Sumários

O frio acautelado. O frio que mata.

18 Maio 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Prossecução do visionamento do filme Encounters at the End of the World de Werner Herzog. Caminhámos até 1h 24m 10s.

Voltaremos a este objecto artístico na aula de 30 de Maio, após termos recebido o nosso convidado José Bértolo que apresentará e comentará um filme, que resultou do trabalho de Herbert Ponting, feito e dedicado aos viajantes da missão chefiada por Scott no barco Terra Nova. Ponting abandona a Antárctida antes da derradeira etapa que vitimará o capitão Scott e alguns dos seus companheiros. O filme de 1924, realizado a partir do material coligido durante a estadia no Continente Branco, adquire particular significado no contexto trágico posterior.

Acompanharemos, assim, a viagem (1910-1913) do capitão Robert Falcon Scott e dos seus companheiros ao polo sul, onde não chegaram, seguiremos o seu dia-a-dia na Antárctida e teremos oportunidade de nos confrontarmos como espectadores à distância com as adversidades de que estes homens foram alvo.

A tragicidade dos seus destinos veio do frio.

 

DVD em visionamento:

HERZOG, Werner, 2007/2009, Encounters At the End of the World, documentário, 97 min., em inglês com opção de legendas em português + making of em inglês

 


Herzog literário. Herzog cineasta

16 Maio 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida

 

O absurdo e o grotesco de algum discurso diarístico de Werner Herzog, causado pelo desgaste da caminhada, mas igualmente pelo seu estado anímico, chamaram a nossa atenção. Fizemos por isso leitura de dois poemas, um de Jakob van Hoddis, O fim do mundo (Weltende), de 1911, e o outro, O crepúsculo (Die Dämmerung), de 1913, de Alfred Lichtenstein, que são representativos do Expressionismo literário Alemão, corrente estética familiar a Herzog, a partir da cinematografia alemã expressionista (Murnau, Pabst, Lang, Wiene) e do seu trabalho com Lotte Eisner. Ele próprio filma sob esse horizonte estético algumas das suas obras, por exemplo, Nosferatu – O fantasma da Noite (1979) inspirado em obra homónima de F. W. Murnau, Nosferatu, Uma sinfonia do horror (1922).

Aqui deixamos a tradução dos dois poemas, feita por João Barrento, que lemos e comentámos em aula, para que seja possível uma apreciação mais demorada das duas pequenas obras em paralelo com momentos textuais do diário Caminhar no Gelo, em que a banalidade da realidade quotidiana que Herzog experimenta e adquire uma dimensão absurda e inquietante.

 

Jakob van Hoddis, O fim do Mundo

 

Voa o chapéu ao bicocéfalo burguês,

Os ares enchem-se de gritos e rumores.

Desintegrando-se caem telhadores,

E – segundo as notícias – sobem as marés.

 

Chegou a tempestade, saltam mares ululantes

Para terra: esmagar diques é sua intenção.

Em quase toda a parte grassa constipação

Os comboios precipitam-se das pontes.

 

Alfred Lichtenstein, O crepúsculo

 

Um rapaz gordo brinca com um lago.

O vento ficou preso em arvoredo.

O céu, de ar tresnoitado e de tom vago,

Parece que tirou pintura, a medo.

 

Dois coxos tortos, dobrados, de muleta,

Arrastam-se pelo campo em cavaqueio.

Enlouquece talvez louro poeta,

Um cavalinho tropeça num seio.

 

O gordo está colado ao guardavento.

Um jovem vai ao bordel em visita.

Calça as botas um palhaço cinzento.

Cães praguejam, carro de bébé grita.

 

Iniciámos a seguir o visionamento do filme de Werner Herzog Encounters at the End of the World (2007) (Encontros no fim do mundo) como experiência de articulação entre ciência, arte, humanidade e natureza. (os primeiros 30 mins.)

 

Antes de o DVD ter tido início, ou melhor, logo nos primeiros minutos do decurso do filme, tomámos consciência, pela boca do próprio realizador, de que este filme não seria do mesmo género de A marcha dos Pinguins, filme de 2006, realizado por Luc Jacquet.

Esta chamada de atenção, considerada pertinente, dados os interesses de Herzog por um lugar tão inóspito como é o continente antárctico, veio em nosso auxílio para que atentássemos em realidades que à partida não esperaríamos encontrar num lugar puro.

Trata-se de um continente que não pertence a ninguém e cujo estatuto especial foi confirmado no dia 1 de Dezembro de 1959 através do Tratado da Antárctida. Esta legislação internacional tem a função de proteger este território da ganância e vontade de exploração económica (a caça à baleia foi durante séculos uma autêntica devastação; as riquezas do subsolo antárctico, incluindo o petróleo, são uma tentação incontornável) e política de qualquer país alojado num dos restantes continentes.

Na Antárctida está apenas autorizada a investigação científica, a cooperação internacional no respeito por esse tratado e a manutenção de um relacionamento pacífico entre as equipas de investigadores dos países acreditados ao abrigo do referido tratado.

A condição pacífica do continente, onde ninguém o habita em permanência, afasta a possibilidade dele vir a ser militarizado, de nele se realizarem toda e qualquer acção nuclear, incluindo o depósito de resíduos desse tipo.

Talvez possamos melhor compreender agora o que motivou Herzog a deslocar-se à Antárctida, por algumas semanas, acompanhado apenas pelo seu director de fotografia, Peter Zeitlinger.

O que nos é dado ver, para além da produção de ciência, são os relatos de cientistas sobre o que investigam e o que esperam alcançar durante os cinco meses (Verão antárctico) em que a luz solar é contínua. Seguimos outras conversas não científicas de pessoas que vivem ali depois de «terem saltado do mapa do mundo.»

 Confunde-se a arte de filmar com a própria natureza do lugar. Esplêndidas paisagens da superfície da Terra aos enigmáticos fundos oceânicos são abraçados por escolha musical que nunca nos deixa insensíveis. Mesmo à distância de milhares de quilómetros, o filme realizado por Herzog atrai a nossa sensibilidade de observadores para uma beleza e poeticidade inexplicáveis, poa um lugar onde o frio pode ir até -85º, e onde se morreu e morre se não forem respeitados os códigos de uma Natureza implacável.

 

Leituras recomendadas:

BARRENTO, João 1989, A Poesia do Expressionismo Alemão, Lisboa: Editorial Presença, p. 75 e 78.

HERZOG, Werner, 2011, Caminhar no Gelo, tradução de Isabel Castro Silva, prefácio de Pedro Mexia, Lisboa: Tinta-da-China.

 

DVD em visionamento:

HERZOG, Werner, 2007/2009, Encounters At the End of the World, documentário, 97 min., em inglês com opção de legendas em português + making of em inglês


Caminhar no Gelo - uma superação de si

11 Maio 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida

 

Optámos por uma deriva pelas páginas do diário de Werner Herzog Caminhar no Gelo a partir de sugestões de leitura dos alunos e também de uma questão que propus: Como é que alguém se apropria ou não de um lugar?

Juntámos a esta questão uma outra que também nos pareceu importante: Como é formulado o ponto de vista de quem escreve? A este propósito recuperámos o ponto de vista do prefaciador Pedro Mexia que defende esta obra de Herzog como representativa da «iconografia do romantismo: os quadros de Caspar David Friedrich, com personagens solitárias no meio de paisagens inóspitas mas sublimes.» (11)

Contrariámos a posição do prefaciador exemplificando com passagens de Caminhar no Gelo que exprimem antes a presença de um espaço desolador, invernoso e abandonado que o protagonista atravessa como um mártir. As descrições de cenário e o contacto com esparsas pessoas ao longo da viagem nada têm de sublime nem nesse sentido se projectam.

Completámos a nossa argumentação mostrando e comentando uma representação de um quadro de Caspar David Friedrich – O Monge à beira-mar (1808-1810) - escolhido de entre as propostas feitas pelos alunos, e que se encontra na Alte Nationalgalerie de Berlim (óleo sobre tela, 110 X171,5 cm).

As conclusões pareceram-nos óbvias. A plenitude e a relação cosmogónica expressa na relação entre o ser humano e a natureza no quadro de Friedrich distanciava-se abissalmente da experiência dolorosa e sacrificial que Herzog empreende como processo de regeneração interior e acto de fé em nome de uma amizade extraordinária.

Reforçámos ainda esta posição citando passagens do diário em que o narrador-protagonista desenvolve discurso de proximidade ao absurdo, recupera memórias de infância e outras, numa tentativa de as integrar num pensamento por vezes desconexo e que se relaciona com a exigência física da travessia territorial.

 

 

Leitura recomendada:

HERZOG, Werner, 2011, Caminhar no Gelo, tradução de Isabel Castro Silva, prefácio de Pedro Mexia, Lisboa: Tinta-da-China.

 

http://www.openculture.com/2012/08/portrait_werner_herzog.html


Andar a pé no frio

9 Maio 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida

 

Concluímos o visionamento do filme Happy People – A Year in the Taiga de Werner Herzog e Dmitry Vasyokov.

Ainda nos perguntámos se seríamos capazes de viver em Bahktia, a umas centenas de quilómetros do oceano Ãrctico. Pairaram algumas dúvidas acerca da nossa vontade em nos juntarmos por algum tempo aos pescadores e caçadores que, sendo assassinos porque matam, não o são porque esse é o modo da sua sobrevivência. Aprendemos como se prepara um cão para a caça e o tempo médio da sua vida. O frio nestas paragens pode ter uma temperatura de 30º negativos. Ninguém dele se queixa e tudo parece estar preparado para o receber. Roupas quentes e de fibra natural ombreiam com casacos e bonés com abas feitos das peles dos animais mortos. Anda-se de ski e de canoa feitas à mão, anda-se de motoreta eléctrica. Este lugar, esta paisagem não conhecem efeitos de poluição.

A natureza adormece e acorda como sempre o fez. O seu esplender vem das tempestades mas também dos bonançosos nascer e pôr-do-sol. Rios e florestas têm uma existência infinitamente cíclica. A taiga polar exprime-se pelas coníferas que a povoam e se multiplicam como todas as espécies vivenciais. As estações do ano são sempre quatro e contam-se em sequência.

Deixámos para trás pessoas felizes e pusemo-nos a caminho de um outro lugar. Mudaram os protagonistas. Mudou a motivação. Mudou a geografia. Tudo num mesmo continente. Recuámos no tempo e fomos parar ao ano de 1974. O frio, sendo outro menos agreste, não deixou de ser frio. Quem então se fez ao caminho levava dentro de si uma missão e caminhou sozinho.

Deparámo-nos com um novo diário. Antes fizéramos leitura de O Diário das Nuvens de Goethe, um restrito acumular de entradas com instinto e perícia científicos que enquadrámos no nosso estudo sobre nuvens.

Herzog escreve durante três semanas sobre a experiência de se deslocar a pé entre duas grandes cidades da Europa: Munique e Paris. Consigo leva duas motivações essenciais: uma de natureza mágico-sincrética e outra de aprendizagem interior.

 

Leitura recomendada:

HERZOG, Werner, 2011, Caminhar no Gelo, tradução de Isabel Castro Silva, prefácio de Pedro Mexia, Lisboa: Tinta-da-China.

 

http://www.openculture.com/2012/08/portrait_werner_herzog.html

 

Filme visionado:

HERZOG, Werner e VASYUKOV, Dmitry 2010, Happy People – A Year in the Taiga, 94 min., em russo com legendas em inglês.


Ser feliz no frio

4 Maio 2017, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

3º Módulo: O frio dos frios, oceanos, Antárctida

 

Exercício de transição entre o espaço vivencial e artístico proposto pela nossa convidada Maria Carneiro, inspirado no frio árctico e na adaptação à vida quotidiana de habitantes dessa região polar e circundante.

Desta vez não nos inspirámos no espaço urbano nem no aconchego das casas com arquitectura concebida para fazer face a temperaturas baixas e a grandes tempestades de vento e neve. Não apreciámos o design nórdico de mobiliário, inspirado em linhas direitas mas harmoniosa e que exibem uma certa austeridade visual. O conforto e a qualidade dos materiais são sempre o objectivo primeiro de quem os concebe. As noites nas janelas das casas dinamarquesas são vividas com luz baixa, à semelhança daquela que o sol projecta quando se descobre entre névoas e neblinas durante o dia. Não precisámos de usar aquela palavra dinamarquesa, cheia de afectividade e multiforme, que aprendemos há poucos dias – hygge – e que exprime vários modos de bem-estar e prazer. Não descalçámos os sapatos ou as botas em lugares públicos muito aquecidos. Não andámos de T-shirt ou roupa leve em nenhuma circunstância.

Deixámos para trás o espectáculo coralista e videoástico NEOARTIC e a sua complexa composição. Os nossos actores são homens simples que pescam, caçam, montam armadilhas como forma de sobrevivência.

O nosso exercício de transição ocorre também numa outra região de acesso ao oceano Árctico. Do norte da Dinamarca passámos para o norte da Rússia, onde três rios, entre os quais o Yenisei, que corre junto à aldeia de Bahkta, confluem em direcção às águas geladas do Árctico. Observámos como prioritariamente os homens desenvolvem actividades próprias para a subsistência de cerca de 300 habitantes que nessa pequena localidade habitam e à qual só se chega de barco ou helicóptero.

O acesso a este espaço natural longínquo proporciona-nos novo encontro com o cineasta Werner Herzog que, em 2010, visitou esse lugar inóspito para realizar o filme Happy People – A Year in the Taiga, a partir de material registado pelo realizador russo Dmitry Vasyokov.

O filme, um aparente documentário, ocupa-se da região e dos seus habitantes, dando destaque às actividades da pesca e da caça nas florestas da taiga siberiana num ciclo de quatro estações. Talvez nos tenhamos podido aproximar de um modo de ser e de existir quase pré-histórico, ainda que filmado no séc. XXI e matizado por ocorrências associadas à História da Rússia soviética desde a II Guerra Mundial e até à propaganda de um acto eleitoral regional que se insere numa realidade que causa estranheza aos aldeões. A publicitação desse acto eleitoral vem das águas do rio Yenisei como um número de circo. Sacos com farinha de cereais são deixados em Bahkta pelo candidato que se auto-promove.

O que nos dá a ver este filme? Homens e cães em processo de sobrevivência numa das mais frias regiões do planeta. Talvez sejamos capazes de contemplar como eles são felizes e livres. Vivem afastados do universo criado por regras, impostos, governos, leis, burocracia, telemóveis e outras tecnologias que ali não conhecem aplicação. Passam meses pernoitando em pequenas cabanas que eles próprios constroem, enquanto de dia enfrentam no exterior temperaturas negativas mas sabendo delas proteger-se.

Os dias passam-se sem uma rotina estabelecida, dando aso a um acordo tácito entre ser humano e natureza num processo de grande dignidade e respeito mútuo. Constroem-se pares de skis, escavam-se troncos de árvores para se fazerem canoas.

A ancestralidade expõe-se num rosto talhado a ruga e pele, finos olhos alveolares e mãos que desvelam bonecas negras dos seus panos brancos. Nelas reside o efeito da noite mágica. De dia dormem, à noite guardam os vivos dos seus temores e pavores.

A subtileza deste ritual associado ao pensamento sincrético dá as mãos à filigrana da textura dos troncos de árvore. Ali vivem eles para serem descarnados e moldados a um uso prático. Ali vivem eles na beleza da forma interior, de cuja natureza do desenho nos apossamos para nele descobrirmos valor estético.

Os homens, mas também as mulheres do filme, fazem apenas uso de competências aprendidas na passagem das gerações adequadas à sobrevivência, seguem as suas regras nunca impostas, os seus próprios valores e destinos. O processo que acompanhamos é de integração e de adaptação ao frio mas também às condições das outras estações do ano e à Natureza sublime. O filme não poderia, por isso, ser apenas um documentário.

 

Filme visionado:

HERZOG, Werner e VASYUKOV, Dmitry 2010, Happy People – A Year in the Taiga, 94 min., em russo com legendas em inglês.