 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

ALEGORIA E INTERCÂMBIO DE SÍMBOLOS E CÓDIGOS FORMAIS

Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico...

Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico. Quando uma obra de arte nos toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho, a História tendeu a denominá-la muitas vezes como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos, em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico, político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas  que assumem fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se História de Arte sem  recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às ditas «obras-primas» ?  A questão tem a maior  pertinência: a História da Arte tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos particulares  da produção artística se poderá fazer História de Arte consequente. 

Mas será mesmo assim ?  Lembrando Aby Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em cadeia de que todas e cada uma são a parte activa.A noção de ‘obra-prima’ – quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível, consciente da necessidade de o preservar.

No livro Through the Looking-glass and what Alice found twere, Lewis Carroll narra o fascínio de Alice, junto ao gato negro Kitty, pelo grande espelho que a intriga, onde se reflecte o quarto em que está encerrada, até ao momento em que finalmente atravessa o espelho e penetra na sua aventura. Aí, dentro, tudo é igual à imagem que Alice podia ver reflectido na superfície, mas tudo o que não era entrevisto na imagem reflectida é, pelo contrário, muito diferente do imaginável... É o mundo da fantasia, todavia com regras precisas, um mundo que Alice tem de percorrer para o poder compreender na sua globalidade... Através do espelho... Através da imagem... A abordagem iconológica encontra nesta dimensão de entrega ao total descobrimento as suas mais  puras raízes, o seu inflamado desejo de flanquear a superfície das coisas (e das obras de arte) para poder descobrir o seu lado escondido, a sua face oculta... A História da Arte passou o tempo’vasariano’  das biografias e o tempo ‘morelliano’ das leituras formais dotadas da maior cientificidade, aprendendo nas várias vertentes – histórica, documental, laboratorial, sociológica, semiótica – um pouco da sua especificidade como disciplina dotada de fascínios no modo sempre irrepetível de saber ver em globalidade as obras de arte. Eis que a ICONOLOGIA ultrapassa a sua dimensão de ramo operativo da História da Arte e, passando pelo bom uso da Iconologia, é capaz de apontar sentidos, descodificar programas, entretecer mistérios que as imagens oferecem aos espectadores, ao longo dos tempos. Depois do uso do termo no dicionário de símbolos que Cesare Ripa editou em Roma (Iconologie, 1593) e reeditou, ilustrado, em 1603, a Iconologia ressurge em Roma, em Outubro de 1912, no X Congrès International d’Historiens d’Art, por palavras de Aby Warburg (1866-1929), ao expôr a sua «leitura iconológica» dos frescos do Palazzo Schifanoia em Ferrara, em oposição às leituras formais e estritamente descritivas dos seus colegas. Na sua biblioteca de Hamburgo, Warburg reunirá materiais de approche interdisciplinar da H. Arte com a Astrologia, a História das Religiões, a Antropologia, a Sociologia, a Literatura, o Folclore, etc, assim nascendo o Instituto Warburg, que o regime nazi obrigará a transferir em 1933 para Londres. Sob direcção de Fritz Saxl, o Instituto recebe grande impacto: aí se formarão Ernst Cassirer e Erwin Panofsky, entre outros...

Erwin Panofsky (Hannover, 1892-Princeton, EUA, 1968) foi discípulo de Warburg. Graduou-se em 1914 na Universidade de Friburgo, com uma tese sobre o pintor alemão Albrecht Durer, depois de estudar em várias universidades alemãs. Em 1916 casou-se com Dora Mosse, também historiadora da arte. Em 1924 aparece a primeira de suas grandes obras: Idea: uma contribuição para a história das ideias na história da arte, em que examina a história da teoria neoplatónica na arte do Renascimento. Entre 1926 e 1933 foi professor na Universidade de Hamburgo, onde havia começado a lecionar em 1921. Abandonou a Alemanha quando os nazis tomaram o poder em 1933 (era de ascendência judia) e instalou-se nos EUA, para onde havia viajado como professor convidado em 1931. Foi professor no Instituto para Estudos Avançados da Universidade de Princeton (1935-1962), mas também trabalhou nas universidades de Harvard (1947-1948) e New York (1963-1968). Para Panofsky a História da Arte é uma ciência em que se definem três momentos inseparáveis do ato interpretivo das obras em sua globalidade: a leitura no sentido fenoménico da imagem; a interpretação de seu significado iconográfico; e a penetração de seu conteúdo essencial como expressão de valores. A arte medieval e do Renascimento (que estudou profundamente), estão definidos no livro Renascimentos e Renascimentos na Arte Ocidental. Foi amigo de Wolfgang Pauli, um dos criadores da física quântica.

Panofsky fez a distinção entre ICONOGRAFIA e ICONOLOGIA em Estudos em Iconologia (1939) dando exemplos sobre as diferenças. Definiu iconografia como o estudo tema ou assunto, e iconologia o estudo do significado. Ele exemplifica o ato de um homem levantar o chapéu. Num 1º momento (ICONOGRAFIA) é um homem que retira da cabeça um chapéu, num 2º momento, (ICONOLOGIA) menciona que ao levantar o chapéu, esse gesto é "resquício do cavalherismo medieval: os homens armados costumavam retirar os elmos para deixar claras suas intenções pacíficas". Enfatizando a importância dos costumes cotidianos para se compreender as representações simbólicas. Em 1939, em Estudos em Iconologia, Panofsky detalha as suas ideias sobre os três níveis da compreensão da história da arte:

     Primário, aparente ou natural: o nível mais básico de entendimento, esta camada consiste na percepção da obra em sua forma pura. Tomando-se, p. ex., uma pintura da Última Ceia. Se nos ativermos ao 1º nível, o quadro poderia ser percebido somente como uma pintura de treze homens sentados à mesa. Este 1º nível é o mais básico para o entendimento da obra, despojado de qualquer conhecimento ou contexto cultural.

     Secundário ou convencional: Este nível avança um degrau e traz a equação cultural e conhecimento iconográfico. Por exemplo, um observador do Ocidente entenderia que a pintura dos treze homens sentados à mesa representaria a Última Ceia. Similarmente, vendo a representação de um homem com auréola com um leão poderia ser interpretado como o retrato de São Jerónimo.

     Significado Intrínseco ou conteúdo (Iconologia): este nível leva em conta a história pessoal, técnica e cultural para entender uma obra. Parece que a arte não é um incidente isolado, mas um produto de um ambiente histórico. Trabalhando com estas camadas, o historiador de arte coloca-se questões como "por que é que São Jerónimo foi um santo importante para o patrono desta obra?" Essencialmente, esta última camada é uma síntese; é o historiador da arte se perguntando: "o que é que isto significa"?

Para Panofsky, era importante considerar os três estratos como ele examinou a arte renascentista. Irving Lavin diz que "era esta insistência sobre o significado e sua busca - especialmente nos locais onde ninguém suspeitava que havia - que levou Panofsky a entender a arte, não como os historiadores haviam feito até então, mas como um empreendimento intelectual no mesmo nível que as tradicionais artes liberais".

Quanto a Rudolf Wittkower (n. Berlim, 1901- fal. Nova York, 1971), foi um grande historiador de arte alemão, profundo conhecedor da arte italiana do Renascimento  e do Barroco; orientou os seus estudos segundo a iconologia de Aby Warburg e de Panofsky e as formas simbólicas de Ernst Cassirer, tendo desde sempre rejeitado uma leitura formalista das obras de arte.  Estudou um ano Arquitectura em Berlim, para estudar depois História de Arte em Munique com Heinrich Wölfflin e em Berlim com Adolph Goldschmidt. Perito em arte renascentista italiana, recebeu a influência da Iconologia e demarcou-se do Formalismo de Wölfflin. No libro Born Under Saturn. The Character and Conduct of Artists: a Documented History from Antiquity to the French Revolution (de 1963) desenvolveu um dos melhores tratados sobre a evolução da condição social do artista, assim como o seu carácter e a sua conducta social. Cumpriu o seu trabalho no Instituto Warburg de Hamburgo e em Londres. Entre outras publicações suas, cabe destacar:Principios arquitectónicos na época do Humanismo(de 1949), Arte e Arquitectura em Italia 1600-1750 (de 1958), e Gian Lorenzo Bernini, o escultor barroco romano (de 1955).

Segundo o grande iconólogo Rudolf Wittkower, na sua obra Allegory and the Migration of Symbols (ed. Londres, 1977), colectânea de estudos realizados entre 1937 e 1972, as obras de arte dão corpo, e transformam sempre, os códigos e símbolos das diversas experiências humanas ao longo dos tempos. Seguindo a lição de Aby Warburg, com quem Wittkower conviveu em Roma e Florença em 1927, antes de trabalhar no Warburg Institute, a lição iconográfica das alegorias e símbolos «em migração» permitiu-lhe abraçar consciente e vantajosamente a Iconografia para melhor entender o sentido das imagens. Os temas desse livro são os seguintes: 1. East and West: The Problem of Cultural Exchange 2. Eagle and Serpent 3. Marvels of the East: A Study in the History of Monsters 4. Marco Polo and the Pictorial Tradition of the Marvels of the East 5. 'Roc': An Eastern Prodigy in a Dutch Engraving 6. Chance, Time and Virtue 7. Patience and Chance: The Story of a Political Emblem 8. Hieroglyphics in the Early Renaisssance 9. Transformations of Minerva in Renaissance Imagery 10. Titian's Allegory of 'Religion Succoured by Spain' 11. El Greco's Language if Gesture 12. Death and Resurrection in a Picture by Marten de Vos 13. 'Grammatica' from Martianus Capella to Hogarth 14. Interpretation of Visual Symbols.

Cabe de facto à lição iconológica, estádio mais avançado da História da Arte, o desvendar das perenidades temáticas, das constantes codificadas, das trocas culturais entre Ocidente e Oriente, dos confrontos entre paganismo e racionalismo, e das permanentes retomas de linguagens formais através dos códigos artísticos -- mesmo que, efectivamente, os símbolos em apreço possam estar tão afastados no espaço geográfico e no tempo histórico... Assim, por exemplo, os temas mais explorados pela arte e pelo humanismo do Renascimento revelam-se, muitas das vezes, ecos de longínquas culturas, desde o Oriente pagão ao mundo greco-romano, e retomam os seus motivos sem que, apesar da óbvia mudança contextual, algo da sua primitiva identidade não continue a perdurar no seu discurso simbólico.

Quando uma obra de arte nos toca a sensibilidade como a mais alta encarnação do talento e do engenho,  a História tendeu a denominá-la muitas vezes como ‘obra prima’ de um dado artista ou uma dada época. Ilusão de superlativos, em que a História da Civilização dos homens encontra pontos de referência e códigos memoriais já de si cómodos, o conceito de Obra-Prima aspira sempre a um ideal universal consequente e é, como tal, a expressão do consenso histórico, político e mesmo metafísico. Ao longo do tempo histórico, a obra-prima como tal eleita proclamou valores soberanos e abriu um leque de expectativas que assumem fórmulas preconcebidas de revalorização e de significação. É possível fazer-se História de Arte sem recurso às chamadas «obras-primas» ? E só com o recurso às ditas «obras-primas» ? A questão tem a maior pertinência: a História da Arte tradicional socorreu-se sempre de tais ‘lugares de consenso’ para fazer valer as suas metodologias redutoras e formalistas... Por isso mesmo, é preciso estudar o que encerra o conceito e saber descobrir as suas fragilidades. Na realidade, só com o conhecimento alargado a todas as obras e testemunhos particulares  da produção artística se poderá fazer História de Arte consequente. Mas será mesmo assim ? Lembrando Aby Warburg (segundo seu mestre Carl Justi), «l’érudition (voire l’histoire de l’art) ne devrait être que la redecouverte du point de vue suivant lequel l’oeuvre d’art avait été faite dans le passé». Sim, é com a análise iconológica e com o enquadramento sociológico globalizante que a História da Arte visa entender o que foram «a coesão dos grandes processos evolutivos» que governam, e regem toda a transformação estilística e representativa, isto é, artística e também simbólica. Só com o estudo da globalidade artística que se exprime em qualquer obra de arte particular se atinge o conhecimento de um processo em cadeia de que todas e cada uma são a parte activa. A noção de ‘obra-prima’ – quando pensada como referencial absoluto e universal --é, por isso, muito redutora e deve ser entendida apenas como um dos vários processos de classificação que a humanidade culta assumiu face ao seu Património perecível, consciente da necessidade de o preservar.

Na prática, a ICONOLOGIA dedica particular relevo ao estudo dos textos, dos contextos e dos programas: todas as obras de arte têm um programa interno, que pode ser perceptível. O modelo conceptual de Aby Warburg, e de Panofsky, buscava já englobar forma, sujeito e sentido na sua abordagem das obras de arte. É certo que os estudos iconológicos têm dado maior ênfase aos temas do Renascimento (como o estudo de Panofsky e Fritz Saxl, de 1923, sobre a Melancolia I de Durer), e tem negligenciado outras épocas artísticas – mas tal não deve ser visto como sinónimo de fraqueza, mas sim como falta de aplicação integral do seu modus faciendi... O uso da Iconologia, tal como praticado após a morte dos seus fundadores, tem tido recuos e «vulgatas» redutoras. É certa, e tem dose de verdade, a crítica de que alguma iconologia presta mais atenção aos textos literários que às obras de arte. É certo, e tem dose de verdade também, a crítica de que alguma iconologia se perde nas gavetas infindas das colecções de gravura na sua busca desenfreada de um «sentido escondido» em todas as imagens, e de lhes determinar a priori um sentido determinado de que depois tenta fazer prova... Enfim, é também certo que a obra de arte se não pode reduzir aos seus códigos de significação, e que esta «irredutibilidade» de alguma iconologia presta um mau serviço ao estudo integral das obras de arte, por não as deixar expressar livremente os seus códigos estéticos... É certo que algumas destas críticas colhem fundo: em nome da iconologia, tem-se praticado uma H. de Arte redutora. Mas convém lembrar também que, num prisma bem diverso, a Iconologia suscitou outro tipo críticas (o maccarthismo nos EUA versus a teoria de Panofsky, desconfiando do uso do termo ‘ideologia’...). A questão reside, segundo o grande historiador de arte, na operacionalidade do método: «a Iconologia é uma técnica que quedará fundamental para a identidade dos géneroas de imagem e no uso das fontes», aduzindo que importa também  ter-se em conta a necessária «abertura» inerente à arte e à interpretação dos símbolos e códigos artísticos.

Segundo o que já dizia Aby Warburg, o que importava à ICONOLOGIA é abrir as fronteiras entre várias matérias do saber, entre várias disciplinas das Humanidades, redefinindo noções como «contexto» e «programa artístico» e articulando vias interdisciplinares de saber ver as obras de arte na sua carga de integralidades.   O caminho escolhido por Erwin Panofsky busca a compreensão de como sob determinadas condições históricas objetos e eventos diversos são expressos por formas diversas; temas ou conceitos são expressos por objetos e eventos vários; tendências essenciais da mente humana são expressas por temas e conceitos específicos. A História da Arte para Panofsky é uma ciência que necessita da junção desses três exercícios de compreensão para se concretizar: a leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos. Foi sob esta óptica que ele empreendeu seus estudos sobre a arte renascentista, buscando na literatura, nas representações artísticas que comumente eram encontradas, nas leituras alegóricas ou simbólicas que a arte trazia os percursos seguidos pelos artistas da renascença para executarem suas obras. A leitura do mundo dos motivos artísticos, do mundo das imagens e alegorias e do mundo dos valores simbólicos no entanto, prescinde das escolhas que porventura o artista possa fazer, assim como pode ser feita sem que o ambiente de vida do artista tenha que ser necessariamente explorado pelo historiador da arte. A busca das ressonâncias perceptíveis nas obras de arte envolvendo os motivos artísticos preferencialmente trabalhados, as imagens e alegorias conhecidas e eleitas nas representações e os valores simbólicos atribuídos às imagens representadas seriam capazes de permitir a leitura historiográfica da obra de arte. Talvez o que falte seja o que Aby Warburg considerava a presença divina, o peculiar, o ‘deus’ criador dentro de cada um que se manifesta no detalhe, no singular. A presença do indivíduo tão apregoada por Jacob Burckhardt em seu ensaio sobre a cultura do Renascimento na Itália é o elemento fundador daquela civilização que gerou as obras de arte perseguidas, esquadrinhadas e analisadas minuciosamente por aqueles estudiosos que, tal como Erwin Panofsky e Rudolf Wittkower, buscaram entender a arte da Renascença italiana.

 

OBRAS DE RUDOLF WITTKOWER: Architectural Principles in the Age of Humanism (1949); Bernini: The Sculptor of the Roman Baroque (1955); The Arts in Western Europe: Italy in New Cambridge Modern History, vol. 1 (1957), pp. 127–53; Art and Architecture in Italy, 1600–1750 (1958, and revised editions); Born Under Saturn: The Character and Conduct of Artists (1963, co-authored with Margot Wittkower); The Divine Michelangelo (1964,co-authored with Margot Wittkower); Gothic vs. Classic, Architectural Projects in Seventeenth-Century Italy (1974); Sculpture: Processes and Principles (1977, co-authored with Margot Wittkower).


Ler uma obra de arte segundo Omar Calabrese. O enfoque da Semiótica.

1 Março 2017, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

  O conteúdo da aula centra-se nos aspectos teóricos incidentes sobre a abordagem da obra de arte, com base nas imagens artísticas privilegiadas na análise de Omar Calabrese, ao longo de sete capítulos reunidos na publicação intitulada “Como se Lê uma Obra de Arte”. Sete capítulos que representam outros tantos olhares complementares, incluindo a apreciação e o entendimento da obra de arte, englobando características específicas enquanto objecto estético, mutações dos valores estéticos, juízos de valor subjacentes na apreciação do observador/receptor/usufruidor. Definição de estilo e estilema, enfoque metalinguísticdo e crítico.

    A obra de arte em análise transporta um conjunto de enunciados significativos que informam sobre a interpretação de Omar Calabrese com o pensamento semiológico. Discurso fluente, quando coloca questões inerentes à interrogação da obra de arte, adensa-se perante a polissemia subjacente à interpretação.  Do seu contributo teórico-conceptual [presente na obra “como se lê uma obra de arte”] para o desbravar de metodologias de abordagem da obra, destacamos:  A leitura do quadro como processo de um olhar consciente, responsável e competente, apetrechado da utensilagem adequada à descodificação do texto em análise. Atitude de visão global face à totalidade da obra, conhecedora não só da utopia que habita cada momento de abordagem, mas também do significado da Fortuna Crítica e do espaço existencial do presente. Articulação dos diferentes tempos face à discursividade da leitura. Estruturação de circuitos de olhares virtuais e possíveis, direccionados para o conjunto de signos alinhados na superfície plástica, implicando escolhas múltiplas e relativas e refutando a linearidade irreversível. Soberania da consciência face à parcialidade que antecipa a visão unitária, perspectivada a partir de três comportamentos fundamentais: perceptivo, estruturante e memorizante. Equivalência do quadro a uma matriz de linhas, cores e valores, na qual cada geração inscreve a sua própria leitura.  Concepção do quadro como sistema, onde se cruzam conjuntos de olhares, de percursos, de elementos ligados entre si por diferentes graus de constrangimento e provocação, suscitando na descodificação dos códigos picturais a coerência interna e orgânica inerente à obra em análise e às suas referências conotativas e denotativas, sublinhadas na oposição regra/transgressão/significado pictórico. Importância da aplicação do modelo característico da semiologia pictural à pintura, entendida como linguagem estruturada e autónoma

     Em resumo, Omar Calabrese pertence a uma nova geração de críticos de arte cujos pressupostos teóricos se afirmam na década de 90 e onde se incluem nomes como Victor I. Stoichita, Marc Bayard, David Freedberg, Georges Didi-Hubermen, Hans Belting, etc. No discurso teórico de Calabrese transparece toda uma utensilagem metodológica alimentada por conceitos operativos fundamentais para a descodificação do processo comunicativo, no qual ocupa lugar privilegiado a linguagem artística e, naturalmente, o discurso pictórico. Assim se compreende a alusão, nas suas análises, a termos como estratégia discursiva, narratividade, metáfora, signo, unicidade, memória, autenticidade, totalidade, alegoria, trans-semioticidade, contextualidade, cruzamento… propondo uma verdadeira taxonomia.

     Do ponto de vista crítico, a grande abertura expressa por Calabrese relativamente ao processo de análise da obra de arte, é bem o espelho da sua atitude de humildade, patente no seu reconhecimento de que a mensagem da obra não se esgota no signo, enquanto substituto significante de qualquer coisa. Daí o apelo do autor a elementos exteriores ao conteúdo, sejam eles dados biográficos, informação histórica, relações do artista com a sociedade, domínio da iconologia, etc., os quais embora excluídos do processo comunicacional, completam o entendimento da globalidade da obra de arte.

     Muitas das questões colocadas por Calabrese relativamente ao universo comunicativo da produção artística continuam em aberto, pois no actual estado do debate teórico nada está definitivamente encerrado. A obra de arte oferece-se à interrogação, e a abordagem semiótica não a esgota; as áreas cruzadas com a semiologia, designadamente no domínio das ciências humanas, a interdisciplinaridade, a aproximação metodológica a outras linguagens da crítica, constituem recursos que tornam inesgotável o processo de inteligibilidade da obra. “Como se lê uma Obra de Arte” é uma obra de qualidade inquestionável para estudiosos, críticos e historiadores da arte, com destaque para o seu contributo semântico, o qual justificaria o melhoramento da qualidade de reprodução das imagens reproduzidas e, bem assim, do teor de informação veiculada pelas respectivas legendas.


  BIBL.: OMAR CALABRESE, Como se Lê uma Obra de Arte, Edições 70, Lisboa, 1997, ISBN 972-44-0963-5, 144 pp. (125 de texto). Título original: Cómo se lee una obra de arte, Ediciones Cátedra, S.A., 1993.